10 de outubro de 2013

Uma prece pela respiração

Pai, de fecunda Eternidade,

me ajude, em mim e sobre mim, ao meu lado, a ser mais centrado em Ti para estar mais centrado quando passo pelas espirais da vida; mais aberto a Ti quando sufocado, e para que mesmo de quando meus turbilhões internos, possa escutar melhor ao próximo.

Ajude-me a me organizar melhor para que lhe deixe presente no comum e cotidiano, a ser mais atencioso com o que vivo no presente, não perdendo a dimensão da eternidade em minha consciência. Me ajude, me ajude a amar mais e melhor ao meu próximo como queres, e cuidar mais responsavelmente de mim. Que seja mais sensível e respeitoso com Teu Espírito Santo, em mim, no mundo, na criação. Que leve mais a sério a realidade de que Jesus Cristo é o amado do vórtice do meu ser, o referencial e com quem meu fôlego aspira ser unido, o sentido que pode dar significado à minha vida. E que significa muito que o Senhor se importa conosco e não desiste de nós, a despeito de nós mesmos. Me ensine a valorizar melhor as pessoas importantes de minha vida, não só esperando raros momentos de arrebatamento, mas no esforço do normal. Me ensine a ser mais grato e vivo.

Amém, amada Fonte.

Louvo-te e a Ti dou graças por Tua imensa Glória.

22 de setembro de 2013

A parábola do Senhor Magnânimo

E dizia também aos seus discípulos: Havia um certo homem rico, o qual tinha um mordomo; e este foi acusado perante ele de dissipar os seus bens. E ele, chamando-o, disse-lhe: Que é isto que ouço de ti? Dá contas da tua mordomia, porque já não poderás ser mais meu mordomo. 
E o mordomo disse consigo: Que farei, pois que o meu senhor me tira a mordomia? Cavar, não posso; de mendigar, tenho vergonha. Eu sei o que hei de fazer, para que, quando for desapossado da mordomia, me recebam em suas casas.
E, chamando a si cada um dos devedores do seu senhor, disse ao primeiro: Quanto deves ao meu senhor? E ele respondeu: Cem medidas de azeite. E disse-lhe: Toma a tua obrigação, e assentando-te já, escreve cinqüenta. Disse depois a outro: E tu, quanto deves? E ele respondeu: Cem alqueires de trigo. E disse-lhe: Toma a tua obrigação, e escreve oitenta.
E louvou aquele senhor o injusto mordomo por haver procedido prudentemente, porque os filhos deste mundo são mais prudentes na sua geração do que os filhos da luz.
E eu vos digo: Granjeai amigos com as riquezas da injustiça; para que, quando estas vos faltarem, vos recebam eles nos tabernáculos eternos.
Quem é fiel no mínimo, também é fiel no muito; quem é injusto no mínimo, também é injusto no muito.
Pois, se nas riquezas injustas não fostes fiéis, quem vos confiará as verdadeiras?
E, se no alheio não fostes fiéis, quem vos dará o que é vosso?
Nenhum servo pode servir dois senhores; porque, ou há de odiar um e amar o outro, ou se há de chegar a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom [Riquezas].


Alguns movimentos sectários no judaísmo dos tempos de Jesus buscaram e apartar da sociedade que para eles, já estava condenada; se consideravam os “Filhos da Luz”, dividindo o campo humano entre eles e os “filhos das trevas”. Em um documento [ os documentos citados a seguir foram extraídos de David Flusser, “Judaísmo e as Origens do Cristianismo”, vl.1, cap. 9] da comunidade de Damasco lê-se que deviam “manter-se à parte dos filhos da perdição, a saber, a abster-se da riqueza impura da iniquidade” - Documento de Damasco 6,14-15. Se separavam assim da vida social e isso incluía o sistema econômico, com o qual a pureza ritual a que consagravam suas vidas se contaminaria, em que os outros “maculam-se nos caminhos da idolatria e da riqueza da iniquidade”. Doc. Dam. 8,5

Em Qumrã há documentos em que se apresenta a postura que concebiam de Deus em relação a isto, “Não mostrarei ciúme do espírito do mal e minha alma não cobiçará a riqueza da iniquidade (...)” 1QS 10,17-20.

O sentido da “riqueza” nos Manuscritos do Mar Morto apresenta-se como algo derivado do modo de vida corrompido dos estranhos às comunidades sectárias, “Assim, nenhum membro será unido com ele em sua obra ou em sua riqueza, para que o membro não se macule com iniquidade culpada, mas se manterá distante dele em cada questão(...) e todas suas ações são sujidade perante ele e a impureza está em todas as suas riquezas”. 1QS 5,14-20.

Nesta parábola podemos então presenciar um notório diferencial de Jesus em relação ao ethos de movimentos religiosos sectários, com uma ética orientada positivamente: menos do que fugir da contaminação, o ideal é produzir algo de bom. Diante das “riquezas da iniquidade”, menos do que fugir do mundo, se é chamado a desviar de produzir maldade para produzir o bem ao próximo.

O administrador desonesto, caracterizado como “infiel” e “filho das trevas”, é alguém que e encontra surpreendido e iluminado em sua condição condenatória ante ao seu senhor. É envergonhado e digno de castigo e reclusão. E sua condição é deixada clara: o senhor o demite, ele não tem mais condições de cuidar dos bens. Mas ele vê ainda a misericórdia deste senhor: ele não é enviado à prisão ainda. Pode ser um sinal de que ele tem ainda a oportunidade de ser uma nova pessoa aos olhos de quem ele prejudicava. Ele extorquia os colonos arrendatários que pagavam com parte da colheita como aluguel, se apropriando do que recebia “por baixo do pano” e assim também, ele que provavelmente recebia uma comissão do senhor pelos contratos, agia desonestamente para com o patrão. Ainda que sem status legal mais para negociar com os arrendatários, ele age ainda como espertalhão, chamando os devedores, chama um por um para poder realizar sua trama, sem que já passem a lhe considerar um sujeito pária, sem legitimidade para tratar com eles, e desta forma eles presumem que a transação é legítima. Eles então acreditam que o senhor autorizou diminuir suas contas, como um abono.

Provavelmente os colonos festejaram neste caso a magnanimidade do senhor de terras para com suas situações devedoras. E o senhor se dá conta do que aconteceu. E foi se fiando nesta magnanimidade e generosidade que o mordomo agiu, ele que reconheceu sua culpabilidade não tendo se queixado da demissão; pois não concebesse assim, estaria mais perdido do que antes. Ele arriscou-se totalmente. E nessa generosidade o senhor das terras pagou o preço pela liberdade e restauração da reputação do mordomo ante à comunidade, e a quitação da situação de endividamento dos arrendatários. E age em sua graça.


15 de setembro de 2013

Percurso

Este é o texto 'Percurso", ao qual me referi na última crônica postada no "Cristianismo, Meramente".

Ele começou a se formar, para depois com ele aflorar um “si próprio”, sem alguma expressiva anunciação. Sim, projetava-se uma meia luz galgaz entrecortada, em passagens ao redor do ventre vogante que se contorcia (de dor?), uma ou outra meia-luz lívida como um reflexo de adaga úmida à pedra; por onde ele dimanaria, era uma mandala alvacenta que ia tomando a forma de um bolor. Nasceu.

Mas não houvera aquela cerimônia de um estrondoso ribombar de surdos de flandres, marchas de hostes e rasgados de carnes irradiadas e fulgurosas. Não houvera bailados de chicotes argênteos incandescentes. Mas um abafado - não de todo silente - gorjear de bolores aeriformes que foram ficando caldeados e túrgidos, como uma espuma de um sumo de chumbo.

Dimanara em um dia que veio sem chegar a nascer, em meio a incontáveis irmãos e irmãs. Falavam desvairadamente todos ao mesmo tempo, como num almoço de domingo em família numerosa de italianos, uma grande e amorfa família. Todos estavam vislumbrados e já nostálgicos, se cumprimentando e despedindo ao mesmo tempo.

Ficou maravilhado por ver aquele mundo para o qual saiu! Ele estava embebido nos brandos raios de claridade que nesse caldo, caldo tênue, invade e se esconde atrás das formas. Eram todos impelidos por uma força ignota, singrando um oceano de ar, e ela conferia um sentido para seus nascimentos e vidas, embora sem dar significado para suas existências - não sabiam em quê elas consistiam, para onde eram levados e afinal, o que realmente estavam fazendo. Não podiam superar a força, apenas continuar rasgando a resistência do vento que ao soprar dava contorno parabólico e distorcido às suas trajetórias.

