25 de dezembro de 2016

Refúgio - uma mensagem de Natal


E era tocante essa proteção de um ser disforme sobre um ser infeliz como essa condenada à morte salva por Quasímodo. Eram duas as misérias extremas da natureza e da sociedade que se tocavam e se ajudavam.
No entanto, após alguns minutos de triunfo, Quasímodo tinha entrado na igreja com seu fardo. O povo, apaixonado por qualquer proeza, procurava-o com os olhos na nave sombria, lamentando que se tivesse furtado tão rapidamente às suas exclamações. Ele reapareceu numa das extremidades da galeria dos reis da França, atravessou-a correndo como um louco, levantando sua façanha nos braços e bradando 'Refúgio!'.
A multidão novamente aplaudiu. Uma vez percorrida a galeria, ele voltou para o interior da igreja. Momentos depois ele reapareceu na plataforma superior, sempre com a cigana nos braços, correndo e gritando 'Refúgio!'. E a multidão aplaudia. Fez uma terceira aparição no topo da torre do sino; dali, pareceu mostrar com orgulho para toda a cidade aquela que tinha salvado, e sua voz estrondosa, essa voz raramente ouvida, que ele nunca ouvia, repetiu três vezes até as nuvens: 'Refúgio! Refúgio! Refúgio!'.
_Natal! Natal! - gritava o povo por seu lado, e essa imensa exclamação ia surpreender, na outra multidão da Grève e a reclusa que ainda esperava, o olhar fixo no patíbulo."

9 de junho de 2015

Um escândalo religioso

Obra escandalosa do Mestre Mathias Grünewald, dentre os anos de 1512-16. O Retábulo de Iseiheim.

Em relevo na foto anexa, o Cristo retratado no painel do altar, com um traço marcante:
Num período turbulento envolvendo a "Guerra dos Camponeses" em terras alemãs, quando a nobreza se empenhava em sufocá-la, esta figura de Jesus em um altar na Alsácia retrata um camponês portador da doença mortal conhecida como "Fogo de Antão", que ocasionava ulcerações, purulências, fedor e dores que enlouqueciam as pessoas.

Vistos como fustigados pelo "flagelo de Deus", os camponeses, já com o ostracismo social, eram normalmente abandonados à sorte.

Mas havia religiosos antonitas que se dedicavam a cuidar destes momentos tenebrosos vividos pelas pessoas, a despeito da ideia de que esta doença era como a "lepra".



À pintura do altar se apresentavam os doentes, que viam a encarnação de Deus na Terra se identificando com seus sofrimentos; depositados aos pés do altar, confrontando as ideias de que o que viviam era castigo, viam no crucificado a desfiguração que lhes acometia.

Grunewald sofreu por ter tomado partido da causa camponesa. Ia contra o status quo.



Morreu em 31 de agosto de Deus de 1528, fabricando sabonetes e construindo canalizações de água.

15 de abril de 2015

Espiral de Desumanização


Na obra “A Desumanização”, o escritor espanhol Valter Hugo Mãe tece uma trama de carga psicológica profunda e claustrofóbica numa ilha islandesa em torno da menina Halla, que tem como estopim a morte de sua irmã gêmea Sigridur e o trauma dilacerante nela e na família. A irmã representava a completude de sua identidade, e a referência para ternura, cumplicidade, autodescoberta e mesmo a lucidez.

Objeto do descarrego da dor da mãe – que outrora era a imagem da candura -, em fúria insana que lhe busca como bode expiatório, Halla não podia encontrar apoio no pai; figura que outrora fora diligente, era quem lhe alimentava a alma de lirismo, imaginação, de possibilidades maiores de vida posto que era um erudito autodidata que lia para ela as histórias, se entregou e foi consumido pela letargia. Pra completar, Halla sofria o ostracismo, cercada de rejeição em toda a sua comunidade, estigmatizada e caluniada por pessoas que aparentemente seriam pacatas e cordiais aldeãs.

Sonhava com mundos além-mar, tinha um vento impetuoso e um fulgor em si porém. Mas neste desterro em suas próprias raízes, se envolveu com um rapaz problemático, muito mais velho, que na infância era o algoz dela e de sua irmã, para a qual prometera que nunca daria uma chance para ele. Acabou por desenvolver uma cumplicidade com ele, receber algo que lhe faltava do buraco que fora deixado por Sigridur, e descobriu o sexo sem amor até chegar ao amor sem paixão, mas um amor de entrega e refúgio.

