31 de março de 2010

Lava-pés

(...)sabendo que o Pai lhe entregou todas as coisas entre as mãos, que ele saiu de Deus e volta para Deus, Jesus se levanta da mesa, depõe o seu manto e toma um pano com o qual se cinge. Depois, derrama água em uma bacia e começa a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com o pano com que havia se cingido.
                                 Evangelho Segundo São João , 13,3-5.

Lava Pés - (Jaci Correa Maraschin)

Jesus, tu reuniste os teus amigos
e lhes lavaste os pés humildemente,
e enviaste-os, logo após, entre os perigos
de um mundo desumano e incoerente.

Também pediste que este teu exemplo
se repetisse em nós e que, ao invés
de nos fecharmos em teu santo templo,
saíssemos lavando ainda outros pés.

Na poeira das estradas desta vida,
vem nossos pés lavar, tão doloridos;
vem dar-nos mãos que acalmem a ferida,
dos que ainda longe estão de ti, perdidos.
Senhor, que os nossos pés assim lavados
nas águas transparentes de tuas fontes,
indiquem sempre a cura dos pecados
e resplandeçam belos sobre os montes.

Bênção de Mesa - (Jaci Correa Maraschin)

Senhor, te damos graças porque em volta desta Mesa,
Renova-nos a força de lutar contra a pobreza,
Transforma nossa gula, a nossa sede de abastança,
Num novo sentimento de justiça e de esperança.

Senhor, que os nossos pratos numa terra dividida,
Um dia se dividam numa terra reunida,
Perdoa-nos agora, nesta injusta refeição,
Até que a terra inteira se alimente do teu pão.

28 de março de 2010

Meditação para Domingo de Ramos

A pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a ser a principal pedra, angular; isto procede do Senhor e é maravilhoso aos nossos olhos.” citado em Mateus 21:42.

Na imagem de apresentação de nosso blog, temos se destacando no horizonte uma cruz celta.

A cruz celta possui em sua raiz na associação com a divindade Lug; o anel representa a "Totalidade", também os ciclos de sustentação da natureza, e também ao sol; a cruz remete aos quatro elementos ( água, fogo, ar, terra) e os quatro sentidos (leste, oeste, norte sul). Com o cristianismo, passou a simbolizar a abrangência de toda a criação tomando parte na vitória de Cristo na Cruz.

Temos um exemplo emblemático de uma das várias e multifacetadas inculturações promovidas de forma rica ao longo da história da evangelização e desenvolvimento da tradição cristã.

Esses processos costumam ser duramente criticados e atacados tanto por alguns cristãos quanto por céticos. Os primeiros dizem que é uma contaminação, deturpação da fé e uma capitulação. Os segundos que isso indica que a religião é falsa e se apropria de outras para mascarar sua falsidade e construir suas narrativas.

São duas críticas que demonstram uma enorme estreiteza de visão e falta de conhecimento de princípios básicos da antropologia. Tomemos o exemplo concreto, o caso da cruz celta, para apontar o quanto o processo de inculturação é legítimo, pois não deturpa a fé e nem se dá sobre bases arbitrárias, mas se enraíza em crenças já estabelecidas antes na comunidade de fé cristã. O simbolismo desta cruz é ambientado e enraizado em doutrinas fundantes do cristianismo?

O Templo ocupava um lugar primordial na fé do judaísmo contemporâneo dos tempos de Jesus. Lá se eram comemoradas festas que remontavam às crenças fundamentais do judaísmo e da identidade do povo judeu. Inclusive a Judéia poderia ser considerada uma cidade-estado do Templo. Lá havia a aristocracia religiosa, de onde procediam regimentos da vida pública. Lá eram realizados diariamente cultos e sacrifícios, e suas cerimônias principais eram concorridas e para as quais afluíam um imenso número de peregrinos dentre judeus da diáspora e gentios conversos.