Constatava que em meio aos irmãos e irmãs faziam algo que não seria apenas obra da diáfana luminosidade, ela não seria capaz de tanto; transfiguravam-lhe a frequência das ondas de reflexão nas formas e moldes em movimento que distinguiam. Em termos que eles ainda não tiveram tempo de aprender - e tempo era algo que lhes fora dado parco, apenas em efemeridade para imaginar como seria ter mais - as cores ficavam mais expressivas.

Conseguia olhar através de si mesmo, por meio dos reflexos do seu interior; via cenas e objetos foscos; as cenas e objetos foscos adquiriam padrões mais lapidados, pela perspicuidade fulcral da córnea que o torneava por inteiro. 

Percebia alguns traços de contornos concatenados, esvoaçando, atirando-se para todos os lados, agitados, assustados com o ímpeto da chegada da família, e quis brincar – como brincam as baleias orcas sem fome com as focas, os gatos com as baratas, os cães com os pássaros – excitado por um sentimento de poder.

 Até que, celeremente, se sentiu mais diminuto e seu ser foi invadido por uma comoção de transitoriedade, culminando quando a gota acometera e se dissipara numa poça entre rochas de ametista, desgastadas por musgos. Houve, por um singular instante, a sensação intensa de se converter em ressonâncias, de brotar de si um continuum, jorrando, enfrentando e irrompendo contra a força, até que...

Sobre a poça límpida quedara uma folha de carvalho emugrecida, pairando, flutuando...

"A Queda" - René Magritte


25 de agosto de 2013

"Identificação: regando as raízes" - uma crônica

“Sou uma gota d'água
 sou um grão de areia”



E subitamente nosso dia mofa. Como mofo de geladeira. Nos deparamos com aquela notícia. Não foi com parente nosso, não foi com amigos. Não era alguém próximo, mas transpomos toda a distância numa ponte de facada gelada no meio de nosso peito. Foi com uma idosa, com um grupo, com uma população. Não necessariamente a mais pobre, o povo mais oprimido, a garota com a cara mais tímida e retraída. "Necessariamente”... como se tivesse alguma necessidade. Como se tivesse intrincado em alguma lógica esquemática... E o dia acaba. Será que ele pôde ter algum começo? Quando começara? Parece que se perdeu de vista... O nascer do sol se tornou tão gélido... e nossos olhos se cobrem de uma fuligem macerada, cinzenta, seca e pegajosa, que enevoa nossas vistas. É quando nos retraímos e não conseguimos partilhar das conversinhas- é o que se tornaram -, do papinho dos colegas de trabalho, dos risinhos das rodinhas, os olhares atravessados nos queimam, parece que o ambiente social ao redor se tornou um bêbado chato.

E por quê? E por quê?

De onde provém a música silente de piano e harpa? A voz docemente triste que parece ter vindo do reflexo pálido do luar no mar parado?

É horrível quando outros sentimentos mesquinhos vêm para manchar isto, como o borrado da maquiagem e o cheiro do ruge de uma meretriz sub-vulgar na paisagem da memória de alguém amado que corre o risco de ficar menos nítida.

Ideias que vêm de se ser o mudo profeta inaudito do mundo surdo. De usar esta melancolia pela dor ante a quem tornamos mais próximos do que o outro que são, para justificar as imposições de nosso ego, os nossos malfeitos e frustrações. Quando se transforma em mecanismo de compensação. Para motivar zombarias amarguradas da parte de quem não consegue se alegrar na festa se não for o centro das atenções. Isso vem para turvar mesmo quaisquer dos mais nobres sentimentos, como se fosse aquilo que algumas igrejas chamam de “setas do inimigo”. Mas para turvar; devido a inveja de não ser água.

Creio que este tipo de empatia não pré-fabricada é autêntica quando não nos leva a sentirmos superiores aos outros, ao mesmo tempo que não importa o quanto possamos nos debater, não afastamos um tipo de indignação, que não é racionalizada – não pode sê-lo – pelo mundo continuar  fazendo o que faz a todo dia e todo momento, tagarelando e barulhando sem parar, não se dando conta do que aconteceu com aquela pessoa. Quem o fez afinal, se não fomos nós, foi o mundo.

Me questiono de onde vem isso de brotar uma partilha de sentimento com pessoas que viveram ou morreram algo doloroso, mesmo a gente não tendo vivido aquilo, ou padecendo de um mal que não é nosso... não falo de uma empatia geral, nada de instinto gregário. Mas casos particulares que nos tocam e cortam diferentemente de quaisquer outros, uma comoção não artificialmente feita que nos domina, e fala em particular... Em meio a tantas agulhas caindo do céu. Iremos encontrar quase concomitantemente diversas notícias horríveis com alguém. Iremos assistir a muitas histórias lacerantes e comoventes, em outros filmes, livros... porque aquela em particular fala tanto conosco? Nos identificamos? Algo do inconsciente? Não, isso seria uma “psicanalização” que ela mesma seria uma racionalização arrogante. Não tem nada tal como um “chiste”. É como se no fundo da alma, o mesmo turbilhão que girou com aquele ser girasse em nós também, no nosso âmago, sua ferida resvalasse nas nossas.

Eu creio que qualquer tentativa de dissertar e descrever isto com artifícios de artigo científico, ou filosofia analítica, deixaria escorrer tanto como areia pura entre os dedos ao fechar a palma da mão. Não é moldável como argila. Apenas as forças conotativas das metáforas poéticas podem compartilhar conosco algo substancial do que ocorre aí, não para a gente “entender”,  mas se aproximar com a percepção e sensibilidade possível para com a textura e temperatura da areia.

Eu sonhei acordado que, em nossos recônditos, no âmago de todos nós, há um poço. Um poço após camadas escuras... sempre cai água, nunca se enche, a não ser no transbordamento quando da morte.  Sempre cai água; gotejando, escorrendo fina pelas paredes, caindo como de uma bica, brotando das fendas... produz sons e vibrações diferentes, e se tudo fosse musicado, teríamos partituras diferentes. Mas no meio do grande ribombar de todos os tanques, uma frequência, um tom, uma forma do cair e do vibrar sintoniza com o de outro poço, e um acorde, ou até uma ária é produzida nesta afinação. Quem sabe até se a água que cai em um não era da mesma, misturando e se dividindo em um dos canais até o desaguar?

Quando esse arrebatamento pelo sofrer alheio é um límpido ribeirinho, algo de significativo e sanador ocorre em alguém, mesmo que seja um processo, um correr de rio entre pedrinhas e galhos caídos.

Conta-se que Beethoven estava numa fase mais soturna na vida quando morava em um conjunto de sobrados, com a surdez já num nível avançado, totalmente insatisfeito com seu momento criativo, desiludido da vida. Havia uma mulher que morava no sobrado ao lado ou abaixo no conjunto; era cega. Beethoven soube que ela afirmava que o maior dos seus pesares era não ver o luar. O compositor se engajou num sentido que captou para seu momento de vida, passando por cima de toda suas lamentações, e se entregou a compor “Sonata ao Luar”, uma das mais arrebatadoras de suas sonatas. Tocando-a ao piano, a mulher ouviu. E dissera então que vira o luar, crescendo, brilhando, se enchendo, minguando para poder novamente renascer.


Eu tive alguns momentos de aguda prostração com a notícia do arrebatamento da vida de B. Um bebê exalando vivacidade, pequena criança sedenta dos descortinares do mundo, uma criança despojada e pueril, que um dia falou embolado algo inteligível demais para nosso esquecimento distraído, um dia jogou papeis, sandálias, coisas coloridas para o alto, esfolou o cotovelo e pintou uma casinha, queria voar de helicóptero, veja só, queria ser repórter, atriz, secretária e aeromoça, andar na rua com sapato alto, óculos e pasta embaixo do braço, tricotar como a vovó. Ela rompia com sua luz pelas colinas. Serelepe com caretas ridículas, muxoxos, pedidos de mimo, sapeca, serelepe. Ela tinha revistinhas tipo Capricho, já aos onze; aos doze anos, ela já entendia de batons, aos onze anos, ela já examinava os meninos, queria paquerar o mais bonito e ser paquerada pelo mais inteligente, achava-se a única a notar um dos mais tímidos, aos doze anos, aos dez anos tinha caderno de segredos. Ela não podia ser tocada, ouvida, não podia receber nenhuma lição, não havia como mandá-la guardar nada, estava “guardada” em um caixão aos treze anos. Ela foi separada de nós, não podia ser abraçada nem como uma fumaça. Uma fumaça ela...