Einar, o garoto, tinha certas desordens em organizar o raciocínio, era meio esquizoide, com grande senso de rejeição para o qual reagia como conscientemente inoportuno, era “sem graça” e de “boca podre”. Ela engravida, mas quer segredo dele, não quer que saibam que ele era o pai, ele quer. Espalha-se o forte boato de que o pai a violentara, e o pior poderia ter ocorrido se outra coisa ruim não acontecesse: descobrem o caso entre os dois. A espiral de maldade, incompreensão e intolerância aumenta, ainda mais, para com Halla, até que num ataque ensandecido a mãe lhe faz perder o bebê.
“Não é sobre o corte entre as pernas que me interessa pensar, pai. O corte entre as pernas não foi sequer capaz de me afastar a pele, porque a pele imediatamente se soube juntar e reconstruir. O que me magoa é mais violento do que isso. Porque à minha mãe posso odiar sinceramente, perdendo-lhe a ternura, como se exercesse um sentimento honesto, sem problemas maiores. O que me magoa está por definir e tem-me aqui presa quanto me obriga a fugir. De igual modo me propõe a morte e a vida ao mesmo tempo”.

Vai depois morar junto com o padrasto de Einar, o pastor da comunidade, que depois se casa com a tia de Halla que chegara da cidade, mulher dominadora.

Einar também tinha seus mistérios, lembranças reprimidas, que no convívio com Halla foram reemergindo e revelando para ambos maiores laços e histórias de maldade, desumanidade, perversão, autointeresse implacável e jogos de cinismo na vida das pessoas sob máscaras de virtude, autogratificação e vida pacata. Onipresente em toda trama e pano de fundo está uma cratera sem fundo na montanha, onde o vento sempre assoprava mostrando a sua fome de tragar almas, chamada “boca de deus”.

Com o aprofundamento do stress, insanidade e apatia em sua família, com a amargura de Halla que só tinha a ela a se apegar, Halla se sente desapegada de tudo, até do que amava, ela se desumanizara; não porque não podia mais amar algo ou nutrir bons sentimentos, mas ela se desumanizara. Perdera a ideia de alma eternamente ligada com a da sua irmã, já não sentiam que elas poderiam ainda ser gêmeas; não mais lhe guiava entre o certo e o errado. Topa uma fuga da ilha para tocar a vida no desconhecido com Einar, e na véspera da fuga combinada, tranca a casa com ele, o pai adotivo e a nova madrasta, assassinos do pai do garoto, usa os poemas do pai para tocar fogo com os três e seguiu seu caminho.


Os sentimentos que irrompem e nos acercam ao nos depararmos com os comentários de notícias na internet também pareiam com estes processos de “desumanização”. Há uma pulsão de realmente considerarmos que o empreendimento humano é um caso perdido, que a esperança deságua nas torrentes do niilismo, que por esta raça não vale a pena lutar, que estes picos de gelo no mar são icebergs inexoráveis que afundarão quaisquer engenharias humanitárias a quererem atravessar as águas caóticas, antes que se chegue à terra firme e fértil. Ou antes que se chegue ao lar.

Numa matéria simples no site da UOL, com a chamada "Perto dofim da escravidão, 60% dos negros trazidos ao país eramcrianças", 90% dos comentários em redes sociais são de fazer vomitar sangue.

Coisas como "e daí, deviam ter permanecido na África então e tudo seria melhor", "mereceram, uns venderam aos outros", "nós brancos apenas compramos a mercadoria", "eles têm que agradecer por serem trazidos e ganhado comida, para não passarem fome na África", "isso é pesquisa plantada pelo PT pra insuflar a luta de classes comunista".

Todos comentaristas "Cidadãos de Bem da família pagadores de impostos".

Parece que há uma soma de forças conectadas para nos desiludir totalmente, como a dizer “este é o verdadeiro rosto das criaturas que comerão as mãos que se lhe estendem. Somos horripilantes. Somos o seu vizinho do cumprimento simpático do elevador, as senhorinhas gentis do Pilates, somos 'os caras legais', as meninas bonitas, somos a potência daquele menininho do riso enternecedor e da menina brincando de repórter”. E sim, os soldados de Gengis Khan, a turba disciplinada no nazismo, os cientistas austeros em limpos jalecos brancos usando de cobaias humanas, os líderes religiosos instigando matanças, todos tinham e têm no dia à dia, este “rosto humano”.

Todo este desvencilhar do pudor, da alteridade, da autocrítica, todos estes demônios das Caixas de Pandora abertas nas redes sociais, todas essas “abissalidades” que se julgava superadas no empreendimento civilizatório mostrando que não só estão muito vivas, presentes, como querem agora recuperar qualquer centímetro perdido e se esbaldar sem nenhum constrangimento.

É para jogarmos a toalha e queimarmos os poemas. E simplesmente resolvermos tocar o barco até que afunde. Mas há quem esteja à espreita nisso tudo, a invocar Plutão para ditar as coordenadas de navegação no mar.


