31 de agosto de 2011

Não viemos ao mundo a passeio - parte II


As comunidades cristãs continuaram essa tradição ministerial de Jesus, mesmo em regiões muito diferentes, distantes e urbanizadas. Na carta aos Romanos, na passagem citada, vemos as recomendações de Paulo para a Igreja circular em torno do acolhimento mútuo, a vida digna ainda que simples, orientada pela racionalidade da proteção mútua, da não-violência, e de não dar vazão a que se construa nenhuma estrutura social opressora.

Que o amor fraterno vos uma com mútua afeição; rivalizai na mútua estima”. “Abençoai os que vos perseguem; abençoai e não amaldiçoeis. Alegrai-vos com os que estão na alegria, chorai com os que choram”.

Numa cultura como a nossa marcada pela lei do “levar vantagem a qualquer custo”, do “ser bem-sucedido passando por cima de tudo e todos”, do “estabelecer-se no status quo”, ali havia a auto-doação, a paciência, o amar ao próximo como a si mesmo. O não passar adiante a irradiação do mal. O dar impulso e abastecer uma roda motriz de virtude, humildade e solidariedade. “Não te deixes vencer pelo mal, mas sê vencedor do mal por meio do bem”.

É difícil a escolha. São avassaladoras as tentações e medos...

Evoco aqui um trecho de uma de minhas obras preferidas, o livro “A Peste” do escritor Albert Camus, um dos escritores e pensadores ateus que mais me inspira.

Uma cidade vivia seu cotidiano de normalidade. Cada um cuidando de sua vida como pode e o cotidiano acontecendo, indo pra lá e pra cá e vivendo. Até que um dia perde-se a paz, a estabilidade. Chega uma peste adoecendo e matando sem que se não possa fazer nada. Sem escolher. As reações variam, cinismo, terror...Há aqueles que afirmam que vem de Deus. Um castigo pelos pecados. Um chamado ao arrependimento e contrição. Até que uma criança, inocente, é flagelada, e morta gradual e dolorosamente em seus braços...foi Deus?

Algumas pessoas buscam enfrentar a situação simplesmente tratando dos doentes no hospital da cidade. A cidade está em quarentena. Entre elas o dr. Rieux. Um repórter, Rambert, que estava de passagem na cidade, busca em grande parte da trama uma forma de driblar a quarentena e conseguir escapar para encontrar sua amada. Oh, como iria acabar seus dias ali? Para quê? O que no mundo compensaria?

- Mas, afinal - dissera Rambert -, eu sou um estranho nesta cidade.
- Sem dúvida, .mas, apesar de tudo, esperemos que a epidemia não dure muito.
Para concluir, tinha tentado consolar Rambert, observando que podia encontrar em Oran matéria para uma reportagem interessante e que todo acontecimento tinha o seu lado bom. Rambert encolhia os ombros. Chegavam ao centro da cidade.
- É uma estupidez, doutor, compreenda. Eu não vim ao mundo para fazer reportagens. Mas talvez tenha vindo ao mundo para viver com uma mulher. Não é a ordem natural das coisas?

Mas suas tentativas são sempre frustradas. Entrementes ele chega a colaborar com os voluntários no hospital, para suportar melhor a espera angustiante.

Na realidade, teve de esperar duas semanas, pois os turnos de guarda foram prolongados para quinze dias a fim de reduzir o número de equipes. E durante esses quinze dias, Rambert trabalhou sem se poupar, de maneira ininterrupta, com os olhos de certo modo fechados, desde a aurora até a noite. Tarde da noite, deítava-se e dormia um sono profundo. A passagem brusca da ociosidade a esse trabalho esgotante deixava-o quase sem sonhos e sem forças. Falava pouco de sua próxima fuga. Um único fato notável: ao fim de uma semana confessou ao doutor que, pela primeira vez, na noite anterior, se embriagara. Ao sair do bar, teve de repente a impressão de que suas virilhas se inchavam e seus braços se moviam com dificuldade em torno da axila. Pensou que era a peste. E a única reação que pôde ter então, e que concordou com Rieux não ser racional, foi correr ao alto da cidade e lá, de uma pequena praça, de onde ainda não se divisava o mar, mas de onde se via um pouco mais de céu, chamar sua mulher com um grande grito, por cima dos muros da cidade.

