26 de dezembro de 2011

Nascer novamente...

Convido os leitores de Cristianismo, meramente a um passeio sobre um recorte em uma passagem importantíssima no Evangelho de Jesus, com grande impacto e significado para a fé e para a compreensão do chamado cristão: o diálogo com Nicodemos, no Evangelho de João. Nosso comentário aqui delimita-se no recorte, no capítulo 3, entre os versos 1 a 11.

Nicodemos chega falando em nome de algum círculo próximo de pessoas que destoavam das proeminentes lideranças de Jerusalém. Comentavam entre si que as virtudes de Jesus apontavam para ter sido alguém realmente comissionado da parte de Deus. Não compartilhava o veredito de muitos de que Jesus seria da parte do Maligno, ou um carismático charlatão arrastando o povo para a temeridade pura.

Nicodemos chegara à noite; horário propício para não chamar a atenção, e um horário mais comum para os estudos dos mestres religiosos judaicos, sendo que estariam “de folga” do serviço. Isto em si não o afetaria, pois é sinalizado que seria uma pessoa rica. João aproveita para trabalhar no seu característico simbolismo noite/dia luz/trevas.

Ele chega, na autoridade destas pessoas proeminentes, repassando seu reconhecimento a Jesus, implicando que lhe imputava apreço. Nada muito elevado aí. Nenhuma confissão de se estar disposto a ser um seguidor. Seria algo como um “homem justo”, que tinha um bom relacionamento com Deus e a aprovação deste. A partir daí, “passa a bola” para Jesus poder se explicar ou retribuir a cortesia.

Contudo, não é por aí a atitude e resposta de Jesus. Jesus responde com um desafio à Nicodemos. Decerto, podemos ver aí um padrão, compartilhado com os evangelhos sinóticos.

Como em Lucas 18, 18-30, no encontro com o Jovem Rico ( se ele tão piedoso como se apresentou, porque não rendeu um louvor a Deus por Jesus ao invés de lhe atribuir a bondade?) O escandaloso dito “deixai os mortos enterrarem seus próprios mortos”, em Mateus, 8.22 ; o dito sobre as raposas, aves e o Filho do Homem, em Lucas 9, 58; a passagem sobre a mão no arado, em Lucas 9, 61-62. O encontro com a mulher siro-fenícia, em Mateus 15,21-28 ( o chamado “Filho de Davi” não era alguém esperado a expulsar os estrangeiros da terra?) . Em todos estes, o padrão é delineado e atestado: alguém chega a Jesus de forma lisonjeira, aparentemente (mas não necessariamente) bajulando; ele desafia ou põe a teste a pessoa, até mesmo repelindo-a de forma a parecer que quer ser evitado, nos termos com que ela o busca.

Então, um grande choque é dado em Nicodemos. Jesus responde com uma declaração desafiadora. Os sinais que realizava não eram meramente para mostrar que Deus estava com ele, como a um mestre virtuoso. Mas demonstravam a chegada do próprio Reinado de Deus!!!

Eram os tempos da promessa, o culminar da expectativa da esperança de Israel, irrompendo nos sinais de Jesus. “O Senhor será Rei sobre toda a terra; naquele dia, um só será o Senhor, e um só será o Seu nome” - expectativa gerada à luz da passagem do livro profeta Zacarias 14,9.

Mas para o ver, era necessário nascer de novo! Isto claramente dizendo que se aplica a Nicodemos e seu círculo; não o viam porque necessitavam de um novo nascimento. Costumavam dizer que os gentios que aderiam à fé judaica e se incluíam na família dessa fé eram novos nascidos, como crianças a ingressar numa nova família. João pode estar fazendo um jogo de palavras, num artifício literário que gosta muito de empregar, explorando a ambigüidade do termo grego anothen. Pode significar “de novo” e “do alto”, assim servindo para apontar diretamente como “da parte de Deus”. Mas é quase improvável que este diálogo se desse neste idioma. De fato em Jerusalém não era incomum pessoas serem bilíngües, no aramaico e grego, ou mesmo trilingues com o hebraico. Isso é seguro para alguém com o status social de Nicodemos. Jesus, sendo um marceneiro ou pedreiro, proveniente de Nazaré que distanciava relativamente muito próximo ao efeverscente centro urbano cosmopolita em construção de Séforis, na Galiléia, com muita demanda para seus serviços, devia sim conseguir se comunicar, pelo menos basicamente, em grego. Seu interesse no estudo profundo das Escrituras o habilitara no hebraico. Mas não fazia sentido ali dois judeus conversarem assuntos religiosos em grego. O normal é conversarem em aramaico, e é o mais provável. E neste idioma, não há termo passivo deste duplo sentido. Como no desenrolar do diálogo então, podemos concluir que Jesus realmente disse “nascer de novo”.