Onde vejo a resposta de Camus para o dilema que formulou no livro “O Mito de Sísifo” incompleta, e Dostoiévski ilumina essa incompletude. Dostoiévski conseguiu penetrar nas mais diabólicas cavernas do coração humano, mergulhou na abissal “boca de deus” dos pesadelos da ilha islandesa de Hugo Mãe, e sentiu o hálito do sopro insaciável.

Conseguiu retratar a sordidez presente como um rizoma na mente e comportamento humano, na sociedade e nos indivíduos, sem falso pudor. Mas ele precisava de uma inocência, de uma virtude, ainda que restasse a ela enlouquecer para não se perder a integridade no mundo insano, como com o Príncipe Míchkin em “O Idiota”, ou com a chama bruxuleante do idealismo de Stiepan Trofímovitc se descobrindo cercada de niilismos fanáticos em “Os Demônios” e tentando distinguir o que busca e o que não busca, ou como o pobre Aliócha com seu “Discurso Junto À Pedra”, em que até então, ele absorto nas sequenciais eloquências niilistas que expunham o absurdo visceral do mundo para, como Satanás reclamou a Simão, lhe “peneirar como trigo”, invoca a ressurreição para manter viva a chama do amor nos meninos invocando uma memória querida, e seguindo seu caminho, em um desfecho diferente do de Halla. Dostoiévski ainda foi mais além com o sofrimento redentor de Raskolnikov amparado pela candura de Sônia que vencera as trevas.

A questão para Dostoiévksti é que ele explorara igualmente como Camus o sofrimento absurdo, e a tormenta interior e sentimento de exílio na sociedade que Camus explorara, em personagens ácidos dos subterrâneos, como o irredimível de “A Queda” do "juiz-penitente" Jean-Baptiste; em “Notas do Subsolo”, Dostoiévski solapa mais do que Camus com toda a auto-complacência, pois seu personagem sem nome aí também se encontra não só em fluxo de consciência mas em ação, na rememória de uma trama degenerada e torpe.

A clivagem que eu vejo entre as respostas de Dostoiévski e Camus se dá quando este diz que imagina um Sísifo feliz. Este que, condenado a empurrar a pedra que no limiar de chegar ao cume da montanha sempre rola novamente abaixo, encarna o herói trágico e dionisíaco de Nietzsche, transformando o “assim foi” no “eu quis assim”, encontrando no destino sua marca impressa. Eu não imagino um Sísifo feliz a não ser que ele fosse como as figuras de “Admirável Mundo Novo”, condicionado para finalmente desaguarem o destino no empurrar a pedra, ou entregando a consciência para a fatalidade. Vejo Dostoiévksi, em uma das suas experiências mais importantes para desenvolver seu trabalho de vivissecção moral literária, na prisão, pautando que se colocarem um preso para a tarefa mais pesada que fosse, mas ele visse que estava construindo uma ponte, uma obra significativa, ele teria uma determinação em si; mas colocando-o para algo como peneirar água, encher uma pá de areia e jogá-la para o alto, ele se alienaria em demência, frustração e explodiria.



Por isso precisamos de algum significado para dar sentido ao que fazemos. Se não pensarmos um pouco que nossos trabalhos ou alguma ação ajuda a algumas fagulhas de luz, não semeia alguma beleza ou bondade ou indignação criadora, não instiga alguma força de vida e algo melhor no mundo, fica difícil resistir ao fatalismo; ainda que por vezes precisamos nos fiar numa via negativa, algo como pensar que se o mundo se queimar ou apodrecer, não foi por pensarmos que não tínhamos poder de fazer nada que contribuímos para isso, tal como muitos que o pensaram contribuíram. Mas é claro que por detrás das frustrações devemos nos perguntar se não havia também cinismo, autocompensação emocional e descargo de consciência, com uma vontade de dominação.



Cena final de "Melancolia", de Lars Von Trier
Como nos filmes de Lars Von Trier (que explorou a fundo o niilismo em "Melancolia", que desfecha com uma explosão fútil que termina com a vida na Terra, única no Universo), como no “Europa”, “Medea”, “Dançando no Escuro”, “Dogville” e “Manderlay”… os desprendimentos humanitaristas dos personagens, de Leopold Kessler na Alemanha até a Grace nos povoados, são tragados pelo que a raposa eviscerada vaticina em O Anticristo, “o caos reina”; sugados numa espiral que os leva ao limite, desarma, e “o que não tem governo nem nunca terá” desnuda neles todos os sentimentos de ódio e sadismo que condenavam antes, porque há arranjos e configurações de aparência bizarra e
ineficiente que são formas eficazes encontradas para lidar com forças desconhecidas presentes mesmo na trajetória que formou os sentimentos dos humanitários. “Pois é, sra. Grace, é fácil insultar os negros [quando ela diz que eles escolheram e mereceram a escravidão, frustrada por não se acomodarem aos seus planos civilizatórios], mas não está esquecendo algo? Vocês nos criaram”.Em muitos filmes dele, humanitarismo, as piedades religiosas, racionalidades modernas como a
psicanálise, tentaram adestrar as forças caóticas, para submeter os outros à servidão, e terminaram por serem reviradas do avesso e vítimas de si próprios.



