31 de maio de 2009

A FESTA DE PENTECOSTES - parte II (final)



Com os apontamentos da parte I, podemos ver a multiforme e rica significação da “descida” do Espírito Santo sobre os apóstolos e todos os comissionados para a evangelização cristã, naquele momento especial de Pentecostes. Sob a luz desta, deslumbramos, "com" e "por" aqueles que viam até então uma das comemorações do nascimento da nação judaica em sua aliança com Deus, o nascimento da Nova Nação de Deus pela Nova Aliança em Cristo.



O elemento das “línguas de fogo” também não era meramente efeito especial: são sinais paralelos ao da manifestação de Deus no Sinai -> Ex.19.18-19; Dt. 5.19-21. Mas dessa vez, Deus fora até ao meio do povo, em cada um. Em Ex. 19.16 e Dt. 5.29 temos mencionado que as pessoas ouviram o estrondar de “vozes – hebraico: kolot – uma imagem presente no Sl. 18.9.

O retrato do momento em que os discípulos falaram em línguas das diversas nações - que na forma como foram dispostas no relato, do oriente para o ocidente com a Judéia no centro, simbolizavam toda a civilização humana - de onde eram provenientes os fiéis que vieram à Festa celebrar e adorar, já evocava a universalidade da missão de serem testemunhas de Deus em Jesus Cristo a todos os povos, transcedendo as barreiras nacionais. Remontando ao extremo simbolismo da linguagem, apontava para a reintegração da unidade entre os seres humanos perdida devido ao pecado, à alienação para com Deus.


Conseguimos agora assimilar, ainda que assombrados, a impetuosidade eloqüente do humilde e iletrado pescador Pedro, que pouco tempo antes vivera uma crise dilacerante quando da negação de Jesus três vezes antes da crucificação.

No discurso registrado, ele testemunha sobre a inauguração de Novos Tempos, na perspectiva da história da busca do homem por parte de Deus, a despeito da alienação daquele diante dEle. A salvação advirá do invocar ao Senhor, que agira de maneira especial e singular naqueles tempos. Do mal, da rejeição e assassinato de Jesus, veio o Bem, onde através da morte do Messias, os laços da morte [que se dão com a mentira em seus corações – Jo.8.44] que atinge a todos os homens será abolida; e por meio da Ressurreição do seu Filho, se estabeleceria o Reinado de Deus, na manifestação de Seu plano.



A primeira “Grande Conversão” é assinalada como uma ação pró-ativa de Deus, de iniciativa dEle, concedendo o Dom de Seu Espírito Santo.


Iluminado fora o Papa do século V, Leão I, conhecido como “Leão, o Grande”, ao proclamar:

(...) quando o Espírito Santo encheu os discípulos do Senhor no dia de Pentecostes, não se tratava do primeiro exercício de seu papel porque os patriarcas, profetas, os pais e todas as pessoas santas de eras anteriores foram nutridos pelo mesmo Espírito Santificador (...) embora a medida dos dons não tenha sido a mesma.
Sermão 76, PL 54.


FESTA DE PENTECOSTES - parte I


Cinqüenta dias após a Páscoa, Igreja Cristã comemora a Festa de Pentecostes, a "descida" do Espírito Santo na formação da Igreja. Uma das mais importantes comemorações da memória cristã, mas de forma proporcional, muito vaga no imaginário popular. Poucas pessoas têm noção do quê significa para o Cristianismo, e muitos cristãos não têm idéia da dimensão que implica para si.

Vamos prosear um pouco a respeito de Pentecostes. É claro, nossa intenção aqui não é a de esboçar um tratado teológico, mas algo útil para os leitores, um compartilhar de um pouco da espiritualidade cristã com outros cristãos e pessoas de outras crenças.

Tomemos o relato do evento, registrado no livro de Atos, capítulo 2. Está inserido numa sessão, que vai até Atos 8.3, que relata a característica da expansão dos cristãos em Jerusalém e Judéia.

Eles, os discípulos (homens e mulheres) estavam no período da celebração judaica da Festa de Pentecostes. Era também chamada “Festa das Semanas” [Ex. 34.22] e "Festa da Colheita" [Ex.23.16]. Nela davam-se ações de graça pela colheita, era uma das três “Festas de Peregrinação”, em que todos os judeus iam a Jerusalém [Mt. 20.17-19]. Celebrava-se a providência de Deus, e os primeiros frutos da colheita do trigo eram apresentados a Ele no Templo. Comemoravam a entrega da Torah [ os termos da Aliança de Deus] a Moisés – Ex. 19.1.


