15 de abril de 2013

Uma brevíssima história do "Coisa Ruim"


Às vezes em algumas igrejas ele é quase tão mais falado do que o próprio Deus. Há aqueles que dizem ser seus seguidores ou admiradores. Pipocam por alguns fóruns teorias sobre a evolução até a configuração cristã clássica de sua imagem. Muitas delas são chutes. Vamos fazer uma brevíssima recapitulação da história da emergência do conceito da figura do Diabo. Vamos ver um pouco como se constituiu na matriz do cristianismo, o imaginário judaico polimorfo.

Até há um tempo atrás se jugava que foi algo nascido na interação com o Império Persa, sob influência da religião de Zoroastro, que advogava dois polos ontológicos fundamentais, duas forças volitivas em um conflito cósmico permanente. Hoje tal visão está superada, ainda que se tenha em mente a contribuição forte deste sistema religioso.

O povo hebreu iria constituindo seu ideário religioso a partir de experiências de visionários, da experiência e tradições coletivas do povo, em influência de interações complexas do seu meio circundante. Em grande parte queria contrastar com as noções e referenciais dos vizinhos, sobretudo rivais, contudo, retrabalhavam-nas. Decerto, era forte a pressão por assimilações de povos muitas vezes mais estruturados e organizados, de grandes nações e impérios com mitologias e religiões exuberantes e elaboradas dando sentido às organizações sociais.

Hoje temos meios extremamente mais férteis do que há anos atrás para compreendermos cenários primordiais deste processo, através de muitos documentos dos povos do Oriente Próximo, como
os textos de Ras Shamra, os manuscritos ugaríticos de Marzēah, os selos de Tell Asmar, o Tratado de Enuma Elish, etc.

Baal 
Diversos mitos versavam sobre o conflito da divindade mais saliente do imaginário vencendo forças mais antigas do caos.

Uma muito influente fora a vitória de Baal contra Leviatã, a serpente que aparece em alguns achados representada com sete cabeças; ou contra Yam (ou o "Juiz Nahar), o mar, o deus da destruição, ou contra "Mot", rei das profundezas da morte, em que Baal desta forma consegue escapar da sua morte como destino final e passa a ser doador da vida. Baal era um vistoso guerreiro, inferior no panteão à figura anciã sapiencial de El, que sob uma outra forma, era cultuada pelos hebreus, se mesclando com YWHW ( Yaweh), havendo ainda a controvérsia se o nome de YWHW chegara de regiões egípcias ou sírias. Baal desafiara a serpente do caos primordial e da morte, fulgurara aí aclamado como grande divindade, doadora da vida.

Em outras fontes, interagindo com outras figuras religiosas poderosas como Gilgamesh, uma imagem similar a Leviatã aparece como Tiamat ( caldeus – vencida por Marduk ), Rahab, etc. É impressionante o quão vasta é esta marca no inconsciente coletivo humano, espalhado por tradições em diversas regiões, como por exemplo milenarmente na Índia, com a vitória de Indra sobre a serpente Vishnu.

Contudo, pode-se conceber uma controvérsia na mentalidade hebreia, de onde se reformatou a ideia dos vizinhos: o fator mais constrangedor seria que sua divindade era anterior a qualquer outra, sendo assim, ficaria embaraçoso conceber que se revoltou contra seres malignos anteriormente mais poderosos. Desta forma, se inverteu, e estes seres, poderosos mais inferiores, ora aparecem como insurretos subjugados, ora como vencidos e dominados por El/Yaweh no ato de dar forma e ordem ao mundo criado [concomitante, na busca de estabelecer sua identidade própria por contraste com os rivais, a cultura israelita foi associando algumas das divindades principais rivais - também devido a práticas cultuais que era condenada pela ética israelita - com os próprios seres insurgentes].

Alguns exemplos:

Jó 26, 10- 13:
Traçou um círculo à superfície das águas, até aos confins da luz e das trevas. As colunas do céu tremem e se espantam da sua ameaça. Com a sua força fende o mar e com o seu entendimento abate o adversário. Pelo seu sopro aclara os céus, a sua mão fere o dragão veloz.

Salmo 89, 9-10: 
Dominas a fúria do mar; quando as suas ondas se levantam, tu as amainas. Calcaste a Rahab, como um ferido de morte; com o teu poderoso braço dispersaste os teus inimigos.

Isaías 51.9,10: 
Por acaso não és tu aquele que despedaçou Rahab, que trespassou o Dragão?

Salmo 74.13-17:
Tu, com o teu poder, dividiste o mar; esmagaste sobre as águas a cabeça dos monstros marinhos. Tu espedaçaste as cabeças do Leviatã e o deste por alimento às alimárias do deserto. Tu abriste fontes e ribeiros; secaste rios caudalosos. Teu é o dia; tua, também, a noite; a luz e o sol, tu os formaste. Fixaste os confins da terra; verão e inverno, tu os fizeste.