Porque aquilo se eu não era amigo da família, não era próximo, só sabia que existia, se uma menina de sete anos morreu estuprada, se milhares morrem de fome, e outras tantas cheiram cola e outras de treze roubam e matam e muitos querem exterminar as crianças que não foram bem cuidadas? Ela foi bem cuidada. Ela estava doente, de todo jeito, mas aquilo não foi uma doença, talvez uma doença, a chaga da realidade que aceita a carbonização de gente. Doeu isto, doeu seu sofrer anterior com a recém-descoberta doença degenerativa que mal teve tempo de com sua perversão, começar a degenera-la de vez. A minha vida e de quem eu convivo está continuando, eu não sei se as vidas estavam continuando, ela não era mais importante do que todas as crianças do mundo que podem morrer velhas. Eu sabia que ela existia, eu só sabia que ela existia. Mas a minha existência ficara mais abafada e eu às vezes tenho bronquite.


Eu deixava um pouco de pó de vidro arranhar meu esôfago até que um dia um certo encantamento que vem de um Espírito no universo que absorve estas dores lânguidas, como as dores de seu parto, me trazer um cântico para honrar e celebrar e poder pensar: “para B”.
Escultura de Bruno Giorgi

O céu me parecia um companheiro para a minha secura em um dia noturno de uma manhã de segunda feira, em que as nuvens estavam tão cinza quanto o pó de escamas que grudavam minha vista como teia de aranha. E meu inalar estava mais úmido, tendo também que fazer bem mais força para mexer com os braços. O céu respeitava-me e estava até solene. Quando aconteceu. As densas gorfadas de vapor carbonizado como uma fumaça dormente, se convertendo em gotas d'água. Uma família de gotas d´água serelepes. Saltitando aos gritinhos após a abertura dos portões. Elas viviam, entravam cheias de vida aos treze anos até se esfarelar. A ampulheta vazou. E por cada gota d'água, cada única gota d'água, eu gota d'água e todos os meus amores gotas d'água, e pela B., que vive e morre com pesar e esperança em mim, eu reafirmei minha fé de que tudo isto não é em vão. E eu dei as mãos às gotas que me molham não ignorando que há outras gotas que molham, aquelas apenas caíram em mim e as bebi.

O meu texto-desabafo recebeu o nome de “Percurso”.  

Mais adiante o publicarei ;)

30 de junho de 2013

O Menino Inquieto e a Planta de Folhas Brancas

Isto tudo se passou em uma terra distante, em um tempo quando lá o sol ainda nascia branco, branquinho que, com a fina neblina, fazia as vistas da gente parecer que enxergavam o mundo todo lustrado; e na hora de se pôr, o sol ficava de um dourado morno, quase bronze, chegando até a dar uma sensação, nos dias mais frescos, de se ter uma macia pele de urso envolvendo agente com muito aconchego.

Mas durante a história que estamos contando, algo diferente se passava naquele vale; por alguma coisa diferente que estava acontecendo, o sol nascia acinzentado, o ar estava muito seco, e o céu estava com um tom rosado triste. Imaginava-se que devia ser só uma fase, que iria passar; mas como estava sendo duro passar por aquela fase! Também, porque com a secura, os olhos das pessoas ardiam secos também, a garganta ficava seca, e muita gente caíra abatida com uma tosse seca e o peito doendo.

Pedrinho especialmente, sentia muito com o abatimento que tomara conta de tanta gente! Dona Filomena, sempre com aquele vozeirão parecendo de trompa daquelas grandes de assoprar, com um jeitão bondosa que fazia os meninos rirem muito, por dentro, e um bocado bom também por fora, andava resmungona; sem paciência...
"Tempestade de inverno sumido - Vale de Yosemite" - Anselm Adams
_ Aaii, essa criançada sem jeito, chata e enxerida, no meu tempo o chinelo e a vara de marmelo resolviam!

“Que triste ouvir isso de Dona Filó”, Pedrinho e sua irmãzinha Carina pensavam. Os dois ainda eram uma das poucas crianças também que não estavam sendo afetadas por aquele tempo ruim. Ainda. Augusto começara aficar brigão; viram-no até jogando pedra nos passarinhos tico-tico! Armínia ficara fechada, só andando de cabeça baixa e segurando a renda da saia, ela que era de ficar falando e falando, com uma vozinha fina, sempre curiosa com tudo. Perdera os interesses.

Senhor Homero.... Homero passou a mesmo deixar o portão aberto para a bola cair lá dentro da sua casa... e nossa, quando um dia uns meninos foram bater a campainha para pedir, ele rasgou com um facão, com um facão, a pelota na frente deles!

Mas o que realmente deixava Pedro mais aflito, era como estava ficando Mamãe. Mamãe era para ele tudo o que conseguia ser capaz de pensar na palavra Beleza. Com tanto amor, ele, sua irmã mais novinha Camila, Carina e Paulinho, seu irmão pouco mais novo, conseguiam lhe auxiliar nas tarefas em casa, com as ajudas dos avós Raimundo e Dona Leonora, que os visitavam quase todos os dias, mesmo com as lembranças saudosas e a grande falta do pai, Cláudio, que morrera quando Camila ainda era bebezinha. Sobre os detalhes de como ele morreu, vamos deixar de contar para não ficar remoendo com a dor daquela unida e, por terem um ao outro, feliz família. Felicidade que estava em perigo.

Camila tossindo já...Paulinho de cama. Mamãe, que sempre aparentava uma pérola, lisa, radiante, que parecia nos fazer carinho só da gente contemplá-la sorrindo, estava já com a pele do rosto murchando; os olhos amarelos, e a voz rouca, parecendo que falava com um cano na garganta. Vovô e Vovó eram cuidados em casa pela tia Carminha, ela lhes fazia chá.

Aquela doença que veio com o tempo esquisito ainda não tinha nome, pois ali naquela região tão sadia e com o ar tão puro, as doenças que vinham eram bem tratadas com chás, com banhos, respirando poções dos vapores de muitos tipos de ervas do campo.

Pedrinho sabia que tinha que fazer alguma coisa, mas as pessoas já estavam se conformando com aquela situação; ele pensou consigo que isso também devia vir da natureza daquele mal que havia abatido o povoado... e todos faziam pouco quando ele insistia que deviam procurar uma cura diferente,já que nada que conheciam estava dando certo.

Sentado à beira do riacho, que também havia diminuído muito com aquele tempo seco, já fazendo encalhar até os barquinhos de papel, veio até a mente de Pedrinho uma cabana; uma pequena cabana de madeira na saída leste do povoado, em cima de uma colina. Morava lá solitário o senhor Cosme, solitário porque sua esposa de muuuitos e muitos anos falecera haviam já quatro outonos; todos gostavam demais de Dona Hikaru, ela com seus olhos puxados, cabelo em coque, jeito de andar com as mãos juntas, pra frente, viera de uma terra distante que ninguém conhecia ali; ela ia na vila vender uns bolinhos açucarados deliciosos que do adulto aos idosos e, lógico, as crianças,todos se sentiam mais doces e animados saboreando-os. Todo mundo foi ao enterro na época, vindo então a filha dos dois que se casara com um rapaz de outro povoado e já não morava mais ali. Senhor Cosme sabia cuidar muito bem de si, e era o principal conhecedor de muitos segredos do campo, das montanhas, do riacho e do bosque. O avô Raimundo constantemente ia consultar Cosme a respeito de algum problema, procurar conselhos. Mas já tão idoso, morando sozinho, senhor Cosme não era muito mais ouvido e lembrado pela comunidade.

“Ei, senhor Cosme, sou Pedrinho, neto de Raimundo”.

_ Meu bom mocinho, quer sentar aqui comigo para comer um bom pedaço de bolo e tomar um refresco de amora? Uma companhia neste fim de tarde não me faria mal.

“Senhor Cosme, nenhuma comida tem descido bem... minha língua está com um amargo, e a saliva que vem forma um creme que tira o gosto de tudo”.

_Aaah, eu sei, rapaz... os cheiros, os sons, as cores, os gostos, tudo emudeceu a canção da dança da vida aqui em nosso pacato povoado. Estamos em tempos difíceis. É preciso firmar o joelho para conseguir ficar de pé nesta hora.

“Mas senhor Cosme, ainda que isto tudo seja passageiro, e não temos como saber... o que está acontecendo só vai piorando, e não dá mais para suportar. O senhor não sabe o que podemos preparar para tirar esta moléstia do nosso corpo, de nossas vistas, de nosso coração? Sei que as pessoas não parecem levar o senhor a sério, mas confio em meu avô que sempre lhe teve respeito...”

_ Pedro, Pedrinho, sobre isso teríamos muitas luas para conversar. O que as pessoas levam em conta pra dizer o que tem valor, o que deve ter mais consideração em cada momento da vida, é influenciado por muitas coisas que geralmente não aparece no que elas dizem e acham... mas vou falar do que está me pedindo. Eu era criança, do seu tamanho, e quando minha família morava em um povoado no pé daquela outra serra a algumas léguas daqui. Fora uma época de secura, como esta. E nenhum medicamento nem daqui, nem de lá, e até arrisco, nas terras de Hikaru, que são tão ricas em remédios da natureza também, não se descobria. Mas eles encontraram a solução.