O Grande Protagonista deste evento envolvendo os apóstolos e os primeiros cristãos fora o Espírito Santo. Com esta compreensão, é necessário, imprescindível, refletirmos um pouco sobre Ele, na perspectiva cristã, para iluminar toda a reflexão.

O termo Espírito Santo, em hebraico é Ruah HaKodesh, aparecendo no Antigo Testamento, em passagens como Isaías 63.10-11. Aparece também o termo “Espírito de Deus”, Ruah Elohim, em Gn.1.2. É evocado também em Is.61.1

Seu caráter pode muito bem ser examinado à luz de suas ações e operações. Em Gn.1.2 e Sl. 104.30, a imagem do Espírito é apresentada como a presença criadora ativa de Deus. Em Isaías 48.16, o contexto é do profeta falando do juízo de Deus sobre a prepotência do orgulho dominador humano. Falava-se sobre o Império Babilônico próximo ao apogeu, poderoso, onde proclama-se que ele passaria com o tempo e cairia como todos os impérios. Israel também estava sendo admoestada por absorver a lógica que advinha da impressão pelo poder babilônico, enxergando a história pela a mentalidade dele, eclipsando a e fechando-se para a ação de Deus. Deus afirma que Sua ação se daria de forma que a interpretação humana da história não advinharia. Um ótimo recurso é termos em mente a imagem que os hebreus tinham do temível “vento leste” [ o termo ruah, em hebraico, significa primeiramente “vento”], que dos grandes desertos sobrevinham abrasadores apresentando as limitações humanas – cf. Is.40.7. Deus manifesta-se com Seu Espírito Santo.

Uma passagem crucial é a do profeta Ezequiel, no capítulo 37.9-10 do livro que leva seu nome. O Espírito vivificando ossos secos em um vale; daí se formou a grande imagem para os judeus da ação de Deus resuscitando seu povo para habitar numa Nova Criação revificada, pela ação e poder do Espírito.

Em Gn. 41.38-39; Ex. 28.3, 35.31; Deuteronômio 34.9; Juizes 14.6 e 14.19, 15.14-15 – o Espírito capacita agentes de Deus com sabedoria (entendida mais como discernimento, prudência e perspicácia do que erudição), destreza, bravura e desenvoltura para executar tarefas especiais.

Em Sl.51.11, Is.61.1, Ez.2.1-2, Miquéias 3.8 e Zacarias 7.12 – a unção [do hebraico Mochia, que conota consagração, dedicação especial, conferição de um dom] do Espírito era o fator de legitimação de um profeta ou mensageiro de Deus. Estaria presente no Messias [O Ungido] -> Is. 42.1-3.

Os evangelhos de Mateus (1.18, 20) e Lucas (1.35) apregoam que Jesus viera ao mundo pelo poder do Espírito Santo, nos relatos de nascimento. Em Lc. 1.35, é apresentado que com o Espírito Santo age o próprio "Poder" - δυναμις [do grego dunamis] do Altíssimo. O Espírito agia através do Messias, que fora ungido e guiado e legitimado pelo Espírito Santo para sua missão (Marcos 1.12, 3,29, Lc. 3.22,4.1; 4.14; 4.18]. Em Mateus, Jesus ordena o batismo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo Mt.28.17-20; Justino, "o Mártir", em cerca de 150 d.C., no "Apologia I.LXV-LXVII", e o Didaquê - documento que remonta ao final do século I para início do II - na cláusula VII, são fontes que atestam que esta se tornara a prática cristã.

O Espírito Santo, prometido por Jesus, [Lc.24.49, João 14.16], enviado pelo Pai em seu nome [Jo.14.26], seria o mentor da Igreja Cristã comissionada [Jo.14.16, 17.26, At.1.8].

