27 de fevereiro de 2011

O desenvolvimento antigo da compreensão da Trindade

Nos meados do século II, o teólogo Santo Irineu de Lyon, sacerdote e escritor, cujo pensamento era totalmente focado na preocupação em ser fiel ao ensino e continuidade do ministério dos apóstolos, já expressava, na obra "Demonstração da pregação apostólica":

Deus Pai, que não foi criado, que é indivisível, o único Deus, criador do universo; esse é o primeiro artigo de nossa fé... E o Verbo de Deus, o Filho de Deus, é Nosso Senhor Jesus Cristo...que, na plenitude do tempo, para reunir todas as coisas em si mesmo, tornou-se um ser humano entre os seres humanos, capaz de ser visto e tocado, de destruir a morte, de trazer vida e de restaurar a comunhão entre Deus e a humanidade. E o Espírito Santo...que na plenitude do tempo, foi derramado de forma inédita sobre a natureza humana para renovar a humanidade, em todo o mundo, aos olhos de Deus.

O próprio termo “Trindade”, do latim Trinitas, foi cunhado, juntamente com todo um edifício correspondente de terminologia, por Tertuliano de Cartago no século II., para a sistematização do pensamento, especialmente no escrito "Contra Praxeas", quanto às três pessoas de Deus fundamentadas em uma existência em comum numa substância única.

Orígenes escreveu em "Primeiros Princípios, Livro 1, Prefácio 2-8:"

As espécies de doutrina que foram claramente transmitidas no ensinamento dos apóstolos são as seguintes: Primeiro, que há um Deus...Segundo que o próprio Jesus Cristo [...]nasceu do Pai antes de todas as criaturas...Terceiro, que o Espírito Santo era associado em honra e dignidade com o Pai e o Filho...

Atenágoras de Atenas dizia que o Espírito era tal como "uma efluência [aporroiam] de Deus, fluindo dEle e voltando para Ele como um raio de sol".

"Súplica em favor dos cristãos", 10.1

Chega a comentar também que "os homens reconhecem a Deus Pai, Deus Filho e o Espírito Santo e declaram tanto o Seu poder em união quanto a Sua distinção na ordem" (tën en të taxei diairesin).

SFC 10.3

Teófilo de Antioquia identificava o Espírito com a Sabedoria, tal como no Salmo 33, Sabedoria de Salomão, Provérbios 8, etc. Em "A Autólico", 1.7;2.15;18

Sobre o Lógos, coloca que
Ele não é seu Filho na acepção em que os poetas e romancistas descrevem o nascimento dos filhos dos deuses, mas sim, no sentido de que a verdade fala do Verbo considerando-o eternamente imanente [ endiatheton ] no seio do Pai
"A.A." 2.10

Justino argui
nós adoramos e amamos, além de Deus, o Logos derivado do Deus não criado e inefável, vendo que por amor de nós Ele se tornou homem.
2ª Apologia, 13,4

No princípio, antes de todas as criaturas, Deus gerou um poder racional a partir de Si mesmo" (...) esse Poder é indivisível e inseparável do Pai.

Diálogo com Trifo, 61.1-2

Irineu de forma diferente considera que
O Pai é Deus, o Filho é Deus, pois tudo o que é gerado de Deus é Deus
- "Demonstração da pregação católica" 47

Hipólito de Roma mais tarde também ecoa
Embora só um, Ele era múltiplo [ monos ön polys ën], pois não estava sem Sua Palavra e sem Sua Sabedoria, Seu Poder e Seu Conselho.
"Contra Noetum" 10

Tertuliano

"Eu e o Pai somos um indica que os Três são 'uma só realidade' unum] não 'uma só Pessoa' unus] (...); o Filho é unius substantiae com o Pai, e o Filho e o Espírito são consortes substantae patris."

"Contra Praxeas", 2-3

De Inácio temos citações mais quanto à divindade de Jesus, em termos que precediam os da Fórmula Calcedoniana.