Um elemento poderosamente significativo para ilustrar a elevadíssima imagem de Jesus na fé cristã nascente é a associação da obra e da própria pessoa de Jesus, com os ofícios e com o próprio Templo, identificando em Jesus o papel que cabia ao Templo. Isso transparece na primeira carta de Paulo aos Coríntios, na literatura joanina e no livro de Hebreus, principalmente. Hoje, a imagem mais lembrada e retomada é a do sacrifício. No Templo, ocorriam os sacrifícios de ação de graças a Deus e sendo veículo da concessão graciosa de Deus do perdão dos pecados para aqueles que viviam em fé confiante na Torá. Os cristãos enxergaram em Jesus o Templo definitivo, a morada plena de Deus entre os homens, e na sua obra, viam o veículo para a concessão graciosa de Deus do perdão dos pecados para aqueles que viviam em fé confiante em Jesus Cristo. Importante assinalar que era uma relação comunitária; muitas vezes no cristianismo, e sobretudo hoje especialmente nos segmentos evangelicais, se acentua a dimensão da “salvação individual”, em dissemelhança com o significado dela naquele tempo.

Mas há outra igualmente atribuição e importância do ofício do Templo no judaísmo daquele período. Algo que compartilhava em um núcleo comum com diversas visões religiosas da história (com a importantíssima dissemelhança de se remeter ao Deus único). O ofício do Templo expressava o ambiente e esfera de ligação da vida e do mundo com a ordem última das coisas, na esfera dos Céus. Assim, a ordem e a obediência aos preceitos, no ofício do Templo, influenciava a estabilidade cósmica e os processos de renovação da vida; a agregação pessoal, social e natural. A conservação e o destino cósmico e social estava ligado ao culto correto no Templo, que remetia às realidades fundamentais da realidade.

E tal função, fora também remetida à obra e pessoa de Jesus, igualmente? Sem dúvida é algo que passa despercebido hoje. Mas sim, havia esse acento, igualmente importante à dimensão expiatória, enfatizando o destino da criação ligado à obra e pessoa de Cristo.

Tomemos Hebreus -
1.3: “Este Filho é o esplendor de sua glória e a expressão de seu ser, e sustenta o universo inteiro pelo poder da sua palavra”.
9.23: “Se, pois, as imagens do que está nos céus são purificadas mediante estes ritos, é mister que as próprias realidades celestes o sejam por sacrifícios bem melhores”.

Colossenses -
1.19 “Pois aprouve a Deus fazer habitar nele [Cristo] toda a plenitude e tudo reconciliar por meio dele e para ele, na terra e nos céus(...)”
2.9 “Pois neste [Cristo] habita corporalmente toda a plenitude da divindade(...)”

II Coríntios 5.19 "Isto é, Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus pecados; e pôs em nós a palavra da reconciliação".

Não vemos aí o que o simbolismo da Cruz Celta passa a retratar no cristianismo?

21 de março de 2010

Sobre ritos e sacralidade

Acordando, pois, Jacó do seu sono, disse: Na verdade o SENHOR está neste lugar; e eu não o sabia. E temeu, e disse: Quão terrível é este lugar! Este não é outro lugar senão a casa de Deus; e esta é a porta dos céus.
Então levantou-se Jacó pela manhã de madrugada, e tomou a pedra que tinha posto por seu travesseiro, e a pôs por coluna, e derramou azeite em cima dela. E chamou o nome daquele lugar Betel; o nome porém daquela cidade antes era Luz.
E Jacó fez um voto, dizendo: Se Deus for comigo, e me guardar nesta viagem que faço, e me der pão para comer, e vestes para vestir; e eu em paz tornar à casa de meu pai, o SENHOR me será por Deus; e esta pedra que tenho posto por coluna será casa de Deus; e de tudo quanto me deres, certamente te darei o dízimo. Gênesis 28.16-19