Não temos como “domesticar” e as pessoas. E nem temos que nos impor este fardo frustrante de convencê-las. Muitos referenciais nossos podem nos desiludir. Mas também muitos gigantes monstruosos têm pés de barro, e muitas pessoas também apenas estão com medo ou frustradas. Com esta resposta inconclusa de quem não quer ser o humanitarista redentor que vai curar a excruciante ninfomania de Cloe, apenas quero desafogar o peito rezando para que não nos desumanizemos.

Bansky, "O lançador de flores"

_ Digo isso por receio de que nos tornemos maus – prosseguiu Aliócha -, mas por que teríamos de nos tornar maus, não é verdade? Sejamos primeiros e antes de tudo bons, depois honestos e já depois – não nos esqueçamos nunca uns dos outros.
(...)
_Bem, agora encerremos os discursos e vamos às exéquias dele. Não vos perturbeis porque comeremos panquecas. Porque é uma tradição antiga, eterna, e nisso há algo de bom – riu Aliócha. _Então, a caminho! E agora lá vamos nós de mãos dadas!
_ E sempre assim, de mãos dadas para o resto da vida! Hurra, Karamázov! - gritou Kólia mais uma vez entusiasmado, e mais uma vez todos os meninos secundaram sua exclamação.















13 de janeiro de 2015

Sorrisos do Canto Primordial - Notas de uma escaldante tarde qualquer no centro urbano


No cotidiano por entre o concreto e o asfalto, entre as buliçosas gentes distinguimos em meio a gastura da fuligem, sussurros soprados aos ouvidos.

Perambulando compenetrado em sensações vagas de nossa finitude quando temos de atravessar ruas do centro da cidade grande, como a Rua 04 de Goiânia altura com a 06 (ou 07), topei às 13:30h de uma terça-feira com uma cena excepcional: um caminhão da limpeza urbana municipal, atravessado à rua em suas ocupações com o que vai sobrando do nosso dever de existirmos e sermos percebidos, tendo em pé sobre seu para-choque traseiro quatro garis, mulheres com risadas tão abertas, francas e descontraídas que me chamaram a atenção. Notei os batons, brincos, penteados, cuidados de si e afirmações devida lavando estereotipagens que se poderiam impor sobre elas, que as roupas alaranjadas passaram a brilhar como enfeites de Natal.

Mas a energia dessa história toda jorrou de suas risadas, tão abertas que pareciam os arco-íris conduzidos por bolas de sabão brilhando com os feixes do sol.

O contágio foi imediato, o sorriso brotou em mim como nascente no campo, desconhecendo o motivo da alegria delas que talvez poderia ser os equilíbrios inexplicáveis da natureza imediata após o Big Bang, talvez um fenômeno que só o coração delas captavam a contra gosto do ruído dos carros e da agonia dos transeuntes. Ou algo mais natural e igualmente radiante, na macia e acariciante radiação daqueles risos que nem mesmo aquele cinza urbano eclipsa.

Em meu contentamento acenei com a cabeça para elas com o sorriso contínuo espontâneo. Quando passei, ouvi pela diagonal da orelha direita a observação de uma: “Pode sorrir, gente, porque isto não se costuma ver nunca não”.

A seguir fui fulminado com por um raio, primeiramente por um momento de vácuo de estupor no pensamento; logo após viera o som do trovão,intrepidamente veio de súbito a recordação de um trecho mordaz de uma das mais eletrizantes crônicas do G. K. Chesterton, “Os passarinhos que não cantam”:

E no final e minhas reflexões não consegui de fato chegar mais longe do que o sentimento subconsciente de meu amigo do banco –que há algo espiritualmente sufocante sobre nossa vida; não apenas sobre nossas leis, mas sobre nossa vida. Os bancários não têm canções, não porque são pobres, mas porque são tristes. Marinheiros são muito mais pobres. Enquanto ia para casa passei por alguma pequena construção metálica de algum tipo de religião, que era sacudida com gritos como uma trombeta que se rompe com seu próprio som. Eles estavam cantando, de qualquer forma; e tive por um instante uma impressão que já tivera frequentemente antes: que entre nós o sobre-humano é o único lugar em que se encontra o humano. A natureza humana está sendo caçada e escondeu-se num santuário.