Um detalhe interessante: no Talmude de Jerusalém, compilação de discussões e comentários de rabinos sobre a Torah e a fé, bem posterior aos evangelhos, podia-se ver que havia um entendimento, que nos comentários se dava pela reflexão principalmente da passagem de Mq. 5.1, secundariamente com Zc. 6.12 e Lamentações 1.16, sobre uma figura do Menahem – Consolador, que seria a mesma do Messias (Bettiakhat, 2,4). No Sanhedrin talmúdico, 98b, "Qual é o nome do Messias?..alguns dizem: seu nome é Menahem, o filho de Ezequias, já que está escrito 'Porque Menahem, [confortador] que poderia aliviar minha alma, está longe de mim' (Lamentações, 1.16)". Em Jo 14.16, Jesus porém fala que rogaria ao Pai, que enviaria "outro Consolador", do grego allos Paraklétos, que literalmente é "alguém chamado para estar ao lado".

Cristo se referira assim ao Espírito Santo, o Consolador
em Jo.16.7, enviado até os discípulos, permanecendo com eles para sempre [Jo.14.16], o Espírito da Verdade, que não advém do conhecimento do mundo [14.17]...


30 de maio de 2009

Símbolos da Igreja Cristã Nascente






Desde os tempos mais remotos da Igreja Cristã, encontramos em catacumbas e locais de culto, túmulos, escritos, etc., referências a três importantes símbolos: o "peixe", a "âncora" e as letras gregas "alfa e ômega".

Será que associavam o peixe como símbolo porque consideravam que eram 'peixes" (camaradas, cúmplices, protegidos) uns dos outros? Nããão, rsrss. Mas até que não é de todo falso...

Ao quê ele remonta? A um criptograma.

A palavra correspondente, no Grego, é Ichthus, escrita ao modo acróstico - escrita poética, solene, evocativa, etc., em que as letras de uma palavra-chave formam frases interligadas - nesse caso a frase confessional:

Iesus Christos Theou Uios Soter, que significa Jesus Cristo, o Filho de Deus, Salvador.

A âncora era uma forma que demarcava locais de reuniões, um estratagema para driblar a perseguição das autoridades. Seria uma forma disfarçada para a cruz. Representava para os cristãos um símbolo da esperança, a firmeza para a segurança da alma em chegar ao "porto seguro".

As letras gregas "alfa e ômega" rementem ao escrito do livro Apocalipse, que oferece uma imagem de Cristo como o "Alfa e Ômega", ou seja, o sentido da História Universal, o que dera o início a ela, e o que a consumará.

Estes símbolos foram retratados em especial, primeiramente nas catacumbas cristãs e mais adiante no tempo, em túmulos de cristãos.

29 de maio de 2009

O Messias vem ao Mundo: Parte II




Acompanhem-nos agora a partir do primeiro capítulo.

O Evangelista apresenta de cara uma genealogia. Pra quê essa genealogia? Um exercício diletante? Qual o significado ela teria para ocupar um espaço que Mateus julgasse importante apresentar.

Ele oferece uma dica, ao delimitá-la em três séries de quatorze (7+7) gerações; de Abraão a Davi, de Davi ao cativeiro Babilônico, e deste a Jesus; algo que aponta para uma relação com a ação de Deus se desvelando. Aponta que aquele que seria chamado o Messias pelos cristãos descendia de Abraão ( cf. Gn. 22.18), de Jacó (Nm. 24.17), Judá (Gn. 49.10), Jessé (Is.11.1), Davi (2Sm.7.13), Zorobabel (Ageu 2.22-23).

O termo empregado be’n, indica: primeiramente, filiação; além, descendência. Depois, pode indicar também atributos herdados/compartilhados; neste sentido, as qualidades especiais de Abraão (modelo de fé e obediência – Gn. 26.23-24), Davi (destacado como tendo seguido Deus de todo o coração – I Reis 14.8).

A genealogia apresenta um ponto de certa forma inusitado: cita e dá destaque a mulheres, que raramente são incluídas em genealogias; ainda por cima, mulheres “gentias”, adotadas na família do povo eleito de Deus. Tamar, Raabe (que fora uma prostituta), Rute, Beth-Sheba ("o rei Davi gerou a Salomão da que foi mulher de Urias"). Também menciona Manassés e Abias, personagens reprovados. Um fator indicador da concepção de que em Jesus Cristo a Nova Aliança com Deus seria universal, quebrando barreiras e incluindo tanto homens quanto mulheres, sem discriminação de etnia, nacionalidade e status social. E que Jesus teria vido também para redimir os pecadores.