Até que um dia... irrompe a grande oportunidade! A felicidade bate à porta! O lampejo de escape rumo à realização.

Uma vez ele ouve:

- Tem razão, é preciso ir ao encontro dela. Senão, o que lhe restaria?”.

Tudo estava preparado. Chegara o momento da partida.
Rieux voltou-se. Por cima da máscara, seus olhos se franziam ao ver o jornalista.
- Que faz aqui? - perguntou. - Devia estar longe. Tarrou disse que era para a meia-noite e Rambert acrescentou: ”Em princípio”.
Um momento depois, Rieux e Rambert instalavam-se no banco traseiro do carro do médico. Tarrou dirigia.
- Acabou a gasolina - disse, ao arrancar. - Amanhã, teremos de andar a pé.
- Doutor - disse Rambert -, não vou embora, fico com o senhor.
Tarrou nem pestanejou. Continuava a dirigir. Rieux parecia incapaz de sair de seu cansaço.
- E ela? - perguntou, com uma voz surda. Rambert disse que tinha refletido, que continuava a acreditar no que acreditava, mas que se partisse teria vergonha. Isso perturbaria seu amor por aquela que tinha deixado. Mas Rieux endireitou-se e disse, com uma voz firme, que aquilo era tolice e que não era vergonha preferir a felicidade.
- Sim - disse Rambert -, mas pode haver vergonha em ser feliz sozinho.
….
Tarrou, que nada dissera até então, observou, sem voltar a cabeça, que, se Rambert queria compartilhar da desgraça dos homens, jamais teria tempo para ser feliz. Era preciso escolher.
- Não é isso - disse Rambert. _Pensei sempre que era estranho a esta cidade e que nada tinha a ver com vocês. Mas agora que vi o que vi, sei que sou daqui, quer queira, quer não. A história diz respeito a todos nós.
…..


Todo dia decisões, atitudes assim são tomadas, feitas. Por pessoas anônimas, em eventos anônimos, e muitos momentos que não têm uma pompa espetacular. Sem ter tempo de se encaixar as ações num pensamento sistemático, numa visão de mundo... era o que devia ser feito. E é isto que mantêm a sanidade humana na história. Hoje, sobretudo através da TV, se ensina a não se comprometer se não tiver afetando seu bem-estar pessoal. Não se envolver em lutas se comprometerem seu conforto, privilégio, status quo... ensina-se que se mais pessoas tiverem usufruindo, você é menos especial. 


É a anomia. Vencemo-la com o bem...


Amém. 

Não viemos ao mundo a passeio - parte I

Reflexões sobre:

II Samuel 2,17-27
Salmo 24
Mateus 25, 14-30
Romanos 12, 9-21

Para poder acompanhar a reflexão com vividez, pedimos que façam uma leitura prévia destas passagens que, para não alongar demais, evitamos reproduzi-las aqui.


É fascinante podermos viajar no patrimônio cultural comum entre a humanidade, ou mais, quando podemos viajar nas atitudes coletivas comuns na humanidade para com elementos e pulsões internas, para com o transcendente, no que compartilhamos quanto ao que ultrapassam o tempo ainda que varie de forma e em diversos aspectos.

Neste Salmo, se prestarmos atenção numa leitura atenta e detalhada, veremos que é um cântico de procissão. Um cântico de procissão do povo, emanando dele sua devoção, fascínio, aspirações coletivas, sua identidade como povo, sua força interior canalizada e direcionada, força para enfrentar os poderes do “não-ser” que podem ameaçá-lo. Podemos formar uma imagem do povo judeu seguindo os sacerdotes em procissão ao Templo, com danças, expressões devotas, olhos cerrados, bocas abertas pra cima, mãos à frente...um povo em procissão sem imagem, pois não forjavam imagens do divino. Haviam outras imagens de adorno e de formação de uma aura de devoção e temor, de expressão do numinoso do local de culto, como as de Querubins, leões alados com rosto humano... mas não do alvo de sua devoção.