“Me diga, Cos, desculpa, Sô Cosme!”.

_ Heita, meu amiguinho. Se já não vão dar muito valor a ter vindo me consultar, vão zombar muito de você se aventurar a buscar o que buscaram naquela ocasião.

“Mas se eu não o fizer, logo também ficarei dominado pela doença. E assim, me comportarei como muitos estão. E vou achar também que isto é tudo muito natural, é da vida, é da realidade. Por favor, senhor Cosme, eu vou buscar, eu estou pronto a escutar.”

_ Menino, naquele pico da montanha que é envolvido por mais névoa do que os outros... vai ter de confiar. Mora uma anciã. Anciã porque ela completa dias e dias após o outro, por muito mais tempo do que o que eu tenho andado neste mundo. Nunca a vi, mas imagino que ela deve impor muita reverência. Ela cuida de uma planta diferente das demais. Possui uma folha branca, quase prateada, e suculenta. Não podemos ver nenhuma planta igual fora de lá. Encontrando esta senhora que deve ser também de uma aparência incomum,de presença de fazer emudecer, com ela estará a planta, que por ela é muito bem cuidada. Nunca sai de perto. Mas, meu filho, não posso te garantir nada. Tudo o que sei é que o povo lá foi curado pelos preparados da planta maravilhosa; mas não posso lhe dar mais garantias de que a anciã esteja lá; nem de que com ela, a planta ainda viva.”

Pedro assentiu e cumprimentou senhor Cosme. Não era discutível que ele descera dali com uma resolução firme.

Na vila, senhor Homero disparou: “se você está mesmo disposto a perseguir este delírio, suas ideias estão mais murchas do que estas bolas que só servem para importunar o sossego”.

Dona Filomena disse “rapaz, você está procurando é desculpa para não ajudar sua mãe agora que o trabalho aumentou por ela estar mais fraca”.

Mesmo seu avô Raimundo não o encorajou; disse que Pedrinho tinha facilidade a ficar sonhando que a vida pode ser diferente, criando modos de vida imaginários na fantasia. Mas a fala mais padrão, repetida por coleguinhas e aldeões, fora:

- Veja, menino. As folhas aqui são verdes; amarelam quando vão cair. Isso é a natureza do mundo. Não pode não ser igual. O tempo está com secura, nós secamos também; melhoraremos se o tempo mudar. O mundo é o que é; sempre foi e será. Falar de anciã, folha branca, é algo que a necessidade das coisas não pode deixar ser. Escute esta palavra: ra-zo-á-vel. O que você está falando não é ra-zo-á-vel. É como querer uma tabuada diferente.

Durante a noite o desânimo abateu Pedrinho. O ar ficara enfim mais pesado para ele do que nunca. Mas ele acordou de madrugada. Teve por si que desanimado ou animado, ele iria arriscar e iria ver se realmente as coisas tinham de ser como falavam, ou se todos estavam querendo encaixar a explicação do mundo em uma caixinha apertada e quadrada em que o mundo redondo não cabia, ou deixavam um tantão de arestas de fora. Na conversa final com senhor Cosme, aprendera que o único caminho que lhe levaria até aquele pico de montanha era, aproveitando que a água estava rasa, seguir pela margem do riacho. E partira pela madrugada.

E tudo concorrera para lhe mostrar que a tarefa não seria nenhuma aventura daquelas cheias de musiquinha de dar coragem. Mas exigiria muito sacrifício da parte dele. Com pouco, perdeu sua sandália ao tropeçar num toco de madeira caído, antes de chegar no riacho, e não o achava no capim alto, pois o céu ainda não estava claro.

Para piorar... “aaaaai!!!”

Cortou seu pé em uma pedra afiada no riacho. No outro pé, entrou um espinho que tentando tirá-lo com a unha, fez foi entrar mais. Mosquitos picavam e chupavam do sangue de Pedro. Ele saiu só pensando em chegar logo na montanha, e, com a mente toda remoendo as palavras das pessoas da vila, não levou comida. Não podia sair pra procurar alguma frutinha na mata, por medo de se perder. A ferida do pé ardia. Seus olhos estavam ardendo, secos. Tudo lhe pesava no coração, e se sentia cada vez mais ranzinza também. Não havia cheiro algum na natureza. Com o dia já levantado, a luz do sol sapecava suas costas, suava suor grosso, bebia da aguazinha do riacho quase secando, lavava o rosto pois o suor caia nos olhos já ardidos e embaçava sua visão. E lá ainda longe, a neblina cobrindo o pico da montanha. Pensava na família. Pensava nos gemidos da Mamãe, que ele percebeu estarem abafados pelo travesseiro que ela punha na boca para tentar evitar de assustar e angustiar mais as crianças, e sua tosse seca.

Grande medo em Pedrinho de tudo ser em vão. De perder Mamãe... ficar os irmãos sem o Papai, sem a Mamãe agora. Perder os avós. Os irmãos e irmãs? Perder todos. Ele mesmo já não sabia se iria durar agora. E outra grande tristeza: de chegar lá, e lá ser lugar nenhum. Não ter essa grande anciã; não ter planta de folha branca. E assim, aquilo tão seco que as pessoas lhe falavam... ser realmente o certo. Elas estarem com a razão.

O riacho foi ficando estreito, estreito.... de repente largueou. Mas acabou. Ainda faltando um bocado pro alto da montanha, Pedrinho chegara na nascente, no olho d'água. Com um preocupante filetinho de água apenas brotando, quase agonizante. Ele tinha que continuar subindo agora, ou escolher voltar. Seguiu acima, guiado apenas pelo senso de direção que tinha que subir a leste, a norte. Uma hora estava tudo muito inclinado, e tinha de apoiar com as mãos nos joelhos. Fraco, as costas doíam. Fraco, teve de segurar nas pedras, quase já escalando... até cortar também a palma de uma mão em um espinho seco na terra.

A neblina o cobriu. “Pelo menos as costas refrescaram”, pensou. Não muito consolado. Mas agora ficou assustado. Ele viu. Tinha uma gruta ali, que não parecia grande. Ele queria tanto encontrar... mas agora viu que também tinha medo de encontrar. Começou a se sentir estranho, como se aquilo fosse algo interrompendo a normalidade do seu mundo, do seu modo de ver as coisas se desenrolando, e ele se sentia inseguro de ser, diante daquele inesperado... bem normal. Lembrava-se de que no dia anterior xingara a irmã na discussão. Se sentiu feio.

Queria encontrar a planta, de todo seu coração. Mas naquela hora, ficou com medo mesmo de, encontrando-a, lhe tocar.

E se preparava no seu íntimo...a gruta estava vazia? Havia mesmo a tal anciã? Ele se lembrou de que não sabia ao certo o que era uma anciã, lhe vindo à mente a imagem de uma senhora toda cheia de presença, cabelos cinza-claro muito compridos, olhar solene, alta, falando como um trovão. E se ela tivesse morrido? Para ser tão mais velha do que o senhor Cosme...

Tinha sim alguém. Tinha uma luz lá dentro. Entrou na gruta. Era pequena. Andou com cuidado, meio que tropeçando nuns galhos fininhos que ficavam embaralhados no chão e sem graça, pareciam se espalhar em redor. Olhou ao redor, parede, uma estante de tronco de árvore velha, uma flauta, mas nadado que esperava, que não sabia ao certo, mas na sua melhor esperança, seria um jardim ao fundo com a grande árvore branca.

Ali estava. Uma pequena senhora. Numa cadeira de balanço. Tomando chá, tricotando. Com um cabelo partido, o rosto que mesmo todo enrugado, fazia lembrar uma criança, não tinha jeito de ser muito cansado. Não era mais alta do que Pedro.

“Senhora, é uma anciã?”

_Olá, rapazinho. Posso ser, posso não ser, não fui eu que me dei esse nome. Depende. - respondeu-lhe com uma voz que mais lembrava chuvinha fina batendo no telhado.

“Ah sim... estou muito cansado. Procurava a planta de folha branca, que diziam estar aqui com a senhora, para curar o povo lá de onde moro; curar minha Mamãe. Subi até aqui, desculpa se a assustei. Me disseram que só poderia estar aqui dentro com a senhora, cuidando dela. Não a vejo.”

_ Pois sim, rapaz. Você acabou de falar. Não a vê. Tem certeza que existe esta planta diferente?

“Não, não tenho.”

_ Ouvi você dizendo, então. Pois sim, não vê nada aqui comigo.