Reparem no versículo 18: Mateus falando de Maria como “prometida”, [kiddushin = santificada]. Dêem uma lida no terrível texto de Deuteronômio 22. 13-29. Posteriormente, na Mishna quem “corneasse”outro homem é passivo de morte por estrangulamento (Sanhedrin 11.1); todavia, quem adulterasse com uma mulher noiva é punido tal qual quem praticasse incesto com a mãe: apedrejamento (Sanhedrin 7.4).

Prosseguindo, vemos que Mateus quer chamar atenção para a relação entre o nome de Jesus e o verbo ‘salvar’. O termo Yoshia, “ele salvará’, possui raiz semelhante a Yeshua, que é uma “masculinização” da expressão yeshu’ali, ‘salvação’ [ algum crítico teria que dizer também que o próprio nome de Jesus seria uma invenção, uma “profecia historicizada”].

Isso é mais um ponto que mostra como os cristãos buscavam ler os eventos na vida de Jesus à luz da Tanakh [o nome da Bíblia Hebraica] para, contextualizando-os, verem como ali se cumprira o plano de Deus, tendo o evento da obra de Jesus sido prefigurado nas Escrituras (confira especialmente Hebreus 10.1). Ali se cumpriam os desígnios divinos.

Vemos que o evangelho remete a concepção virginal de Jesus à passagem do livro de Isaías, capítulo 7. Há uma grande controvérsia neste ponto. A palavra hebraica que literalmente quer dizer “virgem” é b’tullah; o termo hebraico empregado em Isaías 7.14 é almah, que literamente é “jovem mulher”. O texto de Mateus usa como referência uma tradução grega, resultante de um trabalho coletivo por parte de escribas, de antes de 200 a.C. O termo empregado nela é o grego parthenos, cujo significado literal é “virgem”. Os escribas, para traduzirem assim, deviam se julgar concientes do ambiente semântico que circunda a palavra original, e não se tem indício de polêmica entre escribas envolvendo-o, e assim era usado normalmente no século I.

A Palavra almah é empregada como “donzela” em Gn.24.43 à Rebeca, sendo que em 24.16 se referia categoricamente a ela como b’tullah, ainda acrescentando que homem nenhum havia a “conhecido”. Em Êxodo 2.8, almah é empregada à Miriam, ainda uma criança, de menos de 10 anos, ou seja, uma virgem. Em Provérbios 30.19, aparece num contexto que fala do “caminho de um homem com uma virgem”. Em Cantares 6.8, aparece no plural alamoth, indicando virgens participando de um cântico festivo tocando instrumentos, uma imagem universal empregada em baladas épicas, reais, etc.

Também, o termo b’tullah apresenta flutuações semânticas; em Joel 1.8, fala-se de uma b’tullah pranteando um esposo de sua juventude (!!!).

O sinal – do hebraico ‘ot – na passagem de Isaías 7 ( Lucas retrata Maria como uma virgem perplexa com a notícia, sem fazer referência a essa passagem, em Lc. 1.34) seria destinada à “Casa de Davi”, a qual o profeta manda ouvir - no vs. 13-, referida no vs. 14 na segunda pessoa do plural: ~T,a. O primeiro plano da profecia era relacionado ao Ataque da Assíria a Judá, que veio a ocorrer no século VIII. Um juízo profético.

Seria este mais um elemento para influenciar as concepções dos primeiros cristãos de que seria Jesus, não mais Israel, o protagonista e o instrumento de Deus no plano redentor de consumar o Seu Reino e a renovação espiritual do povo compatível com o reinado. Jesus teria fundido na sua fé quanto a operação de Deus em sua missão, tanto apontamentos proféticos que apontavam para figuras individuais quanto para que sinalizavam uma participação corporativa de Israel [observar, por exemplo, que a figura do 'Servo do Senhor' - visceralmente associada à Jesus nos evangelhos - em Isaías 49.3 é uma representação coletiva de Israel ->Tu és meu servo, Israel, aquele por quem hei de ser glorificado; em 49.6, uma figura individual -> Pouco é que sejas o meu servo, para restaurares as tribos de Jacó, e tornares a trazer os preservados de Israel?]. Jesus levaria sobre si o encargo de Israel; assim, acabaria sendo a “pedra de tropeço” de muitos judeus.

Estranho nas passagens de Isaías 7 é que primeiramente relata-se que o filho de Isaías já havia nascido (vs.3). E na profecia, anuncia-se que a criança – ‘naar - ainda iria nascer; sendo que a mãe estaria grávida. O que reforçaria o entendimento, partilhado por muitos judeus do período histórico de Jesus e dos primeiros cristãos, que haveria sim um plano ulterior na profecia.