Assim podemos também nos aproximar melhor da angústia que o canto fúnebre ante a morte do rei Saul carrega. Ali não era apenas a morte do rei. Era uma profunda adaga cravada no orgulho nacional e no sentimento agregador, na expressão de ser do povo. O símbolo do seu projeto de nação. O rei, seu descendente imediato, os maiores guerreiros.... e quê adiantava isto agora? O que eles, realmente foram e apresentaram por si mesmos? O filho do rei morto em combate, o rei ante à iminente captura, se atira numa espada após ordenar ao servo que o matasse e este lhe desobedecesse.

Não devemos estranhar demais o quanto a Bíblia está entremeada de noções e lida tão naturalmente com guerras. Guerras e guerras. Era a realidade crua do povo que ali é retratado. Israel era um país pequeno cercado de nações, numa rota estratégica para, principalmente,  passagens de exércitos de impérios em guerras uns com os outros. Seria algo completa e dissimuladamente antinatural e dissimulado, plenamente falso, se ali não contivesse a guerra no imaginário e linguagem normal dos escritos. Podemos ter uma noção ao pensarmos nas letras de rappers, carregadas de violência ou agressividade que advém da realidade que eles nos jogam na cara, que seria desonesto se não falasse delas.

"Não publiqueis em Gat, não o anuncieis nas ruas de Ascalon, que não se alegrem as filhas dos filisteus, que não exultem as filhas dos incircuncisos." Temiam que se juntasse o escárnio para levar a profundezas ainda mais lúgubres seu augúrio e humilhação.

Pereceu o esplendor de Israel nas tuas alturas! (...) Tombaram heróis em pleno combate!

E quais os frutos das decisões existenciais que eles tomaram? Daquilo que fizeram com suas oportunidades e responsabilidades?

A parábola de Jesus em Mateus é conhecida como “Parábola dos Talentos”. Alguns associam equivocadamente o “talento” que aí se fala com o termo “talento”, o que limita seu sentido. Talento era o nome do dinheiro, que alguns estudiosos presumem que na época do ministério de Jesus aquela quantia do proprietária deveria equivaler a 5000 dias de trabalho, 2000 dias e 1000 dias. Pouco? Nãao, hehe. Aquele tempo era uma cena comum, homens ricos e de prestígio muitas vezes eram mercadores, e empreendiam longas viagens, encarregando a empregados, sejam livres ou servos, o cuidado da administração de suas finanças, devendo ser zelosos e buscar fazê-las prosperar. Engraçado que hoje se encontrara em achados arqueológicos, exemplos de dinheiro enterrado, para o qual os donos não puderam voltar... Importante nos acercarmos destes dados para vermos que Jesus não proferia ensinamentos como abstrações, ou aforismas pretensamente “caídos do céu”, mas arraigados na experiência vivencial das pessoas. Até porque costumava ir ensinar nas sinagogas, que funcionavam como centros comunitários onde as pessoas discutiam as questões de sua comunidade, além dos momentos religiosos, aquelas questões também carregadas de temática religiosa.

Podemos então compreender que os “Talentos” significavam os recursos – incluindo, mas ultrapassando os dons - oportunidades e responsabilidades na vida. Cada pessoa possui os seus.  Cada um tem sua vivência, e a mescla da interação entre seus genes, corpo, mente, ambiente, experiências. Nenhum vive a pessoa do outro. Ninguém responderá pelas escolhas do outro, mas pelas escolhas que teve quanto ao que fazer com o produto destas interações.

Lembro-me do filme “O Resgate do Soldado Ryan”. Uma viúva sozinha recebe uma carta comunicando as mortes dos filhos na Segunda Guerra Mundial, lhe restando mais um que está no front de batalha. O exército decide empreender um resgate dele para diminuir o sofrimento da mulher. E uma equipe consegue lhe achar. Ele a princípio fica incrédulo, depois se recusa a ir, argumentando que é um soldado como qualquer outro e não merece tratamento especial. Por fim, após fortes combates, ele consente em ir e escapa, tendo vários companheiros e membros da equipe sido mortos. Seu superior lhe fala: “faça valer a pena”.

