16 de novembro de 2009

Finitude, Transitoriedade, Vulnerabilidade - parte III

Não, não faço aqui um discurso-fácil sobre martírio, sobre procurar o sofrimento per se. Não tenho dúvidas. Acredito sim, que a fé, a existência em fé pode sim, melhorar a vida da pessoa aqui e agora. Pode e deve melhorar a sociedade. As “virtudes cardeais” da temperança (aproveitamento comedido/conveniente das coisas, evitando se perder no uso de algo, evitando vícios), prudência ( considerar as conseqüências do que está fazendo, ter bom senso, ser consciente de suas ações e das responsabilidades), justiça ( honestidade, equidade, veracidade, fidelidade), fortaleza ( ter fibra, força de vontade) ajudam a pessoa a administrar melhor seus ganhos e posses, dar valor ao que é mais significativo, não se perder em excessos, honrar compromissos e evitar vergonhas, educar filhos, superar dificuldades, conviver entre si, melhorar o trânsito, a vida social de sua cidade. Ajudam e muito; mas não evitam os contratempos e os acasos ruins.

E o sentido do chamado de Jesus é que com o seu ministério O Criador estava confirmando Seu desejo de um relacionamento íntegro com as pessoas, uma aliança com todas, e que já pôs sob julgamento todo o mal e tudo o que desvirtua a justiça e bondade, que inaugurará uma Nova Criação, e nos chama a viver orientados a essa perspectiva agora, a do Seu Reinado inaugurado com a obra de Cristo, confirmado com Sua ressurreição, pelo poder de Seu Espírito. Isso supõe desde o confronto com as estruturas injustas do mundo, a deslegitimação de todo o despotismo e exploração, o socorro aos necessitados, até a busca e apoio para melhores soluções técnicas para os problemas na área médica, planejamento urbano, políticas educacionais, manejo agroambiental, tecnologias socializadas de tal forma a não provocar injustiça social e ambiental.

Mas nada disso nos dá garantia para o aqui e agora. Fora inaugurado na obra de Jesus, mas será concretizado finalmente quando da Nova Criação divina. Não nos iludamos que um dia estabeleceremos a sociedade perfeita ou quase-perfeita aqui. Todos os nossos projetos podem ser corrompidos. E tudo isto passa, sempre passará. E sempre teremos de conviver aqui com tristezas e sofrimentos.

Em grande parte deriva da própria natureza da realidade: Deus criou um mundo em desenvolvimento, evolução, dotado de potenciais para explorar o conjunto de possibilidades e vias de configuração; o padrão intencional do Eterno está no plano mais amplo, e não em cada detalhe deste processo evolutivo; isto para possibilitar que venham à tona seres com livre-arbítrio, ainda que em meio a condicionantes, e dotados de criatividade, espontaneidade, moralidade e responsabilidade. E não um mundo tal qual um dominó, com todos os movimentos pré-fixados e habitado apenas por fantoches. Tal opção possibilita o amor, a liberdade, mas também o sofrimento. Ainda por cima, houveram eventos nesta criação que corromperam a ordem criada, agravando e aprofundando as experiências de sofrimento pessoal, desvirtuando o plano evolutivo destes seres morais - nos afastando do alvo que havia para nós. Por isto os atos especiais revelatórios e sobrenaturais dEle, para poder redimir um mundo que não é uma cascata-dominó.

Assim, em meio a este drama, experimentamos a vida em sua crueza, com a mesma abertura que possibilita sofrer e desfrutá-la. Não há garantias. Não há estabilidade garantida; não há fórmulas para a felicidade; não há um jogo de barganha cósmica ou espiritual para garantir que as coisas darão certo para nós aqui.

Como a oração atribuída a Reinhold Niebuhr diz,
"Senhor, conceda-me a serenidade
para aceitar aquilo que não posso mudar,
a coragem para mudar o que me for possível
e a sabedoria para saber discernir entre as duas.
Vivendo um dia de cada vez,
apreciando um momento de cada vez,
recebendo as dificuldades como um caminho para paz,
aceitando este mundo cheio de pecados como ele é
assim como fez Jesus, e não como gostaria que ele fosse;
confiando que o Senhor fará tudo dar certo
se eu me entregar à Sua vontade.
Pois assim poderei ser razoavelmente feliz
nesta vida e supremamente feliz na outra.”