O nome immanu-El, em Isaías 8.10, é apresentado como significando “Deus está conosco”; num contexto versando em que por mais que as nações arquitetassem planos de subjugação, não havia de se temer, os planos delas seriam frustrados estando “Deus conosco”.

A profecia a que Mateus alude em 1.23 é de Isaías 8.10. Immanu El é apresentado com o significado "Deus está conosco", num contexto tratando que, por mais que as nações arquitetassem planos de subjugação, não havia de se temer, os planos delas seriam frustrados estando "Deus conosco".

Um ponto crucial para o plano maior do evangelho: José sendo incumbido de pôr o nome na criança, ainda que o nome 'Jesus' já tinha sido determinado. Assim, toca-se num ponto importante: a noção do Messias como sucessor e herdeiro do trono de Davi (Is. 9.7). Como a tradição judaica daquele período conciliava essa expectativa com o que já havia sido dito que nenhum "filho" do Rei Jeoaquim - também chamado Joaquim (II Reis 24.6) [descendente direto de Davi] jamais reinaria sobre Israel [Jeremias 22.30]? Poder-se-ia ter compreendido a vinculação pela adoção, por parte do evangelista. No documento judaico da Gemara, registro de tradições compilado no início do século III, atesta-se que o reconhecimento de um filho por parte do pai implicava a garantia do direito de herança ( Bara Batra, 134 a1). Em Mateus narra-se o episódio crucial que ilumina isso, na passagem de 1.21, em que o anjo incumbe a José de batizar a criança como 'Jesus'. Assim, lhe conferiria a filiação pessoal e dessa forma a filiação davídica.

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Traçaremos, de forma intercalada no Blog, diversas reflexões ainda, que passarão também sobre o cenário paralelo em Lucas, e o nascimento em Belém. Para que não se desvirtue a proposta do Blog, e não fique cansativo, deixaremos um espaço até então, para podermos ir “digerindo” o que foi escrito até aqui. E ínterim, vamos compartilhar muitos outros temas!


Shalom!!!

O Messias vem ao mundo


Os livros de Mateus e Lucas apresentam, na sua introdução, relatos sobre o nascimento de Jesus. Seria por mera curiosidade, ou haveria um significado especial em apresentarem estes eventos?

Vamos refletir sobre alguns dos significados que teriam para os cristãos, bem como judeus e “gentios” não cristãos, as passagens especificadas sobre o nascimento de Jesus, buscando também implicações para a espiritualidade cristã hoje.

Temos em mente que diferentes perspectivas, contextos e motivações nos relatos proporcionaram diferenças entre eles; não se tendo uma harmonia perfeita, temos porém um caminho sincronizado que se pode traçar entre ambos.

A – Ambos contextualizam o nascimento de Jesus durante o governo de Herodes Magno (Mt. 2.1; Lc. 1.27-34).
B – Maria não tivera relações com José antes de engravidar (Mt.1.18; Lc 1.27-34)
C – José não está envolvido na concepção de Jesus (Mt. 1.18-25; Lc. 1.34)
D – José é da linhagem de Davi (Mt. 1.16-20; Lc. 1.27; 2.4).
E – O anjo anuncia a concepção e o nascimento de Jesus ( Mt. 1.20-21; Lc. 1.28-30)
F – Jesus descende de Davi (Mt.1.1; Lc.1.32)
G – A designação do nome de Jesus antes do nascimento (Mt. 1.21; Lc. 1.31)
H - Jesus virá ao mundo concebido pela ação do Espírito Santo (Mt. 1.18- 20; Lc 1.35)
I – Jesus tem sua vocação como ‘Salvador’ da parte de Deus ( Mt.1.24-25; Lc. 2.11)
J – José e Maria se casaram antes de Jesus nascer (Mt. 1.24-25; Lc. 2. 4-7)
K – Jesus nasce em Belém (Mt. 2.1; Lc. 2.4-7)
L – A família vai residir em Nazaré (Mt. 2.22-23; Lc. 2.39-51)

Teremos em vista esse panorama ao tecermos nossas reflexões.