Afirma que "Cristo" é
Deus encarnado [ en sarki genomenos theos], "Deus manifestado como homem" [theou anthrõpiños phaneroumenou]. Afirma que foi "incriado" [agenñetos].
Epístola aos Efésios, 7.2; 19.3;

Empregava expressões como "o sangue de Deus", "o sofrimento de meu Deus" e "Deus {...]foi concebido de Maria".

Epístola aos Romanos, 1.1;18.2

Existe um só médico, constituído de carne e espírito, gerado e não-gerado, Deus no homem, vida autêntica na morte, procedente de Maria e procedente de Deus, primeiro passível e depois impassível, Jesus Cristo Nosso Senhor.
Romanos 6.3

21 de fevereiro de 2011

Fé: iluminação para os momentos de pura sombra

Romanos 8:15 –
Com efeito, não recebestes um espírito de escravos, para recair no temor, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, pelo qual clamamos Abba! Pai!

Marcos 14.36:
E dizia: ‘Abba! Tudo é possível para ti: afasta de mim este cálice; porém, não o que eu quero, mas o que tu queres’.

Neste grito dilacerante, neste momento de tormenta e pavor, Jesus não se achega a Deus com amargura, antes relança um grito que ecoará e será um marco na devoção da igreja cristã nascente, como se atesta na passagem de Romanos e em Gálatas 4.6 ("E, porque sois filhos, Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: 'Aba, Pai'").

O cálice evocava a imagem do julgamento de Deus, representado como Rei. Em Marcos 10.39 Jesus aplica-o para tratar do martírio cristão. Ele sabe então ali que o aguarda o martírio, e mais do que somente a crucificação, mas o recair do julgamento pelos pecados da humanidade. Ele expõe o sincero desejo do coração para não passar por isso; porém, sua disposição de espírito é a de cumprir o que sabe ser o querer de Deus.

Na passagem citada em Romanos, o sentido de urgência na expressão de Paulo no emprego da palavra "clamar" bem se adéqua à descrição de Jesus no jardim como estando "angustiado" e "agitado".

Advém como ápice para a linha da argumentação que faz com a igreja de Roma. Ele joga neste trecho com a idéia da libertação de Israel no Êxodo e as constantes recaídas destes devido à inconstância para com Deus. Destaca que é a ação de Deus a partir da Sua boa-vontade em redimir um povo para se relacionar especialmente com ele é que desencadeou seu ato de libertação da escravidão, sempre algo para adiante, não um retrocesso:

Êxodo 13.21: Tu, com a tua beneficência, guiaste a este povo, que salvaste; com a tua força o levaste à habitação da tua santidade.
Êxodo 15.13: Tu, com a tua beneficência, guiaste a este povo, que salvaste; com a tua força o levaste à habitação da tua santidade.
Reinvocado em Neemias 9.12: E guiaste-os de dia por uma coluna de nuvem, e de noite por uma coluna de fogo, para lhes iluminar o caminho por onde haviam de ir.
Salmo 78.14: De dia os guiou por uma nuvem, e toda a noite por uma luz de fogo.

A força da imagem da “luz” de Deus guiando adiante sem dúvida brilhara na retórica de Paulo na contraposição a “recair no temor”.

Também aí Paulo, como pensador brilhante, combina com temas da cultura romana, em que quando ocorria uma adoção legal, o filho adotivo passava a ser considerado herdeiro, e todas as pendências antigas com o novo pai eram canceladas.

14 de fevereiro de 2011

Oração de São Basílio de Cesaréia

Ó Deus e Senhor dos Poderes, e Criador de toda a criação, Aquele que, por causa da Sua clemência e misericórdia incomparável, enviaste Teu Filho Unigênito e nosso Senhor Jesus Cristo para a salvação da humanidade, e com a Sua venerável cruz Tu dilaceraste o registro de nossos pecados, e assim Tu sobrepujaste os governantes e os poderes das trevas, receba de nós, um povo pecador, ó Senhor Misericordioso, estas orações de gratidão e de súplica, e livrai-nos de toda transgressão destrutiva e sombria, e de todos os inimigos visíveis e os invisíveis que querem nos ferir. Pregue abaixo a nossa carne com o temor de Ti, e não deixe nossos corações inclinar-se a palavras ou pensamentos do mal, mas trespasse nossa alma com o Vosso amor, que já contemplando a Ti, sendo iluminada por Ti e Te discernindo, a luz inacessível e eterna, podemos render incessantemente confissão e gratidão a Ti: O Pai eterno, com Teu Filho Unigênito, e com o Teu Santíssimo, Clemente, e Vivificante Espírito, agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Amém.