Ele então se entregou. Prostrado, acabou todo seu ânimo. Chorou e chorou muito. “Então eu enfrentei a zombaria das pessoas, fui humilhado; andei isso tudo sem comer, com muita fome, perdi a sandália, feri meus pés, que estão ardendo muito, mais ainda agora; estou todo coçando de picadas de mosquito; cortei minhas mãos. Estou com as costas sapecando, os olhos sapecando. E tudo isto agora até me rouba as forças para voltar. Todos dizem que este mal horrível vai passar, mas ninguém sabe quando, e o que vai ser de nós até lá? E todos, enfim, por pior que seja, todos tinham razão.”

E chorava sem consolo, com a senhora escutando tudo. Suas lágrimas caíam nos pés, caiam no chão. Caiu num dos galhos. E ele viu pequenininha, pequenininha, uma pontinha se mexendo. Um cristalzinho, um negocinho igual uma lagartinha, uma plantícula; e com ela uma folhinhazinha enrolada, branquinha, branquinha, do tamanho das manchas que dão nas unhas, e dizem ser sinal de presente chegando.

“Senhora, digo, Anciã, não sei como a senhora realmente se chama... vejo isto aqui no chão, que brotou ao cair de minhas lágrimas. Se não fosse tão pequeno, queria acreditar ser uma folhinha da planta curadora!”

- Pois sim, você está vendo?

Esta pergunta, estas palavras, estalaram na cabeça de Pedrinho. E ele foi seguindo com os olhos o raminho, os galhinhos, trançados no chão, subindo nas paredes... e no alto das paredes, por todo o teto... folhas brancas, gordas e quase prateadas!

“Mas... é ela, é ela! Eu achei que não existia!”

_ Mocinho, eu fiquei tão triste quanto você, de pensar que se desiludiu tão fácil, se entregou e estaria até disposto a ir embora, se contentando em me dizer que não vira a planta. Há pouco falava, todo desesperançado, sobre como eram pesadas as coisas que lhe haviam dito sobre o mundo, que ficou muito muito triste das pessoas terem razão. Não tendo ficado curioso em olhar direito e investigar onde as raízes em que você pisava iriam dar, descontente diante da figura da “anciã” que não era o que você tinha se convencido de encontrar, já também entregara a vitória para essas palavras em seu coração. Agora, os seus olhos vêem!

“E ela realmente tem o poder de curar aquele mal do tempo que passamos?”

_ Ela tem, meu querido. E para isso, basta apertar uma folha e beber do caldo dela.

“Posso levar quantas eu quiser?”

_ Poder, pode. Mas sabe, se arrancar muito... a planta precisa das folhas para respirar, para ter energia... e assim, para curar mais males de outras pessoas ("hu-hum", ele concordou). E você não tem como carregar tanto assim, desperdiçaria no caminho. Primeiro, beba de uma. Você está precisando. Descanse um pouco, vou tratar suas feridas. Aqui também tem pão para você. Depois, leve um pouco para sua mãe, sua família, para aqueles em situação mais urgente. E você terá uma grande responsabilidade: levará algumas mudas, e terá de cuidar delas. Cuidar. Não deixar morrer. E percebeu o segredo? Suas lágrimas, viu o que fizeram, com o raminho brotando? O sereno e a umidade da neblina, no tipo de mineral que é a coisa do que é feito as paredes desta montanha, dão à planta uma água fresca e um pouco salgada. Ela precisa disso, e é com esse tipo de água que ela trabalha para ter suas folhas brancas. Terá que a abastecer com uma água um pouco salgada também, nem precisa muito.


Pedro ficara um tempo com a senhora, por quem acabou lhe crescendo um grande carinho e ternura. Lembrou-se para sempre dela. Como se fosse uma mistura da mãe, irmãos, avós, e até do seu Cosme, mas apenas como se fosse, pois quando tentava associar muito, ficava diferente o sentimento, a sensação.

E ele cuidara e cultivara a planta como ela lhe recomendou. Com as folhas que levou, não teve muito mistério, não precisava de muito preparado, era apertar e pingar na língua para a disposição de ânimo e a boa respiração voltar para quem tomasse. E teve muito o que contar a respeito do mundo, para seus irmãos, e a quem mais estivesse disposto a lhe ouvir.

27 de maio de 2013

Sermão sobre a Trindade - Richard Bauckham

Traduzido diretamente do site pessoal do teólogo, exegeta e historiador.

Domingo da Trindade é um dia difícil para os pregadores, os quais muitas vezes temem tentar explicar a ideia de Deus como Trindade. Às vezes é um dia ainda mais difícil para congregações, que têm de ouvir pregadores tentando explicar a Santíssima Trindade.

É um dia difícil para os pregadores, porque achamos que temos de falar sobre Deus.Você pode pensar que os pregadores estão sempre falando de Deus, mas na minha experiência a maioria dos pregadores realmente falam muito pouco sobre Deus. Eles falam muito sobre o que Deus quer de cada um de nós. Se eles são bons pregadores, eles falam mais do que Deus fez por nós e está fazendo por nós. O quê, afinal, é o Evangelho. Mas eles não falam muito sobre quem é Deus. Talvez deixam isso para a liturgia e os hinos, o que provavelmente não melhor do que sermões geralmente podem ser.

Falar sobre Deus – pelo que quero dizer, não apenas se referir a Deus, mas na verdade tentando dizer quem é Deus - é um daqueles pontos em que a linguagem nos falha. Todos vocês irão conhecer a experiência de querer dizer algo realmente significativo - contar alguém o quão importantes é para você, ou dizer a alguém o quão profundamente você está arrependido - e as frases habituais não estão nada ao alcance do que você realmente quer dizer. As únicas palavras que você pode encontrar são terrivelmente improvisadas, mas por outro lado você deve utilizá-las. Não dizer nada seria pior. Você deve dizer o que você pode e espera que as palavras apontem para o que você não pode realmente dizer.

Temos de falar sobre Deus. Vivemos em uma sociedade que em grande parte esqueceu o que a palavra "Deus" significa . As pessoas pensam que Deus é alguma figura de conto de fadas no céu. Nós não podemos contar com significado da palavra 'Deus' para a maioria das pessoas nada remotamente parecido com o Deus que conhecemos em Jesus Cristo. Precisamos falar sobre quem é Deus. Ao mesmo tempo nós saibamos que palavras não podem resumir a Deus ou selar Deus. Tudo o que podemos fazer é usar palavras que apontam para o que não pode ser dito. É importante falar sobre Deus. É importante, quando falamos de Deus, perceber que Deus é infinitamente mais do que pode ser dito.

A primeira é a simples afirmação: Deus é amor. A afirmação é do Novo Testamento. É uma das coisas mais importantes que a Bíblia diz. E você pode achar que isso é realmente tudo o que se precisa dizer a respeito de Deus: Deus é amor. Não é tão simples declaração o suficiente? O problema é: o que o amor significa? Nós usamos a palavra 'amor' em todos tipos de formas. 'Eu amo bolo de chocolate': é que o tipo de amor que Deus é? 'Fizemos amor': é o tipo de amor que é Deus? Nós dizemos que amamos pessoas, quando o que queremos dizer é uma egoísta, possessiva forma de amor que prejudica as pessoas. O amor pode ser uma obsessão destrutiva. O amor pode ser sentimentalismo auto-indulgente. O amor pode ser vagamente desejar alguém bem. O amor pode ser todos os tipos de coisas ou às vezes nada.

Então, 'Deus é amor' só vai significar alguma coisa se ​​pudermos esclarecer o que o amor de Deus significa. Então chegamos à segunda maneira de falar de Deus. Isto é, falar de Deus, contando a história de amor de Deus para com o mundo. Essa é a forma como a Bíblia explicita o que significa dizer que Deus é amor. Ela nos diz sobre o amor de Deus enquanto a melhor maneira de falar sobre o amor: ela nos diz sobre o amor de Deus na prática. A melhor maneira que você possa saber o que o amor de alguém por você é vendo o que significa na prática. A Bíblia nos diz que tipo de amor que é Deus é contando a história do amor de Deus por nós.

Ela diz como Deus criou o mundo por amor, e a história de como Deus continua a amar o mundo que Ele havia criado e se envolveu com ele em Eeu amor por nós. Ele conta como, mesmo quando rejeitamos o amor de Deus e o mundo de Deus deteriora-se com o mal, Deus ainda continuou nos amando e fez tudo o que podia para salvar-nos do mal e para ganhar o nosso amor por Ele. Essa é a história do Antigo Testamento sobre o envolvimento de Deus com o povo de Israel . É a história que chega a um clímax com Jesus , quando Deus em Seu amor por nós enviou seu Filho para ser realmente um de nós, para viver uma vida humana com a gente e morrer por nós. É a história que continua com a presença amorosa de Deus no Espírito Santo, na igreja, em nossas vidas. A história do amor de Deus pelo mundo continua: somos parte dela.

