25 de agosto de 2013

"Identificação: regando as raízes" - uma crônica

“Sou uma gota d'água
 sou um grão de areia”



E subitamente nosso dia mofa. Como mofo de geladeira. Nos deparamos com aquela notícia. Não foi com parente nosso, não foi com amigos. Não era alguém próximo, mas transpomos toda a distância numa ponte de facada gelada no meio de nosso peito. Foi com uma idosa, com um grupo, com uma população. Não necessariamente a mais pobre, o povo mais oprimido, a garota com a cara mais tímida e retraída. "Necessariamente”... como se tivesse alguma necessidade. Como se tivesse intrincado em alguma lógica esquemática... E o dia acaba. Será que ele pôde ter algum começo? Quando começara? Parece que se perdeu de vista... O nascer do sol se tornou tão gélido... e nossos olhos se cobrem de uma fuligem macerada, cinzenta, seca e pegajosa, que enevoa nossas vistas. É quando nos retraímos e não conseguimos partilhar das conversinhas- é o que se tornaram -, do papinho dos colegas de trabalho, dos risinhos das rodinhas, os olhares atravessados nos queimam, parece que o ambiente social ao redor se tornou um bêbado chato.

E por quê? E por quê?

De onde provém a música silente de piano e harpa? A voz docemente triste que parece ter vindo do reflexo pálido do luar no mar parado?

É horrível quando outros sentimentos mesquinhos vêm para manchar isto, como o borrado da maquiagem e o cheiro do ruge de uma meretriz sub-vulgar na paisagem da memória de alguém amado que corre o risco de ficar menos nítida.

Ideias que vêm de se ser o mudo profeta inaudito do mundo surdo. De usar esta melancolia pela dor ante a quem tornamos mais próximos do que o outro que são, para justificar as imposições de nosso ego, os nossos malfeitos e frustrações. Quando se transforma em mecanismo de compensação. Para motivar zombarias amarguradas da parte de quem não consegue se alegrar na festa se não for o centro das atenções. Isso vem para turvar mesmo quaisquer dos mais nobres sentimentos, como se fosse aquilo que algumas igrejas chamam de “setas do inimigo”. Mas para turvar; devido a inveja de não ser água.

Creio que este tipo de empatia não pré-fabricada é autêntica quando não nos leva a sentirmos superiores aos outros, ao mesmo tempo que não importa o quanto possamos nos debater, não afastamos um tipo de indignação, que não é racionalizada – não pode sê-lo – pelo mundo continuar  fazendo o que faz a todo dia e todo momento, tagarelando e barulhando sem parar, não se dando conta do que aconteceu com aquela pessoa. Quem o fez afinal, se não fomos nós, foi o mundo.

Me questiono de onde vem isso de brotar uma partilha de sentimento com pessoas que viveram ou morreram algo doloroso, mesmo a gente não tendo vivido aquilo, ou padecendo de um mal que não é nosso... não falo de uma empatia geral, nada de instinto gregário. Mas casos particulares que nos tocam e cortam diferentemente de quaisquer outros, uma comoção não artificialmente feita que nos domina, e fala em particular... Em meio a tantas agulhas caindo do céu. Iremos encontrar quase concomitantemente diversas notícias horríveis com alguém. Iremos assistir a muitas histórias lacerantes e comoventes, em outros filmes, livros... porque aquela em particular fala tanto conosco? Nos identificamos? Algo do inconsciente? Não, isso seria uma “psicanalização” que ela mesma seria uma racionalização arrogante. Não tem nada tal como um “chiste”. É como se no fundo da alma, o mesmo turbilhão que girou com aquele ser girasse em nós também, no nosso âmago, sua ferida resvalasse nas nossas.

Eu creio que qualquer tentativa de dissertar e descrever isto com artifícios de artigo científico, ou filosofia analítica, deixaria escorrer tanto como areia pura entre os dedos ao fechar a palma da mão. Não é moldável como argila. Apenas as forças conotativas das metáforas poéticas podem compartilhar conosco algo substancial do que ocorre aí, não para a gente “entender”,  mas se aproximar com a percepção e sensibilidade possível para com a textura e temperatura da areia.

Eu sonhei acordado que, em nossos recônditos, no âmago de todos nós, há um poço. Um poço após camadas escuras... sempre cai água, nunca se enche, a não ser no transbordamento quando da morte.  Sempre cai água; gotejando, escorrendo fina pelas paredes, caindo como de uma bica, brotando das fendas... produz sons e vibrações diferentes, e se tudo fosse musicado, teríamos partituras diferentes. Mas no meio do grande ribombar de todos os tanques, uma frequência, um tom, uma forma do cair e do vibrar sintoniza com o de outro poço, e um acorde, ou até uma ária é produzida nesta afinação. Quem sabe até se a água que cai em um não era da mesma, misturando e se dividindo em um dos canais até o desaguar?