Este final me remete – assumo a responsabilidade disso - ao corcunda Quasímodo, resgatando a formosa cigana Esmeralda da turbe furiosa e dos soldados do reino, levando-a lépido para onde recebiam um “salvo-conduto”, aos brados na torre: “Santuário! Santuário!”.

Fotografia de Phillip Lorca diCorcia,
do trabalho "Reflections oh the
Streetwork"
Prosseguindo no dever de andar pra frente, preocupado e alegre,sapecado de calor mas tendo recebido certo frescor no peito, na Rua 15, talvez já sem sorrir eu experimentava uma felicidade vívida e mais comum que não é de filme da Sessão da Tarde ou das que as autoajudas preconizam, uma mulher à minha frente voltava a cabeça aturdida e preocupada. Segurou sua bolsa firme no corpo e retesou o pescoço à frente e o olho atrás. Julguei que pelo bem-estar geral de todos que seria mais saudável que eu atravessasse a rua.


8 de junho de 2014

Quem é Deus, e como amar a Deus?

            Um sermão pregado por Richard Bauckham, na igreja de Santo André, na Escócia.


Êxodo 34:1-10 e Mateus 22:34



Nossas duas leituras de Êxodo e Mateus contêm algumas das mais importantes coisas que a Bíblia tem a nos dizer sobre Deus. A primeira passagem é o culminar da revelação de Deus de si mesmo à Moisés e ao povo de Israel no Monte Sinai. Depois de Deus ter dado os dez mandamentos, depois do povo ter rejeitado a Deus e, ao invés disso, dado sua devoção ao bezerro de ouro, e depois de Deus tê-los perdoado, então substitui as tábuas de pedra que Moisés quebrara, as tábuas com os dez mandamentos escritos sobre elas, e então Deus vem à Moisés e garante que depois de tudo isso Moisés realmente sabe quem é Deus, quem esse Deus que escolheu Israel para seu povo realmente é. Se Israel está para conhecer este Deus que é agora seu Deus, se Israel está para ser dedicado a este Deus e nenhum outro, então não deve haver imprecisão ou confusão sobre a identidade de Deus.

Assim, Deus se identifica - de duas maneiras. Primeiro, não é o seu nome. Há um importante ponto que é sobre a tradução de nossas Bíblias que eu deveria explicar se vocês ainda não sabem disso. Se você olhar para esta passagem na maioria das traduções do Antigo Testamento, você vai achar que o nome de Deus é dado como “O Senhor” - com a palavra Senhor escrita em letras maiúsculas. Essa é a maneira convencional de representar o nome hebraico de Deus.

Não é realmente uma tradução, é uma espécie de substituto para o próprio nome. E as traduções da Bíblia usam-no porque esta é uma prática que já vinha sendo seguida pelo povo judeu na época de Jesus e do Novo Testamento. Trataram o nomear divino como sagrado demais para se pronunciar. Eles não queriam que o nome de Deus viesse a ser atirado ao vento como qualquer nome tal qual Tom, Dick ou Harry. Este é o nome que nomeia quem é Deus. E assim, quando leem as escrituras, eles não dizem o nome, eles substituíram pela palavra 'Senhor'. E as nossas traduções têm seguido essa prática, de modo que onde quer que você encontre Senhor em letras maiúsculas no AT, ela destaca o uso do nome hebraico de Deus. Onde não está em letras maiúsculas, isso não acontece.


Eu sigo essa prática judaica de não dizer o nome próprio divino, porque era seguida por Jesus e os primeiros cristãos, e eu não vejo por que devemos mudá-la. Também é ofensivo aos judeus usar livremente o nome divino na forma que alguns estudiosos bíblicos cristãos fazem. Então eu evito isso.

Mas é um nome, e isso é muito importante. O Deus de Israel tem um nome, um nome pessoal, um nome que se destaca pela sua identidade, a forma como os nossos nomes representam nossas identidades.

O que ‘Richard Bauckham’ significa sou eu, a mim e nenhuma outra pessoa. Se você usar o meu nome é porque você está querendo me distinguir de qualquer outra pessoa de quem você pode estar falando ou qualquer pessoa que possa ser confundida comigo. Ele identifica com exclusividade quem eu sou. Assim, com o Deus de Israel e o Deus de Jesus Cristo. Este Deus não é um princípio ou ideia, não uma divindade vaga que podemos retratar em qualquer forma geral que nós escolhermos, não é uma deidade que podemos adaptar às nossas necessidades ou desejos, como nós escolhermos. Este Deus tem uma identidade única, que Ele nos dá a conhecer, para que possamos conhecê-lo.