Podemos compreender bem o que o erudito John.P. Méyer observou:
"(...)Quaisquer concordâncias entre os dois [Mateus e Lucas] nessas narrativas se tornam historicamente significativas, em especial quando o critério da múltipla confirmação é invocado. Essas concordâncias em duas narrativas independentes e profundamente contrastantes representariam, no mínimo, um recurso a uma tradição mais antiga, e não a criação dos evangelistas".
- extraído de Um Judeu Marginal. Repensando o Jesus Histórico. Volume Um: As Raízes do Problema e da Pessoa, Rio de Janeiro, Imago, 1993,pp. 213-214.

Comecemos com a narrativa do capítulo primeiro do Evangelho de Mateus.


É imprescindível que tenhamos em mente algo que ilumina a abordagem de Mateus, e de grande parte dos cristãos no Novo Testamento, em relação às Escrituras (que para eles, eram o que os cristãos hoje chamam de Antigo Testamento). Sem buscarmos uma mínima “empatia” nesse ponto, nos deparamos com um obstáculo no qual muitos pesquisadores tropeçam. Eles enxergam que algumas referências do evangelista para com as passagens das Escrituras não correspondem ao que elas se referiam de forma mais direta na situação histórica imediata delas. E daí, entendem que se fez uma “profecia historicizada”, ou seja, transformaram suas expectativas ulteriores em relação às profecias em histórias inventadas, para respaldarem-se e atribuírem significado especial à Jesus.

Dentre os métodos de interpretação das Escrituras por parte dos mestres judeus do século I, há um chamado Remez. Baseava-se num entendimento de que, se no contexto do registro escriturístico, Deus estava agindo em seu plano na história, referente à aliança, promessa, salvação e Seu reinado, haveria significados mais profundos no escrito que escapavam ao conteúdo mais imediato ao se redigi-lo, com dicas dadas pelo Deus que inspira o texto. O essencial é que a ênfase não fica assim na ação humana, mas na ação e no falar de Deus por intermédio dela.


Os cristãos buscavam na Escritura a coerência interna para sua confiança messiânica confirmada pela ressurreição de Jesus. Retomavam eventos da vida de Jesus e destacavam-nos pela sua significação para a Igreja. Não buscavam "mascarar" a alusão, escondê-la. A apresentavam abertamente, dizendo que “aconteceu segundo as Escrituras”, o que conta, pois caso contrário poderia sim ser interpretado como um macete para dizer aos judeus não-cristãos: “olha só, estamos provando pra vocês”, no que, é claro, poderiam esperar contra-respostas: “o quê, vocês estão inventando os relatos para casarem com as Escrituras”. Eles deviam imaginar que, diante de respostas assim, poderiam ter com o que argumentar que não estavam forjando.

Com esse procedimento buscavam descortinar o que entendiam como o propósito maior de Deus na história atuando nos acontecimentos de Jesus. De forma tão natural que dá pra se imaginar que nem supunham que alguém iria querer usar isso justamente para desacreditá-los; antes, as controvérsias seriam se as Escrituras realmente apontavam para aquilo. Aliás, diziam que Jesus cobrava esse entendimento deles e se referenciava assim.

Deus e Criação na perspectiva cristã


A Criação, no foco bíblico-cristão, é um ato especial de Deus: deve sua realidade à vontade de Deus; Deus opera seu poder especial na redenção pois antes o operou na criação.

Claus Westermann [1], mundialmente reconhecido pela sua coleção de comentários sobre Gênesis [do grego Γένεσις, Génesis, "Origens"; do hebraico בראשית, Bereshit, "No Princípio"] indagando-se sobre a linguagem bíblica da obra criadora de Deus, pergunta: “Qual o sentido de tudo isto no contexto geral da Bíblia?” e adianta a resposta: “Ora, se Deus é aquele que sempre age e em tudo opera, então também o é na obra criadora. O redentor deve ser idêntico com o criador”. No tópico “A palavra como mediadora da criação”: “ É a palavra singular, imperativo autêntico introduzido pelo ‘Deus disse’, seguido pelo outro imperativo ‘faça-se!’, seguindo a execução exata da ordem ‘e assim se fez’. (...)Todos os atos importantes são precedidos de ordem divina adequada: no princípio da libertação Deus ordena a Moisés comparecer na presença do faraó; na teofania sinaítica Deus manda armar a tenda da reunião; no final da jornada pelo deserto Deus determina a passagem pelo Jordão e a entrada na terra prometida.”