Assim também na parábola. Um servo usou de pretexto leviano. Se ele tinha tal conceito do senhor, então aí que era para ele se motivar mais ainda a não deixar o dinheiro se desvalorizar e buscar fazê-lo render, imaginando que seria cobrado. Foi negligente e irresponsável.

Na vida, muitas pessoas não terão nunca oportunidade, nem um senso de chamado, para empreenderem atos famosos que consagrarão grande destaque. A maioria é encarregada de lidar com suas oportunidades e deveres diários e imediatos. Nem por isso sua missão é menor.

É com essa vivência diária que está o grande empreendimento e a grande responsabilidade. Algumas pessoas poderão se deparar com um grande encargo especial que lhe suscita abrir mão do que lhe está diante na vida. Isto é com ela. É consigo. Cada um com seu encargo.

Jesus vivia e pregava predominantemente entre e para pessoas comuns. Num mundo em que havia círculos viciosos de violência, exploração, e disseminação disto, ele buscou fortalecer os laços de proteção espontâneos nas comunidades e entre os indivíduos. Passou por regiões onde as pessoas estavam tendo que usar para seu sustento água que passava por canais advindos de banhos públicos da elite, sujas pela elite. Pessoas que para cuidar de seus sistemas agrícolas, seus ofícios diversos, com todas as redes de segurança comunitárias esfaceladas, vulneráveis perdiam tudo em dívidas, e buscavam em quem era mais fraco extrair também para compensação. A espiral das dívidas. A noção de imposição do prestígio e autoridade social era marcada com bofetadas que os da escala mais alta impunham no rosto dos de mais baixa, dos seus devedores, servos, dos “menores”, para evidenciar tal hierarquia. Soldados passavam violentando mulheres, surrando homens, tomando seus agasalhos, obrigando-lhes transportar suas tralhas por longas distâncias...tudo era passado pra frente. Às vezes pior. Algumas pessoas introjetavam a lógica e a força da violência. Visualização soturna é a do “endemoniado Gadareno” imaginando, impotente, incorporar a tropa romana, assumindo em sua psique toda a humilhação e a pondo pra fora encarnando toda a monstruosidade insana... e Jesus confrontando seus demônios.

Jesus estava dando um basta e movendo as pessoas a uma lógica oposta a da replicação da opressão. Visava matar o círculo vicioso de fome, ao invés de prosseguir alimentando-o, em atos ou na disposição interior. E com atos e com disposição interior renovada, conclamava as pessoas a iniciarem um ciclo vicioso de acolhimento, proteção mútua, de um projeto de vida chamado Reinado de Deus. E limpava-lhes a existência para usufruir da própria oportunidade de viver. Não um viver descompromissado, mas compromissado, em que assim a pessoa, sem buscar viver apenas para si mesma, encontrar-se à a si mesma.



Continua....

22 de agosto de 2011

Afiado como navalha


Livro de valor inestimável é o Novo Testamento, conquanto eu admita ter desenvolvido um pouco de antipatia contra ele quando criança, devido a Igreja e as aulas de catecismo. Não foi fácil arrancar da cabeça os velhos conceitos e experimentar o verdadeiro paladar. Em verdade, aprecio muito sobremaneira esse livro, conquanto para mim ele seja algo como um castelo que me permito construir no ar. Não consegui chegar a crucificação, pois a toda hora começo a ler. Eu adoraria fazer uma leitura em voz alta dele para meus amigos, alguns dos quais são pessoas bem sérias. Mas instintivamente desisto de conseguir ouvintes.

Realmente, no Novo Testamento há coisas seriíssimas que nenhum homem deveria ler em voz alta mais de uma vez. “Busque acima de tudo o reino dos céus.” “Não acumulem riquezas pra si mesmos aqui na terra.” “Se você quer a perfeição, vá e venda tudo o que é seu e dê o dinheiro aos pobres, assim você ganhará o tesouro do céu.” Se lidar de maneira correta de qualquer tribuna desse país, uma frase dessas seria suficiente para não deixar pedra sobre pedra do prédio a igreja.