A história conta-nos quem Deus é porque contemplamos que tipo de amor é Deus. Deus é amor auto-doador. Ele não apenas senta-se no céu e nos quer bem. Ele se envolve com a gente no seu amor por nós. Ele dá a si mesmo por nós, em caro auto-sacrifício no sofrimento e morte de Jesus por nós. Ele se dá a nós, quando nos dá o seu Espírito Espírito como o dom de si mesmo presente conosco em nossas vidas. 'Deus é amor' significa que Deus dá a si mesmo - por nós e para nós. Essa é a natureza de Deus.

Mas há outra coisa a notar sobre essa história do amor de Deus para com o mundo. Eu somente posso contar esta história, falando sobre Deus como Pai, Filho e Espírito Santo. Eu já tentei fazer diferente. Eu não poderia ajudá-lo. Quando vemos o amor de Deus em ação, não vemos só Deus, o Pai que cuida de nós como um pai para seus filhos. Também vemos Deus o Filho, que nos ama , chegando ao nosso lado, como Jesus, como nosso irmão humano, um de nós, vivendo e morrendo por nós. E também vemos Deus, o Espírito Santo, que vem para o nosso próprio ser, que nos ama, por assim dizer, a partir do interior. Deus, o Pai cuida de nós, nos alimenta, nos protege, nos orienta no seu amor.

Deus o Filho é Deus em amor em solidariedade conosco; Deus, como Jesus, conosco no nosso mundo humano, dando a si mesmo por nós, em sua vida humana e morte. E Deus, o Espírito Santo, é o amor de Deus nas profundezas do nosso ser, compartilhando o amor de Deus para conosco, para que possamos amar com o amor de Deus. É somente porque Deus é Pai, Filho e Espírito Santo, que Deus pode nos amar da maneira que ele faz. Só porque Deus é Pai, Filho e Espírito Santo, que Deus pode ser atencioso, auto-sacrificial, amor auto-doador.

Então, nós realmente precisamos de todas as três maneiras de falar sobre Deus. Precisamos dizer que Deus é amor. Precisamos contar a história do amor de Deus para com o mundo: o amor de Deus é na prática. Então nós também precisamos dizer: Deus é Pai, Filho e Espírito Santo. Isto é outra maneira de dizer que Deus é amor, uma outra maneira de contar a história do amor de Deus. Deus nos ama como o Pai, como o Filho e como o Espírito Santo. Então, quando achamos a doutrina da Trindade difícil e confusa, devemos nos perguntar: como poderíamos contar a história de outra forma?

No entanto , é preciso dar mais um passo, que é o mais difícil. Eu tenho falado sobre o amor de Deus por nós. Mas se Deus é amor, o amor de Deus deve ser mais do que o seu amor por nós. Deus é amor, em seu próprio ser, para além de nós. Mesmo antes de nós existirmos, mesmo antes de Deus criar o mundo, Deus era o amor em seu próprio ser. Deus não começara a amar quando ele amou sua criação. O amor de Deus por nós é o transbordamento do amor que Deus é eternamente. E isso pode ser assim porque, mais uma vez, Deus é Pai, Filho e Espírito Santo. O ser de Deus é o amor entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Uma ilustração pode ajudar, mas não é mais do que uma ilustração. Pense em uma família muito amorosa, em que as pessoas são devotadas uma a outra. Mas não é o tipo de família cujo amor é um círculo fechado, excluindo outras pessoas. Este é o tipo de família que está sempre fazendo amizade com outras pessoas. O próprio amor da família está constantemente sendo compartilhado com outras pessoas. Outras pessoas são bem-vindas em casa e sentem que são praticamente parte da família.

Você deve ter deparado com as famílias como essa. Mas isso só acontece quando há realmente o amor dentro da família. Tem de haver amor entre os membros da família para que eles possam compartilhar esse amor com os outros e abrir seus relacionamentos amorosos para abraçar outros. Outros se sentem bem-vindos, eles podem sentir que pertencem à família, porque existe uma família amorosa lá, já. É um pouco parecido com Deus. É o amor eterno em Deus, o amor entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, que Deus compartilha conosco. Quando Deus enviou o seu Filho ao mundo para nos fazer amizade e quando Deus envia o seu Espírito em nossos corações, Deus está abrindo sua própria vida por amor a nós para nos compartilhar consigo. É como ser acolhido na família.

Em conclusão, parece -me que há dois erros que as pessoas normalmente fazem sobre a ideia da Trindade, que eu espero agora que você será capaz de ver que são erros. Uma delas é de que a doutrina da Trindade é uma espécie de especulação teológica rarefeita, o tipo de coisa que os teólogos se divertem com em seus estudos, mas nada tendo ver com a vida cristã real. Pelo contrário, a doutrina da Trindade é o que nós devemos acreditar se realmente compreendemos aquela surpreendente verdade do Evangelho: que o próprio Deus em seu amor realmente viera em nosso mundo como Jesus Cristo e que o próprio Deus em seu amor realmente viera em nossa própria experiência como o Espírito Santo.

O outro erro é pensar que em uma mera fórmula - Trindade – temos Deus ao alcance de nossas mentes, como se agora nós realmente depreendêssemos Deus. Não, absolutamente. A doutrina da Trindade nos leva ao mistério de quem é Deus, mas não faz explicar ou dissipar o mistério. Quando conhecemos a Deus como Trindade conhecemos verdadeiramente Deus, mas de maneira nenhuma inferimos Deus.

Deus Trindade é o amor que encontramos em Jesus Cristo e experimentamos no Santo Espírito. Deus Trindade é o mistério do amor que podemos experimentar, mas nunca depreender.

1 de maio de 2013

Primeiro de Maio

Nossa dica para o feriado de 1º de Maio é o filme "Celebração dos Anjos: a história de Dorothy Day". É muita infelicidade que no Brasil esta verdadeira Santa - não canonizada por nenhuma instituição eclesiástica - seja tão desconhecida. Com seu exemplo, com mesmo alguns poucos contágios, a religião cristã faria uma diferença muito maior e mais positiva no país, e sem dúvida seu rosto seria outro do que o que se tem apresentado majoritariamente.

Vale muuuito a pena assistir e procurar conhecer mais sobre ela.


Na verdade, eu me alegrei em todo o meu trabalho; essa foi a recompensa de todo o meu esforço.
Eclesiastes 2,10b

Eis o que observo: o que melhor convém ao homem é comer e beber, encontrando a felicidade em todo o trabalho que faz debaixo do sol, durante os dias da vida que Deus lhe concede.
Eclesiastes 5,17

15 de abril de 2013

Uma brevíssima história do "Coisa Ruim"


Às vezes em algumas igrejas ele é quase tão mais falado do que o próprio Deus. Há aqueles que dizem ser seus seguidores ou admiradores. Pipocam por alguns fóruns teorias sobre a evolução até a configuração cristã clássica de sua imagem. Muitas delas são chutes. Vamos fazer uma brevíssima recapitulação da história da emergência do conceito da figura do Diabo. Vamos ver um pouco como se constituiu na matriz do cristianismo, o imaginário judaico polimorfo.

Até há um tempo atrás se jugava que foi algo nascido na interação com o Império Persa, sob influência da religião de Zoroastro, que advogava dois polos ontológicos fundamentais, duas forças volitivas em um conflito cósmico permanente. Hoje tal visão está superada, ainda que se tenha em mente a contribuição forte deste sistema religioso.

O povo hebreu iria constituindo seu ideário religioso a partir de experiências de visionários, da experiência e tradições coletivas do povo, em influência de interações complexas do seu meio circundante. Em grande parte queria contrastar com as noções e referenciais dos vizinhos, sobretudo rivais, contudo, retrabalhavam-nas. Decerto, era forte a pressão por assimilações de povos muitas vezes mais estruturados e organizados, de grandes nações e impérios com mitologias e religiões exuberantes e elaboradas dando sentido às organizações sociais.

Hoje temos meios extremamente mais férteis do que há anos atrás para compreendermos cenários primordiais deste processo, através de muitos documentos dos povos do Oriente Próximo, como
os textos de Ras Shamra, os manuscritos ugaríticos de Marzēah, os selos de Tell Asmar, o Tratado de Enuma Elish, etc.

Baal 
Diversos mitos versavam sobre o conflito da divindade mais saliente do imaginário vencendo forças mais antigas do caos.

Uma muito influente fora a vitória de Baal contra Leviatã, a serpente que aparece em alguns achados representada com sete cabeças; ou contra Yam (ou o "Juiz Nahar), o mar, o deus da destruição, ou contra "Mot", rei das profundezas da morte, em que Baal desta forma consegue escapar da sua morte como destino final e passa a ser doador da vida. Baal era um vistoso guerreiro, inferior no panteão à figura anciã sapiencial de El, que sob uma outra forma, era cultuada pelos hebreus, se mesclando com YWHW ( Yaweh), havendo ainda a controvérsia se o nome de YWHW chegara de regiões egípcias ou sírias. Baal desafiara a serpente do caos primordial e da morte, fulgurara aí aclamado como grande divindade, doadora da vida.