Então, a perspectiva bíblica da Criação revela que o valor da desta deriva de ser fruto da ação especial e aprovadora de Deus, ou “Deus viu que era bom”. Ela não é uma ilusão, nem é má, nem possui um caráter sagrado independente de Deus, não é divina, não é Deus. É criatura. De Deus ela foi dotada de beleza, pois o adjetivo hebraico tob - bom, notável - também tem conotação de belo – “e Deus viu que era belo”. As duas coisas estão associadas, sendo importante notar que, diferentemente dos gregos que expressavam o apreço pelo belo em especial na escultura, os hebreus o expressavam especialmente na poesia.

Claus Westermann destaca também que os “seis dias” do relato de Gênesis inauguram-se pela distinção entre “luz e trevas”, expirando com a distinção do sábado em relação aos demais, como o dia consagrado a Deus, aparecendo assim como a meta da história de Israel e posteriormente da humanidade, apontando ao culto divino. Assim, a história tem uma meta.

Refletindo sobre Gênesis 2,4-9, o teólogo anglicano e físico John Polkinghorne [2] expõe, num diálogo mediado pela sua formação científica, que A continuidade da humanidade com a natureza está sendo afirmada de uma forma clara e notável. Isto é metade da história. A outra metade é que 'Deus insuflou nas suas narinas o hálito da vida, e o homem se tornou um ser vivo'. (...) A criação não é algo que Deus fez, de uma vez por todas, muito tempo atrás. É algo que Ele vem fazendo o tempo todo e que continua a fazer hoje. Quando se para para pensar nisso, este é o modo como seria de se esperar que o Deus de amor agisse. Ele não iria simplesmente estalar os dedos em um tipo de mágica e forçar as coisas a acontecer. O Deus de amor é paciente e sutil e permite que a criação faça a si mesma.

Com isso, podemos enxergar que “cataclismas naturais”, como furacões, terremotos, vulcões, tsunâmis, etc., são manifestações dessa qualidade relativamente autônoma da criação, o modo dela se auto-regular e manter-se. É o preço de uma natureza que propicie haver uma liberdade, inovação, espontaneidade. E assim, de haver a oportunidade para agentes morais como nós virem à tona. Contudo, e dessa forma, por si só, a criação está sujeita também à deterioração.

A criação então é parte do projeto integral de Deus de redenção, consumada na Nova Criação . Isso é ilustrado claramente na epístola de Paulo aos Romanos, capítulo 8, versículos 19 a 23:
Pois a criação espera com impaciência a revelação dos Filhos de Deus: entregue ao poder do nada – não por vontade própria, mas por autoridade daquele que lha entregou – ela guarda a esperança, pois também ela será libertada da escravidão da corrupção, para participar da liberdade e da glória dos filhos de Deus. – Bíblia de Tradução Ecumênica (TEB).

N.T.Wright [2], bispo anglicano de Durham, e reconhecido como dos maiores especialistas em Novo Testamento, costuma expor sistematicamente que o propósito da Aliança de Deus é contemplar toda a criação; expõe no livro “Simplesmente Cristão”: "Nós somos chamados para ser parte da nova criação de Deus, chamados para ser agentes desta nova criação aqui e agora.”

Em Apocalipse 11.18, há um elemento que passa batido nas reflexões cristãs: dentre os pecados postos sob juízo e que serão julgados, está a destruição da criação:
As nações encolerizaram-se, mas foi tua cólera que chegou. É o tempo do julgamento dos mortos, tempo da recompensa para teus servos, os profetas, os santos e os que temem o teu nome, pequenos e grandes, tempo da destruição para os que destroem a terra. –T.E.B.

Outro teólogo anglicano, Alister McGrath [3], que também é PhD em biofísica por Oxford, expõe o ensino de um outro teólogo, Calvin B. DeWitt, que se destaca em estudar e expor as percepções ecológicas na Bíblia, apresentando quatro princípios fundamentais nesta:

1 – O ‘princípio da manutenção da terra’: assim como o criador mantém e sustenta a humanidade, a humanidade deve, da mesma forma, manter e cuidar da criação do criador.
2 – O ‘princípio do sábado’: deve-se permitir que a criação se recupere do uso que o ser humano faz dos seus recursos.
3 – O ‘princípio da fertilidade’: a fecundidade da criação deve ser desfrutada e não destruída.
4 – O ‘princípio da satisfação e da limitação’: a humanidade deve reconhecer seus limites em relação ao sistema da criação, com fronteiras definidas e que devem ser respeitadas.