Se estabeleceu então na religião hebreia essas figuras poderosas mas inferiores à sua Divindade. Se temia, sobretudo pela associação com o mar, de onde provinham muitos impérios conquistadores. Mas a concepção de um estreito interesse com a vida humana era remota ainda. 

Como muitos imaginários de seu contexto geocultural, os israelitas concebiam o mundo habitado por espíritos não-humanos, seres sobrenaturais de caráter diversos. Alguns, como nosso caipora, caboclo d'água, curupira, armavam emboscadas em bosques, beiras de rios, etc.

Abstraindo sobre o que já foi abordado, as pessoas articulam seus sistemas simbólicos sobre as realidades espirituais, transcendentes, sobrenaturais, mediadas pelo impacto conotativo e carga semântica na representação de seres, fenômenos e ideias de nosso mundo, e pelas impressões que lhe são impingidas na vida, no mundo social, na própria natureza. Assim, muito popular entre os hebreus também era a ideia de “corte celestial”, sua divindade como Rei. Por exemplo, em expressões de “buscar a face” do Senhor, a ideia é tomada da busca de se ter audiência com os reis e serem atendidos por eles. O próprio termo “El” entre os hebreus às vezes era usado na acepção de uma mescla do Rei divino e a corte. Nesta corte atuaria um Promotor, um Acusador, que era um destes espíritos dos quais falamos acima; era inimigo declarado dos humanos. O nome com o qual mais se sagrou foi “Ha Satan”, O Adversário.

Sob influência persa, o que se incrementou, aí então já no judaísmo ( pois as tribos israelitas do norte foram deportadas pelo Império Assírio nas décadas finais do século VIII a.C. e perderam-se na história, permanecendo o reino do Sul, Judá (para o qual houvera uma migração maciça de refugiados do Reino do Norte no período imediatamente antecedente), que mesmo com a deportação pelo Império Babilônico nos inícios do século VI a.C.; a tribo de Judá e juntamente, em grande parte, a de Benjamim, permaneceu coesa em diversas partes do Oriente Próximo e muitos na sua terra, com um grande retorno sob o Império Persa a partir da antepenúltima década do século VI numa política de repovoamento sob vassalagem imperial), foi que as antigas formas monstruosas do caos passaram a ter um papel maior na vida humana, na história. Se tornaram as senhoras de um mundo sombrio, para onde iriam pessoas desertadas de Deus; e passaram a atuar também como adversárias do projeto de Deus para Israel.

Já de um processo anterior se desenvolveu a ideia de que povos tinham um Guardião, e o povo de Israel tinha o Anjo Miguel.

Belial, Baal, se tornaram os nomes mais populares e difundidos para a grande Força do Caos. Superior em hierarquia com Ha Satan, aos poucos foram se fundindo. Temos, dos tempos de Jesus, documentos mais antigos preservados entre a Seita do Mar Morto, cuja biblioteca em Qunrã fora uma das maiores descobertas da história da arqueologia, que nos legam textos em que interagem as crenças em Belial e Ha Satan, ambos por trás das forças das guerras dos impérios opressores odiados – em especial, “Manuscritos da Guerra”, da Biblioteca de Qunrã, capítulo 13.

Com a ideia de Belial e Ha Satan se fundindo, temos aí um grande ser do mal, com um caráter de trazer o caos na criação e no mundo, a opressão na geopolítica e inimigo de cada ser humano, atuando para destruir sua vida e lhe buscando afastar da comunhão com Deus, ideia já desenvolvida nos tempos da origem do cristianismo. Onde também veio ganhando corpo outra dimensão extra para o ser maligno.

Um assunto extenso seria traçar aqui a polêmica no judaísmo quanto a relação entre a divindade transcendente ao mundo com o próprio mundo. Deus seria tão “outro” em relação a este mundo, que como pensar sua atuação no mundo sem comprometer sua transcendência. De fato, o judaísmo caminhara para uma concepção monoteísta de caráter muito mais acentuado do que nos tempos mais antigos e mais ainda no período que o antecedeu, na religiosidade hebreia.

Uma das respostas (precisaríamos de um bom estudo só para apresentar várias destas respostas) foi salientar o papel dos anjos. Eram mensageiros e agentes com uma “procuração” divina, atuando para implementar a vontade de Deus no mundo e auxiliar os homens nos propósitos divinos. Mas, diante da constatação do caos e maldade no mundo, uma “ovelha negra” na família angelical se fez indispensável: o arquirrival de Miguel (ou Gabriel ou Rafael – que aparecem ou com menor destaque, ou com grande destaque mas em menos documentos), o anjo rebelde Samma'el. Um anjo que se rebelara contra Deus e arrastara muitos consigo, e se prepara para o grande combate final cósmico (como consta na literatura judaica do tempo das origens cristãs - Jubileus 23,29; Assunção de Moisés 10,1).