Semelhante a essa corrente, com seus gravetos e folhas a flutuar, tudo passava a frente de nossa negociação, enquanto a rotina de sempre se desenrola nas distantes cidades e vendas às margens desse mesmo rio.
Henry David Thoreau, em "A Desobediência Civil e Outros Escritos".

15 de agosto de 2011

Oh mulher, grande é tua fé!


E, partindo Jesus dali, foi para as partes de Tiro e de Sidom.
E eis que uma mulher cananéia, que saíra daquelas cercanias, clamou, dizendo: _Senhor, Filho de Davi, tem misericórdia de mim, que minha filha está miseravelmente endemoninhada.
Mas ele não lhe respondeu palavra. E os seus discípulos, chegando ao pé dele, rogaram-lhe, dizendo: _Despede-a, que vem gritando atrás de nós.
E ele, respondendo, disse: _Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel.
Então chegou ela, e prostrou-se diante dele, rogando: Senhor, socorre-me!
Ele, porém, respondendo, disse: Não é fica bem tirar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos.
E ela insistiu: _Verdade, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus senhores.
Então respondeu Jesus, e disse-lhe: _Oh mulher, grande é tua fé! Seja isso feito para contigo como tu desejas. E desde aquela hora a sua filha ficou sã.
Mateus 15, 21-28.

É uma passagem que produz agudo espanto, e emociona. É enternecedora, tocante... chocante e intrigante. É bela e estranha.

É impossível não se comover com a mulher, não se comprazer em como conseguira se mostrar moralmente superiora aos discípulos e alcançar “converter” Jesus. Porém diversos detalhes importantes, entremeados no enredo, passam despercebido em uma leitura superficial.

Vamos examinar. Jesus está passando por terras estrangeiras, e é buscado por uma estrangeira. Era necessário se atravessar a região sirofenícia para ir ao mar da Galiléia e também Cesaréia de Felipe, e Jesus mais seus discípulos estavam procurando um tempo à parte das multidões. Ali era um local de terra fértil, importante entreposto comercial das rotas marítimicas, sobretudo de tinta púrpura extraída de conchas. Em especial na região de Tiro, aquela terra era amplamente habitada por caananitas, povo do qual os judeus sentiam repulsa dada a herança das tradições da Bíblia Hebraica de suas inimizades. Sidom fora a casa de Jezabel ( 1 Rs 16.31), uma rainha defenestrada na tradição judaica. Contudo, contemporâneo à Jezabel, Elias proporcionou cura e alimentação para uma viúva e seu filho (2 Rs 17.8-24). Eliseu também teve um encontro marcante com uma sunamita ( 2 Rs 4.28). E estas duas figuras eram impactantes na memória popular da Galiléia no tempo de Jesus, contadas entre os núcleos comunitários e familiares, influente nas aspirações populares ante a opressão que sofriam dos poderosos considerados traidores e dos povos estrangeiros.

Temos na reação de Jesus algo que está bem pertencente a um padrão ampla e consistentemente fixado nas recordações a seu respeito. De ter uma reação inesperadamente ríspida e desafiadora ao ser abordado de forma enaltecedora, aparentemente “bajuladora” ou “interesseira” por pessoas. Seria este o caso daquela mulher? Jesus poderia ter ficado intrigado a respeito.

Este padrão é retratado no episódio do “Jovem Rico”, Mt 19,16-22; Mc 10,17-22, Lc.18.18-30. Também em Lucas 9.57-62, àqueles chegando entusiasmados, fala-se secamente sobre raposas e aves do céu tendo onde se abrigar em contraste com o Filho do Homem; mortos enterrando seus próprios mortos (respondendo ao pedido de enterrar os pais), pôr a mão no arado e não olhar pra trás. Em João 3 no diálogo com Nicodemos, um mestre, é-lhe dito para nascer de novo, sem nenhuma palavra de consideração. Vê-se que em algumas vezes, no decorrer do diálogo, Jesus ganha mais empatia com a pessoa.