4 de fevereiro de 2011

Um vislumbre do chamado de Natanael

É fascinante como a riqueza de significados das narrativas bíblicas se apresenta de forma mais ampla quando temos a oportunidade de mergulhar no pano de fundo das imagens na própria Bíblia e do contexto contemporâneo ao escrito.

Já falamos a respeito algumas vezes no “Cristianismo, meramente”. Podemos visitar uma outra passagem cujos significados são pouco explorados e muitas vezes é atrofiada apenas pela idéia de alguns cristãos de querer ressaltar “o sobrenatural” em detrimento das idéias humanamente construídas, forçando a dicotomia.

Em João 1. 46-51, o chamado do discípulo Natanael, que possivelmente é o Bartolomeu nas listas dos Doze nos evangelhos sinópticos. Natanael se admira com a possibilidade de que alguém sumamente importante para o destino da nação, juntamente com os eventos que se relacionariam, adviesse de um pequeno povoado de menos de 2000 habitantes sem nenhuma importância histórica, Nazaré. Mas o contexto ressalta que ele nutria uma grande expectativa pela vinda da redenção de Israel. Na Galiléia, explodiam as tradições das expectativas populares por novos profetas que anunciariam a libertação do povo do jugo dos tiranos ímpios e opressores, sendo muito exaltada a figura de Elias, enquanto na Judéia era mais Davi.

Jesus, galileu, ressalta a fé e integridade de outro galileu, como “verdadeiro israelita”. Ele faz um jogo de palavras com o patriarca de Israel – Jacó, que significa “enganador”, e aparece em Gênesis como alguém dissimulado – confira Gn. 27.35 e 31.26.

Então Natanael indaga como Jesus poderia o conhecer. E Jesus, já lidando com as expectativas messiânicas de Natanael que o cenário da narrativa mostra, vai ao fundo as esperanças e anseios do mesmo. Normalmente ao se comentar sobre a fala de Jesus, costuma-se priorizar uma interpretação de “advinhação”. Mas a figueira é um símbolo marcante para a piedade daquelas pessoas. Sob a sombra da figueira mestres ensinavam a seus discípulos, e também era um local considerado especial para a meditação e oração.

Também a tradição bíblica utiliza-se da figueira para formar a imagem dos tempos da redenção, de liberdade e descanso, em que cada israelita se sentaria em paz sob uma figueira.

Judá e Israel habitavam confiados, cada um debaixo da sua videira e debaixo da sua figueira, desde Dã até Berseba, todos os dias de Salomão.                                                                     I Reis 4.25

Cada qual se sentará debaixo de sua vinha e debaixo de sua figueira, e ninguém o inquietará, porque a boca do Senhor dos Exércitos falou!                                                              Miquéias 4.4

Podia ficar cada um sentado debaixo de sua figueira, e não havia quem medo lhes causasse.       I Macabeus 14.12

Naquele dia, diz o Senhor dos Exércitos, cada um de vós convidará ao seu próximo para debaixo da vide e para debaixo da figueira.                                                                            Zc. 3.10

Jesus prossegue evocando em Natanael a recordação da tradição sobre a escada de Jacó. Os anjos subindo e descendo apresentaram a Jacó a providência de Deus atuando na Terra, e foi a ocasião da promessa de Deus de estar com ele e cumprir através dele as promessas aos seus ancestrais. O abrir dos céus retoma também a abertura do livro de Ezequiel, sinalizando o momento especial da revelação divina. E falando do Filho do Homem, neste contexto, Jesus expressa a fortíssima imagem de Daniel 7, com a figura celestial representante de Deus para julgar o mundo e estabelecer Seu reinado.

Parte daí deste cenário um momento sem dúvida chocante para o discípulo Natanael, que o leva a mudar sua vida para sempre.