No N.T. este Deus adquire um novo nome, porque ele se revela a nós em Jesus Cristo. Eu disse, como pregadores muitas vezes fazem, antes de começar este sermão, "Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. O Nome trinitário de Deus. É a abreviação de "Deus Pai de Jesus Cristo, Deus Filho Jesus Cristo, e Deus o Espírito de Jesus Cristo”. Isso significa: Deus como nós o conhecemos em Jesus Cristo. Em certo sentido, é nova identidade de Deus, mas não é nova, no sentido de substituir o antigo. Deus não descartou sua nomeação hebraica. Deus ainda é o Senhor, nesse sentido especial.

Então para Moisés Deus proclama o seu nome e a outra coisa que Ele faz nesta passagem é revelar Seu caráter. Aqui temos a grande descrição do personagem de Deus no A.T.- para o qual o A.T. remete novamente e novamente, e ao qual o N.T. também se refere novamente em pelo menos uma ocasião muito importante que irei mencionar em um momento. Nós sabemos quem é Deus porque este é o tipo de Deus que é, esta é a maneira como se relaciona conosco e lida conosco . Ele diz:
O Senhor, o SENHOR, [insistindo em seu nome exclusivo] é um Deus misericordioso e clemente, lento para a cólera e cheio de amor e fidelidade, mantendo misericórdia até a milésima geração, que perdoa a iniquidade , a transgressão e o pecado, mas de modo algum compensando o culpado ...

O que essa descrição característica diz sobre o personagem Deus? Repare que é tudo sobre a forma como Deus se relaciona com o seu povo. Deus é, reconhecidamente, esse Deus, porque esta é a maneira como Ele lida conosco. Ele é um Deus que se preocupa com entusiasmo com o seu povo e se envolve com eles. Ele se importa apaixonadamente que eles sejam o melhor possível que eles sejam. E assim ele nos ama e ele é muito paciente conosco. Ele perdoa. Ele suporta as formas que nós mantemos erradamente - a maneira como Israel teve com o bezerro de ouro apenas alguns dias antes. Ele é paciente e tolerante, mas isso não significa que ele tolera o nosso pecado abundando – o poderoso pai indulgente, o tipo que, afinal, não se importa em como a criança se comporta e como se sai. Esse tipo de indulgência se dá em função de realmente não se importar. Deus cuida apaixonadamente que sejamos o tipo de pessoas que Ele nos fez para ser. E assim ele não ignora o pecado. Ele não se comporta como se não importasse. O culpado é culpado. Mas Deus está sempre pronto a perdoar. Ele não desiste de seu povo.

Eu disse que há uma importante referência a esta passagem no N.T., e chega próxima ao início do Evangelho de João, onde João está descrevendo o que acontece quando Deus se torna humano na pessoa de Jesus Cristo. (João 1:14): “a Palavra (de Deus) se fez carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória, a glória do Filho único do Pai, cheia de graça e de verdade ...” Essa última frase, "cheia de graça e de verdade", vem de Êxodos 34. é uma referência abreviada para a descrição do caráter de Deus em Êxodo. Êxodo diz 'cheio de amor e fidelidade"- João traduz que: "cheia de graça e de verdade". Então, o que isso significa é que o caráter do Deus de Israel é para ser visto na vida humana de Jesus Cristo. O mesmo Deus, o mesmo personagem, mas agora em um sentido Ele pode ser visto (como Moisés não podia ver) em pessoa, o caráter, a vida de Jesus.

Assim, Deus tem um nome pessoal e um caráter pessoal. Nós sabemos quem é Deus. Então, como nesse caso devemos responder a Deus? Vamos voltar à nossa leitura do Evangelho, na passagem em que Jesus seleciona a partir da lei os dois grandes mandamentos. Você vai estar muito familiarizado com isso, porque na verdade nós lemo-lo em todos os serviços de Comunhão. Um dos fariseus, um professor profissional da lei de Moisés, pergunta a Jesus qual é o maior mandamento entre todos os mandamentos que Deus deu a Israel por meio de Moisés. É o tipo de pergunta que os professores judeus na época de Jesus discutiam. A lei de Moisés contém centenas de mandamentos. Então, quais são os mais realmente importantes? Existe um que resume todos os outros? Existe um que resume para nós sobre o que toda a lei é realmente concernente?

O primeiro mandamento que Jesus seleciona é o mandamento "amarás o Senhor, teu Deus ("Senhor" não significa aquele nome hebraico pessoal de Deus, que é o Deus que devemos amar)... amar o Senhor teu Deus com todo o teu coração e com toda a tua alma e com toda tua mente." No tempo de Jesus, bons judeus observantes recitavam esse mandamento diariamente em suas orações cotidianas. Eles eram ainda mais familiarizado com ele do que nós. O segundo mandamento que Jesus seleciona diz como ele é- porque é também um comando para o amor-, “Amarás o teu próximo como a ti mesmo'. Tudo o mais no A.T., diz Jesus, paira sobre esses dois mandamentos. No final do dia, eles são ao que tudo diz respeito.