A mulher aborda Jesus dirigindo-lhe súplica como “Filho de Davi”. Sem dúvida, ecoava uma atribuição a ele por parte de muitas pessoas, refletindo as concepções delas quanto ao Messias. De alguma forma relatos sobre Jesus chegaram até ela. Mas o que este “Filho de Davi” significava? Textos contemporâneos à época, muitos dos quais se tratando de aplicações a passagens antigas da Bíblia Hebraica, revelam bem. Dado o espaço e limite desta nossa reflexão, não caberia transcrever todos os mencionados.

Na Profecia de Natan, em 2 Samuel 7, a dinastia de Davi é referida efetuando a restauração de Israel, com ecos no livro do profeta Zacarias, capítulo 4 e Ageu 2,10-13. Em 17, 32 e 18,1.5.7 apresenta que sua missão seria afugentar os adversários e trazer paz a Judá.

A figura do “Filho de Davi” e mencionada explicitamente nos “Salmos de Salomão” (produzido provavelmente na década de 60 a.C. ou pouco antes), em 17.21, como uma figura belicosa. A passagem reverbera:

21. Veja, Senhor, e levanta-lhes o rei deles, filho de Davi, para reinar sobre Israel, seu servo, no tempo que escolheste, Deus. 22. Guarneceste-o com o poder para destruir os governantes injustos, para purificar Jerusalém dos gentios que a pisaram para destruir. 23. Para expulsar com sabedoria e justiça os pecadores da herança; para abater a arrogância dos pecadores como a jarra do oleiro.24. Para quebrar com vara de ferro toda a substância deles; para destruir as nações ímpias com a palavra de sua boca. 25. Para fazer as nações fugirem da sua face ameaçadora, e expor os pecadores pela palavra de seus corações.

Também tem-se uma ampla abordagem nos textos da biblioteca de Qumram [ um local onde se reunira uma comunidade religiosa que se apartara da sociedade religiosa judaica mais ampla, tendo ligações com os Essênios], por exemplo em IQM 5,1, 4 e Q 285, esta figura messiânica é líder militar atuante na consumação da história, investindo na guerra do fim dos tempos, em que desencadeará a vinda efetiva final de Deus. Renovará a aliança de Davi - 1Qb 5,20 ss, CD 7,18-21, traz à tona o cumprimento da promessa da “estrela e do cetro” de Nm 24,17. O rebento de Davi vence a figura demoníaca de Belial em 4Q174.

4Q252,1, V-1-4 apresenta uma reflexão sobre Gn 49,10, expondo que “Quando Israel tiver o domínio, não será exterminado aquele que se sentar no trono de Davi, pois o cetro é a aliança da soberania real, [e as tribos] de Israel são as bandeiras. Até a vinda do ungido da Justiça, do rebento de Davi, pois a ele e à sua semente é dada a aliança da soberania régia de seu povo até as gerações eternas”.

Em 4 Q161 temos uma interpretação de Isaías 11, 1-5: “O rebento de Davi se levantará no fim dos dias [...] Deus o apoiará[...] ele dominará todos os povos”.

Então, como se consegue imaginar aquela mulher estrangeira prestando deferência a um “Filho de Davi”, que representava sim uma ameaça, perigo, grande antagonismo? Que representaria sua expulsão daquela terra? Estaria ela sendo dúbia, ardilosa, bajuladora?

Os discípulos apresentam um coração bastante frio para com a mulher. Estava sendo um estorvo, tinha de se dar um jeito logo. O tempo dela e do povo dela estava para chegar....Jesus abrange ainda mais o panorama incorporando o peso de sua missão: aos cães domésticos, que eram os referidos no termo diminutivo da passagem, eram jogadas comidas sem valor ( confira Êxodo 4.22).

Importante ainda para reforçar a autenticidade desta memória é que o evangelho de Mateus, o mais “judaizado” de todos, tenha se alimentado e apresentado também a memória desta passagem.

E o decorrer dos acontecimentos mostra que não, a mulher não era dissimulada: realmente estava ali com coração aberto, vulnerável, e aceitava abrir mão de todo orgulho, toda abstração identitária, em prol de sua filha. Reconhecia que mesmo uma atenção desleixada de Jesus, o que sobrasse de seu tempo e dedicação, “as migalhas da mesa”, seriam suficientes para o quê, para ela, era realmente o que importava.

Esta fé conquistou Jesus.