Nicodemos precisava de conversão? Nãao, não seria possível que este pregador, Jesus, estivesse agora tendo realmente alcance de suas palavras, não estava sabendo o que dizia... era um homem da sociedade, de ambientes dos mais respeitados e afamados, reconhecido piedoso, de posição e reputação ilibados. Sua resposta foi irônica, como se explicitando que o que Jesus falou não poderia ser sério; de forma irônica, “fez-se de desentendido” como que apontando que o que Jesus falou era tão absurdo que a insensatez do sentido de sua pergunta ainda teria um sentido mais óbvio. Aquilo não podia ter sido para ele.

Jesus então reforça ainda mais o poder surpreendente de suas palavras anteriores, evocando tons mais potentes. Estava sim, falando do cumprimento das promessas de Deus, e interpelando Nicodemos. Nascer da água e do Espírito... para um Novo Tempo, Deus estaria preparando uma Nova Geração, gerando novos filhos e inaugurando uma Nova Aliança. Cumpriam-se as Escrituras e ali vicejava o Plano Redentor de Deus.

Assim diz Yahweh, Aquele que te fez,
Que te modelou desde o ventre materno e que te sustenta.
Não temas, Jacó, meu servo,
O Reerguido, a quem escolhi,
Porque derramarei água sobre o solo sedento
E torrentes sobre a terra seca.
Derramarei o meu Espírito sobre a tua descendência
E a minha bênção sobre os teus rebentos.
Do livro do Profeta Isaías, 44, 2-3.

Farei sobre vós uma aspersão de água pura e ficareis puros; sim, eu vos purificarei de todas as vossas impurezas e de todos os vossos ídolos. Eu vos darei um coração novo e porei no vosso íntimo um Espírito novo, tirarei do vosso peito um coração de pedra e vos darei um coração de carne. Infundirei em vós o meu Espírito e farei com que andeis segundo meus estatutos, guardar minhas normas e as pratiqueis. 
Do livro do Profeta Ezequiel, 36, 25-27.

Jesus é representando em João se expressando de maneira diferente do que predomina nos evangelhos sinóticos. Mas há um ponto de contato marcante: como trabalha em cima das imagens fortes do que é circundante e cotidiano dos seus ouvintes. Nos sinóticos predomina o ambiente rural da Galiléia. Em João, muito diferentemente o ambiente de Jerusalém e adjacências, com outro cenário, paisagem, geografia humana, perfil da audiência, e no contexto de seu ministério é forçado a se entender que o que lhe instigava nas interações, discursos e discussões seria bem diferente dos motivos na Galiléia. E um exemplo crasso é o apelo constante às imagens da água e pureza.

Por ser a sede do Templo e referência cultual judaica, em Jerusalém havia uma notória preocupação com arranjos para propiciar práticas de purificação ritual, em hebraico, a tohara. Haviam diversas estruturas para abrigar água conhecidas genericamente como miqwa'ot ( do singular miqweh). Eram visados sobretudo pessoas impedidas de entrar na parte interna do Templo devido a defeitos físicos. Outra grande preocupação era conseguir que a água pudesse fluir dado o decorrente acúmulo de sujeiras e assim, pudesse a manter "pura" (havendo também pequenas estruturas para lavagens de partes do corpo como pés e mão, não incluindo aí as pequenas instalações que eram costumeiras para unção ritual dos pés com óleo).

Passa Jesus então a dizer que era para Nicodemos não ficar admirado dele ter dito aquilo antes. Porque o dom de discernir o fenômeno que estava se processando na história não era um dom que se adquire com esforço humano, não é resultado das circunstâncias terrenas dadas, mas deve advir de Deus; isto com o nascimento do Espírito. As convenções sociais não podem domar esta ação do Espírito, e ela se manifesta entre as pessoas rompendo com os com as grandes destes status quo. Esta ação do divino no humano não é acrisolada pelos mecanismos culturais de controle. Faz lembrar a feliz afirmação de Rubem Alves: Teologia não é rede que se teça para apanhar Deus em suas malhas, porque Deus não é peixe, mas Vento que não se pode segurar...
em "Sobre deuses e caquis", prefácio a "Da esperança", editora Papirus.

Nicodemos agora foi desarmado; sua pergunta demonstra o quanto ficou atônito. Não era isto o que esperava ao visitar Jesus. Tudo aquilo era um espanto para ele! Como tudo isto pode se suceder ????

Então Jesus reporta que ele, como mestre religioso reconhecido em Israel, deveria saber do que Jesus estava falando, se de fato ele estava a altura do posto ao qual era atribuído, deveria então estar compreendendo. O que mostra que o reluzir deste ensino então tem que advir da própria realidade de Deus, em contraste com as limitações das proveniências meramente culturais do círculo em nome do qual Nicodemos viera. Em contraste com tal, era este o círculo e o ambiente de Jesus: a esfera de Deus.