Quando esse arrebatamento pelo sofrer alheio é um límpido ribeirinho, algo de significativo e sanador ocorre em alguém, mesmo que seja um processo, um correr de rio entre pedrinhas e galhos caídos.

Conta-se que Beethoven estava numa fase mais soturna na vida quando morava em um conjunto de sobrados, com a surdez já num nível avançado, totalmente insatisfeito com seu momento criativo, desiludido da vida. Havia uma mulher que morava no sobrado ao lado ou abaixo no conjunto; era cega. Beethoven soube que ela afirmava que o maior dos seus pesares era não ver o luar. O compositor se engajou num sentido que captou para seu momento de vida, passando por cima de toda suas lamentações, e se entregou a compor “Sonata ao Luar”, uma das mais arrebatadoras de suas sonatas. Tocando-a ao piano, a mulher ouviu. E dissera então que vira o luar, crescendo, brilhando, se enchendo, minguando para poder novamente renascer.


Eu tive alguns momentos de aguda prostração com a notícia do arrebatamento da vida de B. Um bebê exalando vivacidade, pequena criança sedenta dos descortinares do mundo, uma criança despojada e pueril, que um dia falou embolado algo inteligível demais para nosso esquecimento distraído, um dia jogou papeis, sandálias, coisas coloridas para o alto, esfolou o cotovelo e pintou uma casinha, queria voar de helicóptero, veja só, queria ser repórter, atriz, secretária e aeromoça, andar na rua com sapato alto, óculos e pasta embaixo do braço, tricotar como a vovó. Ela rompia com sua luz pelas colinas. Serelepe com caretas ridículas, muxoxos, pedidos de mimo, sapeca, serelepe. Ela tinha revistinhas tipo Capricho, já aos onze; aos doze anos, ela já entendia de batons, aos onze anos, ela já examinava os meninos, queria paquerar o mais bonito e ser paquerada pelo mais inteligente, achava-se a única a notar um dos mais tímidos, aos doze anos, aos dez anos tinha caderno de segredos. Ela não podia ser tocada, ouvida, não podia receber nenhuma lição, não havia como mandá-la guardar nada, estava “guardada” em um caixão aos treze anos. Ela foi separada de nós, não podia ser abraçada nem como uma fumaça. Uma fumaça ela...

Porque aquilo se eu não era amigo da família, não era próximo, só sabia que existia, se uma menina de sete anos morreu estuprada, se milhares morrem de fome, e outras tantas cheiram cola e outras de treze roubam e matam e muitos querem exterminar as crianças que não foram bem cuidadas? Ela foi bem cuidada. Ela estava doente, de todo jeito, mas aquilo não foi uma doença, talvez uma doença, a chaga da realidade que aceita a carbonização de gente. Doeu isto, doeu seu sofrer anterior com a recém-descoberta doença degenerativa que mal teve tempo de com sua perversão, começar a degenera-la de vez. A minha vida e de quem eu convivo está continuando, eu não sei se as vidas estavam continuando, ela não era mais importante do que todas as crianças do mundo que podem morrer velhas. Eu sabia que ela existia, eu só sabia que ela existia. Mas a minha existência ficara mais abafada e eu às vezes tenho bronquite.


Eu deixava um pouco de pó de vidro arranhar meu esôfago até que um dia um certo encantamento que vem de um Espírito no universo que absorve estas dores lânguidas, como as dores de seu parto, me trazer um cântico para honrar e celebrar e poder pensar: “para B”.
Escultura de Bruno Giorgi

O céu me parecia um companheiro para a minha secura em um dia noturno de uma manhã de segunda feira, em que as nuvens estavam tão cinza quanto o pó de escamas que grudavam minha vista como teia de aranha. E meu inalar estava mais úmido, tendo também que fazer bem mais força para mexer com os braços. O céu respeitava-me e estava até solene. Quando aconteceu. As densas gorfadas de vapor carbonizado como uma fumaça dormente, se convertendo em gotas d'água. Uma família de gotas d´água serelepes. Saltitando aos gritinhos após a abertura dos portões. Elas viviam, entravam cheias de vida aos treze anos até se esfarelar. A ampulheta vazou. E por cada gota d'água, cada única gota d'água, eu gota d'água e todos os meus amores gotas d'água, e pela B., que vive e morre com pesar e esperança em mim, eu reafirmei minha fé de que tudo isto não é em vão. E eu dei as mãos às gotas que me molham não ignorando que há outras gotas que molham, aquelas apenas caíram em mim e as bebi.

O meu texto-desabafo recebeu o nome de “Percurso”.  

Mais adiante o publicarei ;)