A história, nua e crua, mostra que pessoas de todos os credos e sem crer em nenhum morreram de fome, nas guerras, assassinadas, injustiçadas, de acidentes. Existem cristãos passando fome e sede na África, na América Latina, cristãos (inclusive igrejas) faliram e perderam todos os bens nos EUA recentemente na crise, cristãos em depressão na Europa, cristãos morrem em catástrofes ambientais na Ásia (e sofrem em todo mundo as consequências do que outros cristãos fazem com a natureza)...não é “castigo de Deus”, embora em grande parte das vezes a responsabilidade humana está envolvida; muitas vezes, pessoas sofrem conseqüências da irresponsabilidade ou maldade dos outros.


Temos que aceitar nossa vulnerabilidade; daí, a transitoriedade das coisas; daí, a nossa finitude. Isto não gera acomodação; pelo contrário, qualquer ideologia ou religiosidade que nos ofereça “garantias” gera acomodação, pois pra quê ser atento e ter coragem, iniciativa, virtude, paciência, gana de dar a volta por cima, se tudo é garantido? Por isso, quem passa por alguma aflição, não se culpe. Não está completamente nas mãos de ninguém poder garantir que alguém dá família não se meta em confusão; não está nas mãos de ninguém garantir que nunca passará por tragédias financeiras; podemos só fazer nossa parte. Mas não se implica que é a realidade definitiva da vida. A crença na ressurreição entre os judeus, surgiu diante do martírio pela sua fé.

A crença cristã não é a de que devamos nos isolar “deste mundo tenebroso” esperando ir para o Céu. O Céu não é o limite. O “Céu” é uma linguagem metafórica, na linguagem do Novo Testamento, para evitar pronunciar o nome de Deus em vão. A realidade após a morte na fé cristã, é a de encontrar acolhida com Deus, até que Ele restaure todas as coisas, e consuma Seu Reinado, na Sua Nova Criação; Ele não descartará essa criação como um lixo para vivermos num “mundo etéreo”, mas nos dará uma nova vida, um novo corpo, libertos da condição pecaminosa, espiritualmente orientados. Não seremos fantasmas. Teremos uma vida após a vida após a morte.

Vida após Vida após a Morte
http://www.youtube.com/watch?v=sRdShhnd_Zc
O Céu não é a questão:
http://www.arminianismo.com/index.php?option=com_content&view=article&id=1078%3Ao-ceu-nao-e-a-questao&catid=123%3An-t-wright&Itemid=28


C.S. Lewis , em resposta a uma pergunta de um entrevistador, proferira algo que abalaria os alicerces de diversos templos hoje:
Qual das religiões do mundo confere a seus seguidores maior felicidade? Enquanto dura, a religião da auto-adoração é a melhor.

Tenho um velho conhecido já com seus 80 anos de idade, que vive uma vida de inquebrantável egoísmo e auto-adoração e é, mais ou menos, lamento dizer, um dos homens mais felizes que conheço. Do ponto de vista moral, é muito difícil. Eu não estou abordando o assunto segundo esse ponto de vista. Como vocês talvez saibam, não fui sempre cristão. Não me tornei religioso em busca da felicidade. Eu sempre soube que uma garrafa de vinho do Porto me daria isso. Se você quiser uma religião que te faça feliz, eu não recomendo o cristianismo. Tenho certeza que deve haver algum produto americano no mercado que lhe será de maior utilidade, mas não tenho como lhe ajudar nisso
.”



Tenhamos uma alma pronta a simpatizar e um coração que saiba sentir-se com outros em suas aflições: nenhum temperamento descaridoso, nenhuma desumanidade. Embora você não possa proporcionar alívio, pode, porém, lamentar, entristecer, preocupar-se pelo que ocorreu.
São João Crisóstomo. Homilies on the Acts of the Apostles and the Epistle to the Romans.

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