Assim, vemos alternando entre estes papéis o nome de Belial, Ha Satan, e posteriormente (com menos aparições em documentos cristãos) Samma'el, para o mesmo ser, fundidas sua características.

Como testemunho atestando as raizes antigas das quais brotaram este imaginário, podemos ver nas passagens que falam da queda espiritual, política e histórica de alguns grandes reis. Da onde proveio o termo “Lúcifer”, Filho da Luz. Filho da Luz era o nome dado a Vênus. E era comum os reis se associarem a astros, sendo Vênus um nome auspicioso. E o duplo sentido, o sentido cósmico e espiritual presente como alusão nesta epopeia de queda do rei soberbo, pode ser compreendido em que, literariamente, estas passagens são intimamente ligadas à literatura chamada “apocalíptica”; literatura na qual, como vemos ilustrado no livro “Apocalipse” do cânon do Novo Testamento (temos muitos “Apocalipses” no judaísmo contemporâneo de então, bem como presença marcante nos livros veterotestamentários de Ezequiel, Daniel, Joel, algumas passagens em Isaías, etc.), os traços das batalhas dos poderes cósmicos por trás do palco da história humana é marca característica.

De onde mestres cristãos dos primeiros séculos viram nesta passagem uma ilustração da queda do Demônio enquanto um Anjo especial que se revoltou contra Deus, crença já firmada independentemente delas.

Filho do homem, levanta uma lamentação sobre o rei de Tiro, e dize-lhe: Assim diz o Senhor DEUS: Tu eras o selo da medida, cheio de sabedoria e perfeito em formosura.
Estiveste no Éden, jardim de Deus; de toda a pedra preciosa era a tua cobertura: sardônica, topázio, diamante, turquesa, ônix, jaspe, safira, carbúnculo, esmeralda e ouro; em ti se faziam os teus tambores e os teus pífaros; no dia em que foste criado foram preparados.
Tu eras o querubim, ungido para cobrir, e te estabeleci; no monte santo de Deus estavas, no meio das pedras afogueadas andavas.
Perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado, até que se achou iniqüidade em ti.
Na multiplicação do teu comércio encheram o teu interior de violência, e pecaste; por isso te lancei, profanado, do monte de Deus, e te fiz perecer, ó querubim cobridor, do meio das pedras afogueadas.
Elevou-se o teu coração por causa da tua formosura, corrompeste a tua sabedoria por causa do teu resplendor; por terra te lancei, diante dos reis te pus, para que olhem para ti.
Ezequiel 28:12-17

Como caíste desde o céu, ó estrela da manhã, Filho da Aurora! Como foste atirado à terra, subjugador das nações!
E no entanto, dizias no teu coração: Eu subirei ao céu, acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono, e na montanha da Assembléia me assentarei, nos confins do norte.
Subirei sobre até o céu, e serei semelhante ao Altíssimo.
E contudo foste precipitado ao Sheol, ao mais profundo do abismo.
Os que te virem te contemplarão, considerar-te-ão, e dirão: É este o homem que fazia estremecer a terra e que fazia tremer os reinos?
Isaías 14:12-16

Entremeado a esta passagem de Isaías, vê-se o pano de fundo de antigas tradições, constando com uma antiga divindade de sistemas históricos caananitas: Shahar = Aurora, e disputas por poder na corte da divindade máxima do panteão, El, que culminou com o desdouro do desafiante sacrílego no mundo da morte. A memória destas sagas vem reproduzida aqui num poema profético que interpreta a vaidade e quebra do poder de um rei conquistador soberbo.




Bibliografia Consultada:

Flusser, David. Judaismo E As Origens Do Cristianismo, V.2. Capítulo 8, “O Magnificat, o Benedictus e o Manuscrito da Guerra”. Rio de Janeiro: Imago, 2001.

Foster, Benjamin R. Before the Muses: An Anthology of Akkadian Literature. Bethesda, CDL, 2005

Kelly, Henry Ansgar. Satan: uma biografia. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2008.

Mettinger, Tryggve. O Significado e a Mensagem dos Nomes de Deus na Bíblia. São Paulo: Ed. Academia Cristã, 2008.

Smith, Mark S. O Memorial de Deus: História, memória e experiência do divino no Antigo Israel. São Paulo: Paulus, 2006.

Sparks, Kenton L. Ancient Texts for the Study of the Hebrew Bible: A Guide to the Background Literature. Peabody, Mass.: Hendrickson, 2005.

Wray, T. J., e Gregory Mobley. The Birth of Satan: Tracing the Devil’s Biblical Roots. New York: Palgrave Macmillan, 2005.