Em outras fontes, interagindo com outras figuras religiosas poderosas como Gilgamesh, uma imagem similar a Leviatã aparece como Tiamat ( caldeus – vencida por Marduk ), Rahab, etc. É impressionante o quão vasta é esta marca no inconsciente coletivo humano, espalhado por tradições em diversas regiões, como por exemplo milenarmente na Índia, com a vitória de Indra sobre a serpente Vishnu.

Contudo, pode-se conceber uma controvérsia na mentalidade hebreia, de onde se reformatou a ideia dos vizinhos: o fator mais constrangedor seria que sua divindade era anterior a qualquer outra, sendo assim, ficaria embaraçoso conceber que se revoltou contra seres malignos anteriormente mais poderosos. Desta forma, se inverteu, e estes seres, poderosos mais inferiores, ora aparecem como insurretos subjugados, ora como vencidos e dominados por El/Yaweh no ato de dar forma e ordem ao mundo criado [concomitante, na busca de estabelecer sua identidade própria por contraste com os rivais, a cultura israelita foi associando algumas das divindades principais rivais - também devido a práticas cultuais que era condenada pela ética israelita - com os próprios seres insurgentes].

Alguns exemplos:

Jó 26, 10- 13:
Traçou um círculo à superfície das águas, até aos confins da luz e das trevas. As colunas do céu tremem e se espantam da sua ameaça. Com a sua força fende o mar e com o seu entendimento abate o adversário. Pelo seu sopro aclara os céus, a sua mão fere o dragão veloz.

Salmo 89, 9-10: 
Dominas a fúria do mar; quando as suas ondas se levantam, tu as amainas. Calcaste a Rahab, como um ferido de morte; com o teu poderoso braço dispersaste os teus inimigos.

Isaías 51.9,10: 
Por acaso não és tu aquele que despedaçou Rahab, que trespassou o Dragão?

Salmo 74.13-17:
Tu, com o teu poder, dividiste o mar; esmagaste sobre as águas a cabeça dos monstros marinhos. Tu espedaçaste as cabeças do Leviatã e o deste por alimento às alimárias do deserto. Tu abriste fontes e ribeiros; secaste rios caudalosos. Teu é o dia; tua, também, a noite; a luz e o sol, tu os formaste. Fixaste os confins da terra; verão e inverno, tu os fizeste.

Se estabeleceu então na religião hebreia essas figuras poderosas mas inferiores à sua Divindade. Se temia, sobretudo pela associação com o mar, de onde provinham muitos impérios conquistadores. Mas a concepção de um estreito interesse com a vida humana era remota ainda. 

Como muitos imaginários de seu contexto geocultural, os israelitas concebiam o mundo habitado por espíritos não-humanos, seres sobrenaturais de caráter diversos. Alguns, como nosso caipora, caboclo d'água, curupira, armavam emboscadas em bosques, beiras de rios, etc.

Abstraindo sobre o que já foi abordado, as pessoas articulam seus sistemas simbólicos sobre as realidades espirituais, transcendentes, sobrenaturais, mediadas pelo impacto conotativo e carga semântica na representação de seres, fenômenos e ideias de nosso mundo, e pelas impressões que lhe são impingidas na vida, no mundo social, na própria natureza. Assim, muito popular entre os hebreus também era a ideia de “corte celestial”, sua divindade como Rei. Por exemplo, em expressões de “buscar a face” do Senhor, a ideia é tomada da busca de se ter audiência com os reis e serem atendidos por eles. O próprio termo “El” entre os hebreus às vezes era usado na acepção de uma mescla do Rei divino e a corte. Nesta corte atuaria um Promotor, um Acusador, que era um destes espíritos dos quais falamos acima; era inimigo declarado dos humanos. O nome com o qual mais se sagrou foi “Ha Satan”, O Adversário.

Sob influência persa, o que se incrementou, aí então já no judaísmo ( pois as tribos israelitas do norte foram deportadas pelo Império Assírio nas décadas finais do século VIII a.C. e perderam-se na história, permanecendo o reino do Sul, Judá (para o qual houvera uma migração maciça de refugiados do Reino do Norte no período imediatamente antecedente), que mesmo com a deportação pelo Império Babilônico nos inícios do século VI a.C.; a tribo de Judá e juntamente, em grande parte, a de Benjamim, permaneceu coesa em diversas partes do Oriente Próximo e muitos na sua terra, com um grande retorno sob o Império Persa a partir da antepenúltima década do século VI numa política de repovoamento sob vassalagem imperial), foi que as antigas formas monstruosas do caos passaram a ter um papel maior na vida humana, na história. Se tornaram as senhoras de um mundo sombrio, para onde iriam pessoas desertadas de Deus; e passaram a atuar também como adversárias do projeto de Deus para Israel.

Já de um processo anterior se desenvolveu a ideia de que povos tinham um Guardião, e o povo de Israel tinha o Anjo Miguel.

Belial, Baal, se tornaram os nomes mais populares e difundidos para a grande Força do Caos. Superior em hierarquia com Ha Satan, aos poucos foram se fundindo. Temos, dos tempos de Jesus, documentos mais antigos preservados entre a Seita do Mar Morto, cuja biblioteca em Qunrã fora uma das maiores descobertas da história da arqueologia, que nos legam textos em que interagem as crenças em Belial e Ha Satan, ambos por trás das forças das guerras dos impérios opressores odiados – em especial, “Manuscritos da Guerra”, da Biblioteca de Qunrã, capítulo 13.

Com a ideia de Belial e Ha Satan se fundindo, temos aí um grande ser do mal, com um caráter de trazer o caos na criação e no mundo, a opressão na geopolítica e inimigo de cada ser humano, atuando para destruir sua vida e lhe buscando afastar da comunhão com Deus, ideia já desenvolvida nos tempos da origem do cristianismo. Onde também veio ganhando corpo outra dimensão extra para o ser maligno.

Um assunto extenso seria traçar aqui a polêmica no judaísmo quanto a relação entre a divindade transcendente ao mundo com o próprio mundo. Deus seria tão “outro” em relação a este mundo, que como pensar sua atuação no mundo sem comprometer sua transcendência. De fato, o judaísmo caminhara para uma concepção monoteísta de caráter muito mais acentuado do que nos tempos mais antigos e mais ainda no período que o antecedeu, na religiosidade hebreia.

Uma das respostas (precisaríamos de um bom estudo só para apresentar várias destas respostas) foi salientar o papel dos anjos. Eram mensageiros e agentes com uma “procuração” divina, atuando para implementar a vontade de Deus no mundo e auxiliar os homens nos propósitos divinos. Mas, diante da constatação do caos e maldade no mundo, uma “ovelha negra” na família angelical se fez indispensável: o arquirrival de Miguel (ou Gabriel ou Rafael – que aparecem ou com menor destaque, ou com grande destaque mas em menos documentos), o anjo rebelde Samma'el. Um anjo que se rebelara contra Deus e arrastara muitos consigo, e se prepara para o grande combate final cósmico (como consta na literatura judaica do tempo das origens cristãs - Jubileus 23,29; Assunção de Moisés 10,1).

Assim, vemos alternando entre estes papéis o nome de Belial, Ha Satan, e posteriormente (com menos aparições em documentos cristãos) Samma'el, para o mesmo ser, fundidas sua características.

Como testemunho atestando as raizes antigas das quais brotaram este imaginário, podemos ver nas passagens que falam da queda espiritual, política e histórica de alguns grandes reis. Da onde proveio o termo “Lúcifer”, Filho da Luz. Filho da Luz era o nome dado a Vênus. E era comum os reis se associarem a astros, sendo Vênus um nome auspicioso. E o duplo sentido, o sentido cósmico e espiritual presente como alusão nesta epopeia de queda do rei soberbo, pode ser compreendido em que, literariamente, estas passagens são intimamente ligadas à literatura chamada “apocalíptica”; literatura na qual, como vemos ilustrado no livro “Apocalipse” do cânon do Novo Testamento (temos muitos “Apocalipses” no judaísmo contemporâneo de então, bem como presença marcante nos livros veterotestamentários de Ezequiel, Daniel, Joel, algumas passagens em Isaías, etc.), os traços das batalhas dos poderes cósmicos por trás do palco da história humana é marca característica.

De onde mestres cristãos dos primeiros séculos viram nesta passagem uma ilustração da queda do Demônio enquanto um Anjo especial que se revoltou contra Deus, crença já firmada independentemente delas.

