16 de novembro de 2009

Finitude, Transitoriedade, Vulnerabilidade - parte I

E aquelas dezoito pessoas sobre as quais caiu a torre de Siloé e as
matou, pensais que eram mais culpadas do que qualquer outro habitante de Jerusalém?
Evangelho segundo São Lucas, 13.4.

O livro “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, deixou uma marca irremovível em mim, e vira e mexe ela se faz sentir, seja ardendo, coçando, fazendo cócegas.

Nele, as pessoas cansaram de tantas aflições. Doenças, guerra, solidão, fome, insegurança... valia a pena abrir mão de qualquer coisa, pois já experimentamos disso demais na história. Dói muito. Chega!..

Criou-se um mundo, a Fordlândia, em que cada indivíduo delegou tudo a cargo de sua vida para um sistema impessoal, que se encarregava de administrar tudo meticulosamente: projetava-se pessoas, com sua genética e psicologia condicionada de modo a ser feliz e útil em um trabalho necessário à sociedade; pessoas não envelheciam, não tinham medo da morte, não adoeciam, não fecundavam, davam à luz e criavam filhos, não se casavam e logo não se divorciavam, não ficavam sós, transavam sem culpa, sem aids, sem complexos, com quem quisesse e o quanto mais melhor; o abastecimento alimentar impecável. Admirável Mundo Novo. Sem guerras, fome, violência.

Mas eu disse errado: não se podia falar em “indivíduo”; de fato, cada um era um naco da massa de bolo; não havia mais personalidade, logo liberdade, individualidade, não só não existiam como não faziam sentido. Havia até uma substância, o SOMA, que aliviava qualquer recaída em tristeza ou angústia, dava ânimo, e até experiências transcedentais. Religião, álcool e auto-ajuda em um comprimido.

Não cabe aqui fazer uma resenha. Recomendo a todos a leitura. Vou transcrever uns trechos de um diálogo com um dos grandes Administradores da Fordlândia, explicando sua lógica – de fato, se mostra o quão relevantes e atuais são as reflexões a que o livro propõe, pois vai de encontro às aspirações de muita gente que se julga “esclarecida”:

'Só se pode ser independente de Deus enquanto se tem juventude e prosperidade; a independência não nos levará até o fim em segurança'. Pois bem, agora nós temos juventude e prosperidade até o fim: o que resulta daí? Evidentemente, que podemos prescindir de Deus. (...) não há para nós perdas a serem compensadas; o sentimento religioso é supérfluo.

Uma réplica, mais adiante, de um interlocutor: Se os senhores se permitissem pensar em Deus, não se deixariam agradar por vícios amáveis. Teriam uma razão para suportar as coisas com paciência, para fazer as coisas com coragem! (...) E o desprendimento, então? Se tivessem um Deus, teriam um motivo para o desprendimento.

O Administrador: Meu jovem amigo, a civilização não tem nenhuma necessidade de nobreza ou de heroísmo. Numa sociedade convenientemente organizada como a nossa, ninguém tem oportunidade para ser nobre ou heróico. É preciso que as coisas se tornem profundamente instáveis para que tal oportunidade possa apresentar-se.

O interlocutor: Ainda assim – insistiu o Selvagem – é natural crer em Deus quando se está só, completamente só, à noite, pensando na morte...

O Administrador : Mas agora nunca se está só – disse Mustafá Mond – Fazemos com que todos detestem a solidão, e organizamos a vida de tal forma que seja quase impossível conhecê-la.

A grande sacada de hoje é ser mercador de felicidade. Qualquer empreendimento e produto, no fundo ,possui na sua propaganda, embutida tal questão: “estamos lhe oferecendo a felicidade”; e assim crescem empresas, programas de TV, empreendimentos religiosos...

Sim, empreendimentos religiosos. Me tem parecido que hoje, se inverteram os papéis do livro, e os líderes e organizações religiosas fazem o papel do Administrador.

Finitude, Transitoriedade, Vulnerabilidade.

Versar sobre estes três termos pode me render incompreensão, impopularidade. Mas devemos seguir a consciência e ter a ousadia de falar as coisas críticas nos momentos críticos. São três temas que dificilmente alguém ouve muito em igreja. Vai de encontro a maior estratégia de crescimento e de manutenção de templos cheios atualmente:, seja em versões mais exageradas e de má-fé, ou manifestações de boa-fé e sinceridade. Vou tentar dizer o que precisarei dizer aqui, ainda que categoricamente, com muita humildade. Pois sei que os problemas concretos que nos angustiam na vida são sérios, dolorosos, e realmente queremos que passem. Às vezes lidamos com situações que nos esgotam, emocional, fisicamente, e a gente chega a desesperar da vida. Deixo claro que de forma alguma quero ser leviano com aquela dona de casa, aquele jovem, aquele idoso, aquele casal, etc., etc., que dizem amém com todo o fervor ao escutar na Igreja ou na música que logo Deus solucionará todos seus mais graves problemas. Até porque eu também passo por situações assim, e só eu sei o quão eu gostaria de que passassem logo....

Pois é isso o que direi e fundamentarei, e que não é nenhuma novidade (pois Jesus disse: “no mundo tereis aflições, mas tenham ânimo, eu venci o mundo” – S.João, 16.33, e não “tenham ânimo, vou dar uma resposta ou uma solução mágica para todos”).

Filhos com grandes problemas, seja com drogas, crimes, rebeldia aguda, promiscuidade vulgar e constante...dívidas que se avolumam, assolam, em condições que estão fora de nosso controle, e podemos perder tudo...catástrofes naturais que roubam a vida de entes queridos, levam nossa saúde, aptidão para nossa profissão, todos os bens...doenças dolorosas e definhadoras...acidentes graves...desemprego...

Sim. Seria muito bom se eu pudesse dizer “tenham fé que é garantido que Deus vai resolver”. Realmente, pode ser. Não irei ao sentido oposto: “Não adianta, Deus não resolve”. Mas é importante frisar: _pode ser que o pior aconteça. Não se iluda; acontece em todo o mundo, em todos os tempos, e pode acontecer, seja você de qual religião, igreja, ou o que for.



Elias vive como fugitivo e errante. Davi sofre nas mãos de Saul e mais tarde é atacado por seu próprio filho. João Batista é degolado por Herodes.
(...)
Pois resta-nos ou beneficiarmo-nos ou sermos injuriados pela aflição. Não depende da natureza da aflição, mas da disposição de nossa própria mente. São João Crisóstomo. Homillies on Galatians, Ephesians, Philippians, Colossians, Timothy, titus and Philemon.

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