Estou refletindo esta manhã principalmente no primeiro, o mandamento de amar a Deus com tudo o que somos e temos. Mas note como isso é diferente do mandamento de amar os nossos próximos. Devemos amar os nossos próximos como a nós mesmos, ou, como Jesus diz em outro lugar, fazer a eles como gostaríamos que fizessem a nós. Mas é só Deus que é para ser amado com todo o nosso ser. Eu me pergunto quantas pessoas seculares comuns hoje em dia poderiam imaginar a religião como algo assim. Não como algo que as pessoas religiosas prestem alguma atenção a ao lado de outras preocupações de nossa vida, mas como devotar tudo o que somos e temos e fazê-lo para Deus. Mas se Deus é Deus, essa deve ser a única forma apropriada de se relacionar com Deus.

Amar a Deus com todo o nosso ser significa, por um lado, que algumas coisas são excluídas da nossa vida - qualquer coisa inconsistente ou competindo com o amor de Deus. Mas, por outro lado, isto significa que todos as boas e apropriadas preocupações da vida humana estão incluídas no âmbito do amor de Deus. Não apenas, por exemplo, pregar este sermão é o tipo de coisa que eu deveria fazer para o amor de Deus, mas também a obtenção de um bom sono na noite passada, comer meu café da manhã, aproveitar a caminhada para a igreja - o amor de Deus inclui todas estas coisas, quando estamos verdadeiramente dedicando tudo que somos e temos e fazemos, para Deus. Em outra ocasião, perdendo o sono ou o café da manhã pode ser o que o amor de Deus requer de mim. Viver para Deus significa dever estar atento a essas possibilidades. Mas é só porque amar a Deus é uma noção grande o suficiente para incluir todas as preocupações adequadas e as atividades de nossa vida humana que podemos amar a Deus com todo o nosso coração, mente e alma e força. Em certo sentido, devemos fazer todas essas coisas para o amor de Deus. Isso não tira qualquer valor dessas coisas em si. Muito pelo contrário: tudo se torna inteiramente o que deveria ser quando é dedicado a Deus.

Porque Deus é Deus, o Deus de todas as coisas e todas as pessoas, o Deus que se importa com todas as coisas e todas as pessoas, dar-nos inteiramente a Deus é o caminho a ser verdadeiramente humano. Mas dar-nos inteiramente a outra coisa senão Deus rebaixa e distorce a vida humana, porque nada menos do que Deus pode nos satisfazer como as criaturas que Deus nos fizera. Devotar-nos a algo menos do que Deus é idolatria. Todos os tipos de coisas boas que são partes boas da vida humana quando tomam o seu lugar dentro do amor de Deus, ordenada pelo amor de Deus, tornar-se destrutivas se tentarmos viver para elas. O futebol é uma boa coisa em seu lugar, mas para torná-lo a principal preocupação em sua vida, subordinando tudo a ele, seria empobrecer a sua vida e distorcê-la. Mesmo maravilhosamente boas causas - digamos que você dedica a sua vida à pesquisa de uma cura para o câncer: se realmente domina a sua vida completamente então nada que não contribui para isso é qualquer preocupação para você- o que tornaria até mesmo uma boa causa em um ídolo e em algo que estraga a vida humana. Deus é a única coisa grande o suficiente para merecer a nossa devoção total.

É por isso que não podemos simplesmente desabar o primeiro mandamento no segundo. Não podemos apenas dizer que amamos a Deus, amando o nosso próximo. Amamos a Deus amando ao próximo, mas isso não é tudo. Mesmo amar o nosso próximo não é grande o suficiente para abranger tudo em nossas vidas. Ele pode e deve abranger uma grande soma. Mas não tudo. Por exemplo, quando eu gosto de algo verdadeiramente belo eu tenho um tipo de experiência que é muito importante na vida humana. Não é uma forma de amar o meu próximo, mas pode tornar-se parte da meu amor a Deus com todo o meu ser .

Assim, o amor de Deus é o único amor que realmente pode e deve incluir todas as outras preocupações da vida. Incluí-las em nosso amor por Deus, tanto as acentua como também as mantém em seu lugar, impedindo-as de dominar e tornar-se ídolos. E, finalmente amar a Deus com todo o nosso eu, dá uma unidade às nossas vidas que nada mais pode dar.

Sem Deus nossas vidas são coleções de fragmentos. Estamos ventilados desta forma e por todos os tipos de diferentes preocupações e interesses que exigem de nós. Existe algo que pode soldar todas estas coisas juntas em uma vida, um projeto, um todo pleno de significado? Somente o amor de Deus.