De fato, a doutrina da Criação implica que o ser humano não é dono da Terra, pois Deus o é; uma das melhores metáforas correspondentes ao nosso papel seria o de jardineiros.

O teólogo Mario Antonio Sanches [4] expõe em “Bioética, Ciência e Transcedência”, sobre as novas perspectivas de estudo da Bíblia sobre a relação do ser humano com a criação : “Tem-se por exemplo, valorizado muito a perspectiva de que somos administradores da criação ou procuradores de Deus – aí o compromisso de zelar pela criação transparece como fundamental”. De fato, se fôssemos somente uma coisa a mais no meio de outras coisas no mundo, fruto apenas da casualidade, não teríamos nenhuma responsabilidade pessoal especial, tendo nossas relações com a natureza apenas o caráter utilitário.

Referências:

[1] Westermann, Clauss. “Fundamentos da Teologia do Antigo Testamento”. Ed.Academia Cristã. 2005.

[2] Polkinghorne, John. “Um Cientista Lê a Bíblia.” Loyola.1998.

[3] Wright, N.T. “Simplesmente Cristão”. Ed. Ultimato. 2008.

[3] McGrath, Alister. “Fundamento do Diálogo entre Ciência e Religião”. Loyola. 2005.

[4] Sanchez, Marco Antônio. “Bioética: ciência e transcendência”. Loyola. 2004.

Canção de Jeremias

Abriremos nosso cantinho com uma linda música de Sinead O'Connor, "Something Beautiful (Jeremiah)", do álbum "Theology". A canção é inspirada no profeta Jeremias e sua mensagem.

Na janela (ou link) destacada, há um excelente estudo sintético deste livro bíblico, por parte professor Airton José da Silva, que leciona Antigo Testamento/Bíblia Hebraica na Faculdade de Teologia Dom Miele do CEARP - Centro de Estudos da Arquidiocese de Ribeirão Preto, SP.

Sinead O'Connor, para compor esse álbum, engajou-se em leituras bíblicas e em diálogos com colegas teólogos acadêmicos, como Stanley Hauerwas. Ela consegue nessa música, retratar o âmago da profecia de Jeremias, em seu chamado para expressar a imagem e sentimento (sim, sentimento) de Deus chorando por um povo mais ocupado com uma religião de acomodação social e institucioal do que com uma fé viva e uma verdadeira abertura para o um relacionamento pessoal com Ele; de forma que se leva um povo a, em nome de Deus, justificar a violência, injustiça e falta de compaixão, em prol do status quo.

Faço uma possível tradução da letra para o português:

Eu quero fazer
Algo bonito
Para Ti e de Ti
Para mostrar-Te
Para mostrar-Te
Eu Te adoro
Oh, Tu!

E Tua jornada
Ao meu encontro
Que eu vejo
E eu vejo
Tudo que impeles;
Louco por Ti
E por Tua causa

Eu não poderia agradecer-Te em dez mil anos
Se eu chorei dez mil rios de lágrimas
Oh, mas Tu conheces a alma e Tu sabes o que faz o ouro
Tu que dás a vida através do sangue

Sangue, oh sangue, sangue

Oh eu quero fazer algo
Assim formoso para Ti
porque eu prometi que é o que eu faria para Ti.
Com a Bíblia eu sou arrebatado
Eu sei que Tu perdoaste minh'alma
Porque tal era minha necessidade às vésperas de um Natal crônico
E eu penso que nós concordamos que deveria ter sido livre

E Tu me seduziste

Eles encobrem as feridas de meu povo pobre
Como se elas não fossem nada
Dizendo "paz, paz"
Quando não há nenhuma paz

Eles encobrem as feridas de meu povo pobre
Como se elas não fossem nada
Dizendo "paz, paz"
Quando não há nenhuma paz
Dias sem número...
Dias sem número...

Agora pode uma noiva esquecer-se de suas jóias?
Ou uma dama seus ornamentos?
Contudo, meu povo me esqueceu
Dias sem número...
Dias sem número...
E em seus desejos
Oh, aí desejam
E em seus desejos
Quem encobrirá suas feridas?
Quem encobrirá suas feridas?