Filho do homem, levanta uma lamentação sobre o rei de Tiro, e dize-lhe: Assim diz o Senhor DEUS: Tu eras o selo da medida, cheio de sabedoria e perfeito em formosura.
Estiveste no Éden, jardim de Deus; de toda a pedra preciosa era a tua cobertura: sardônica, topázio, diamante, turquesa, ônix, jaspe, safira, carbúnculo, esmeralda e ouro; em ti se faziam os teus tambores e os teus pífaros; no dia em que foste criado foram preparados.
Tu eras o querubim, ungido para cobrir, e te estabeleci; no monte santo de Deus estavas, no meio das pedras afogueadas andavas.
Perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado, até que se achou iniqüidade em ti.
Na multiplicação do teu comércio encheram o teu interior de violência, e pecaste; por isso te lancei, profanado, do monte de Deus, e te fiz perecer, ó querubim cobridor, do meio das pedras afogueadas.
Elevou-se o teu coração por causa da tua formosura, corrompeste a tua sabedoria por causa do teu resplendor; por terra te lancei, diante dos reis te pus, para que olhem para ti.
Ezequiel 28:12-17

Como caíste desde o céu, ó estrela da manhã, Filho da Aurora! Como foste atirado à terra, subjugador das nações!
E no entanto, dizias no teu coração: Eu subirei ao céu, acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono, e na montanha da Assembléia me assentarei, nos confins do norte.
Subirei sobre até o céu, e serei semelhante ao Altíssimo.
E contudo foste precipitado ao Sheol, ao mais profundo do abismo.
Os que te virem te contemplarão, considerar-te-ão, e dirão: É este o homem que fazia estremecer a terra e que fazia tremer os reinos?
Isaías 14:12-16

Entremeado a esta passagem de Isaías, vê-se o pano de fundo de antigas tradições, constando com uma antiga divindade de sistemas históricos caananitas: Shahar = Aurora, e disputas por poder na corte da divindade máxima do panteão, El, que culminou com o desdouro do desafiante sacrílego no mundo da morte. A memória destas sagas vem reproduzida aqui num poema profético que interpreta a vaidade e quebra do poder de um rei conquistador soberbo.




Bibliografia Consultada:

Flusser, David. Judaismo E As Origens Do Cristianismo, V.2. Capítulo 8, “O Magnificat, o Benedictus e o Manuscrito da Guerra”. Rio de Janeiro: Imago, 2001.

Foster, Benjamin R. Before the Muses: An Anthology of Akkadian Literature. Bethesda, CDL, 2005

Kelly, Henry Ansgar. Satan: uma biografia. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2008.

Mettinger, Tryggve. O Significado e a Mensagem dos Nomes de Deus na Bíblia. São Paulo: Ed. Academia Cristã, 2008.

Smith, Mark S. O Memorial de Deus: História, memória e experiência do divino no Antigo Israel. São Paulo: Paulus, 2006.

Sparks, Kenton L. Ancient Texts for the Study of the Hebrew Bible: A Guide to the Background Literature. Peabody, Mass.: Hendrickson, 2005.

Wray, T. J., e Gregory Mobley. The Birth of Satan: Tracing the Devil’s Biblical Roots. New York: Palgrave Macmillan, 2005.


29 de março de 2013

Sexta-feira da Paixão - Reflexões sobre Honra

3 de março de 2013

Ciência, Metafísica e Estética


A Scientific American Brasil publicou em seu portal este formidável texto de George Musser, onde ele versa sobre os “Einstein Papers Project” que contêm mostras das posições de Einstein dentro do panorama geral do clássico debate com Niehls Bohr a respeito da física quântica. 

Este debate famoso (de Einstein: "se sem perturbar de modo algum um sistema, pode-se prever, com certeza, o valor duma quantidade física, existe um elemento de realidade física relativo a este sistema, que corresponde a esta quantidade física") abriu as cancelas para uma das controvérsias mais acirradas da ciência básica, a do instrumentalismo do Bohr, em que a probabilidade quântica é uma propriedade intrínseca e a indeterminação está no real ( para ele, as teorias científicas sendo apenas instrumentos convenientes para permitir predizer fenômenos e serem úteis para correlacionar o que se observa com o controle técnico, e o debate quanto ao rigor e acurácia delas não é no nível do que a realidade realmente é - pois em si mesma é inapreensível - , mas no nível da linguagem mais apurada e consistente sobre ela) e o determinismo ontológico de David Bohm em que a incerteza é oriunda da inevitável ignorância devido a não se ter o instrumental necessário para acessar experimentalmente as "variáveis escondidas" (para ele, as teorias científicas realmente descrevem a realidade, que embora tenha manifestações locais indeterministas, no todo é determinista, fechada na cadeia de causa-efeito, só que descobre-se que ela possui variáveis intrinsecamente ocultas).

É o debate do positivismo (Borh) contra a epistemologia (Bohm). 

"siga-me", fotografia por Wang Qingsong
Para Bohr, "não existe mundo quântico. Existe apenas uma descrição filosófico-quântica abstrata. É errado pensar que a tarefa da física seja descobrir como é a natureza. A física se preocupa com o que podemos dizer sobre a natureza", em "The Philosophy of Quantum Mechanics", de M. Jammer.

Tal debate nunca foi resolvido em termos de julgamento das evidências, comprovação, corroboração, contra-exemplos. Os julgamentos entre os cientistas entre a controvérsia evoca critérios metafísicos e mesmo estéticos. Decidem em termos de qual postulado é mais elegante, ou que possui maior poder explicativo para um número maior de fenômenos, etc.

Eu me identifico com uma posição recente, que integra alguns pontos de cada, ( como o faz também o Instituto de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica - ICRA); adoto a visão de que emergem na realidade diversos níveis de eventos, processos e componentes com princípios de organização próprios e que se influenciam mutuamente no todo maior. A abertura caótica criativa ao meu ver está na própria realidade, mas a realidade não pode ser decifrada manifestamente direta. Sou Realista Crítico, caindo mais para o crítico, porém: pode-se ter acesso à escopos da realidade (mesmo que a galera Copenhague diga que não), ainda que não seja representada de forma diretamente objetiva, mas pode ser conhecida parcialmente e representada ainda que imperfeitamente. Ocorrerá sempre uma "distorção". 

Assim, está mal-direcionada a busca para um modelo e consequente linguagem universal para todos os fenômenos, que muitos cientistas acreditam ser uma "missão", autônomo ante as peculiaridades do processo abordado. 

 Disto decorre que o Real é muito mais rico e fecundo do que cabe no claustro positivista. Não podemos pautar o que "É” com um "Só Pode Ser Assim" derivado do que achamos "Normal". Nosso questionamento tem de ser no sentido de "o que lhe faz pensar que seja assim?".
  
Vez ou outra retomo leituras de "Uma Incertaine Réalidaté", de Bernard d'Espagnat, que de certa forma acompanha uma avaliação balanceada da controvérsia, de linha realista critica, embora esteja inclinado de foma mais matizada para Copenhague. Foi uma das leituras mais apaixonadas que fiz de um livro sobre divulgação popular de física teórica e cosmologia, e considero uma obra que nos conduz a encaramos o Universo com o assombro do "Numinoso", sobre o qual Rudolf Von Otto escreveu tão poderosamente. 

As traduções do francês aqui são livres, com ajuda indispensável do dicionário (imagine-se o que é ler e reler sob estas condições =P):

Ao contrário do caso com a física clássica, com sua divisão em campos e parcelas que são consideradas um reflexo da realidade, os 'objetos' de referência da física quântica são insólitos. Partículas quânticas agem de forma imprevisível e indeterminada e muitas vezes não possuem propriedades palpáveis ou detectáveis que permitam estabelecer sua localização espacial, nem sobre margens de energia limitada, nem seu sentido de rotação. Eu me atreveria inclusive a dizer que essas formas misteriosas não são outra coisa do que noções que nós temos elaborado para representar o nosso mundo empírico.

Ele conclui em termos gerais que, conquanto as implicações físicas da teoria quântica sugerem que o conhecimento científico nunca verdadeiramente descreve a realidade de maneira puramente objetiva, independente dos meios de mentalização, a necessidade conceitual é de redefinir a realidade definitiva por uma "realidade velada”'. "_A única resposta que eu sou capaz de fornecer é que subjacente a esta realidade empírica está uma misteriosa e não-conceituável 'realidade última', não incorporada no espaço e (provavelmente) não no tempo também."

Então, nenhum dos seguimentos do saber humano hoje é suficiente para nos endereçar na "caça" ao real, reivindicando serem as vias cognitivas únicas de acesso ao Ser. "Teoria do Tudo"? Um sonho vago e distante. Talvez com necessidade de ser "re-focado". A melhor tarefa da explicação científica é impedir fantasia descuidada e a especulação desenfreada, suscitando coerência para os cenários ontológicos.