Eu dissera que o amor de Deus pode incluir tudo o resto de nossas vidas. Então não é que, quando eu estou fazendo minhas compras eu não estou amando a Deus. Mas, se a nossa vida é para ser vivida par amor de Deus, então deve haver momentos que deixamos de lado para nos voltarmos apenas para Deus. Somente pela adoração e oração que aprendemos a amar a Deus acima de todas as outras coisas e que podemos também aprender a amar todas essas outras coisas corretamente, para o amor de Deus.
 

19 de março de 2014

A luta contra o reflexo

No clássico “A História Sem Fim” aparece um tema muito comum em sagas congêneres. Atreyu tem que enfrentar como desafio último o espelho. Teria de topar com um espelho que revelava a pessoa tal como é, sem as formas e truques com que se engana - inclusive a si próprio. Há muitas estórias com este desafio de se enfrentar o reflexo de si próprio.

Na esteira da Segunda Etapa da última Guerra Mundial, o que se diz ser “Civilização Judaico-Cristã Ocidental” ou o “Ocidente Moderno”, era amplamente e corriqueiramente antissemita (nos EUA, muitas escolas não aceitavam judeus, e com muito custo foi-se estabelecendo um percentual máximo permitido, como 6%, etc.); a eugenia grassava alegremente e era pauta mesmo das sociedades científicas “esclarecidas” a ideia de selecionar os humanos “superiores” e exterminar as “aberrações”. Tudo embebido no rito social, tudo sociabilizado.

O Nazismo com sua fúria impetuosa pegou estes elementos, perdeu a inibição e espicaçou o cinismo; e ao limite levando, mas sem incoerência, ele tudo isto foi pavorosamente lançado na na cara do mundo; a partir daí o mundo percebeu, meio encabulado, o horror e vergonha que era. Começou a se aceitar que era vergonhoso (ainda que os ciganos nunca foram recompensados e que a eugenia continuou por parte de empresas e governos, mas mascarada ou camuflada longe da atenção pública). Ficou mais difícil – até quando? – legitimar novamente dentro do rito da vida social.

Por detrás das reações das pessoas à tal da “cultura da ostentação”, com fenômenos por vezes bizarros, há um cinismo em parentesco, uma razão cínica. Porque o que ela vem fazendo é jogar na cara igualmente nossa que é o que move nossa sociedade hoje, mas é claro, ritualizado com desfaçatez na liturgia do sociabilizado. A racionalidade por detrás da “cultura da ostentação” está presente nos encontros informais de amigos de escola, colegas de profissão, está presente quando se sai ao trânsito, em diversos meios de confraria social; está subjacente às buscas, aspirações e sonhos. É a marca do senso de valor pessoal de fato, é o norte da escala de valores, está em manifestações religiosas e também de apelo laico ( ou laico na aparência ).

Talvez haja um medo secreto de que acabe se configurando tal racionalidade como algo vergonhoso também. Por isto o escândalo cínico. Se tem percebido que para grande parte das pessoas, se pudessem escolher, prefeririam que o mundo acabasse, que tudo se colapsasse, do que ter de abrir mão disso.
arte de Gerhard Richter


Quantas outras coisas mais têm vindo à tona neste sentido, esperando um outro “Reich” pra fazer o mesmo que aquele? 

10 de outubro de 2013

Uma prece pela respiração

Pai, de fecunda Eternidade,

me ajude, em mim e sobre mim, ao meu lado, a ser mais centrado em Ti para estar mais centrado quando passo pelas espirais da vida; mais aberto a Ti quando sufocado, e para que mesmo de quando meus turbilhões internos, possa escutar melhor ao próximo.

Ajude-me a me organizar melhor para que lhe deixe presente no comum e cotidiano, a ser mais atencioso com o que vivo no presente, não perdendo a dimensão da eternidade em minha consciência. Me ajude, me ajude a amar mais e melhor ao meu próximo como queres, e cuidar mais responsavelmente de mim. Que seja mais sensível e respeitoso com Teu Espírito Santo, em mim, no mundo, na criação. Que leve mais a sério a realidade de que Jesus Cristo é o amado do vórtice do meu ser, o referencial e com quem meu fôlego aspira ser unido, o sentido que pode dar significado à minha vida. E que significa muito que o Senhor se importa conosco e não desiste de nós, a despeito de nós mesmos. Me ensine a valorizar melhor as pessoas importantes de minha vida, não só esperando raros momentos de arrebatamento, mas no esforço do normal. Me ensine a ser mais grato e vivo.

Amém, amada Fonte.

Louvo-te e a Ti dou graças por Tua imensa Glória.