Em toda a história, em todo o mundo, é universal dentre os povos alguma visão ou visões de esferas e hierarquias de sacralidade no microcosmo e macrocosmo abrangido por suas culturas. O Sagrado se apresenta por lógicas próprias, que transcendem os mecanismos e processos regulares da vida. Na hierarquia, há os contrastes, com diversas nuances, entre o sagrado e o profano. Em graus variáveis, diferentes âmbitos dão maior acesso ou maior distância para com o sagrado, manifestando-se por mediações destes lugares, ritos, sendo assim, níveis diferentes de pureza. Constatamos bosques sagrados, mananciais, montanhas, locais de cultos construídos, etc., etc. Objetos ou materiais purificadores, especialmente água e fogo. A impureza podia ser transmitida por contato físico, e expurgada por contato físico.

No recorte bíblico da religião hebraica, temos estes exemplos, destacando os Montes Sinai, Horeb, o Santo dos Santos no Templo. Locais em que a presença de Deus é mais imediata. Também impureza, ou seja, o afastamento da presença mais direta do sagrado, é expressa no consumo de determinados animais (Lv. 11), contato com animais mortos(Lv 11.24-28), secreções dos órgãos genitais ( Lv. 12.1-8; 15.1-32). No judaísmo do Segundo Templo, podemos ver a extensão dessa dinâmica pureza-impureza para esferas e atitudes comuns da vida privada e social em detalhes. A temática dominante para essas práticas era a discussão quanto a levar uma vida mais próxima de Deus, mais harmônica com o Senhor. Sobretudo quando se tinha uma auto-imagem de pessoa, comunidades e povo sacerdotal, ou seja, aqueles que intercedem pelo mundo a Deus e por intermédio de quem Deus busca se manifestar no mundo. E assim se constituía as tradições da vida religiosa cotidiana.

Uma leitura pouco cuidadosa leva à impressão de que Jesus se opunha em si a essa preocupação, encarando-a cinicamente como fútil e para bobocas hipócritas. Às vezes chega-se a projetar uma figura de Jesus como desconectada e em oposição a todo judaísmo de seu tempo. Nada mais falso. Jesus participava do culto nas sinagogas, ia às festas, valorizava as ceias comunais, usava vestes típicas dos homens piedosos e dedicados à reflexão teológica, como o tzit-tzit – algo que passa batido pelas traduções da passagem da mulher curada de hemorragia em Marcos 5.25-31, como “franjas” ou “bordas”.

O que Jesus criticava era a racionalização, ou o uso como desculpa, desses costumes, para a pessoa ter uma atitude de desamor e conveniência com a injustiça, ou ser chauvinista e demófoba com arrogância para com as pessoas simples, ou os desamparados e segregados dentre o povo, com os “menores”, os estigmatizados. Ele conclamava que a busca da pureza era boa, o zelo para com viver em harmonia com Deus. Porém, devia começar por uma novidade de vida, por misericórdia e empatia; a pureza advinha de uma busca de relacionamento pessoal íntimo com Deus que se manifestava numa disposição interior, e não se fiava em ritos e atitudes exteriores habituais que serviam para criar um coração fechado e amargo; pois com isto, na verdade se abdicava e se perdia do ser sacerdotal, pois Deus não está aí, Deus é “indomável”, “indomesticável”. Uma “religião do coração”, não no sentido sentimental apenas, pois o “coração” para os judeus na Antiguidade era o centro da vontade e determinação da pessoa; ser “o coração de algo” era ser o âmbito vital, norteador. “Cabeça”, por sua vez, costumava significar “fonte”, ou até mesmo o que hoje às vezes se emprega – fulano é o coração do time – ou seja, o núcleo referencial.

Por isso hoje, os cristãos não devem perder a grande riqueza da tradição histórica na liturgia, nos símbolos, rituais, rezas, cores, sabores, vestes, estética, hinos, arquitetura, arte sacra. O quanto está ficando insípida muita área da igreja que deu de ombros pra isso tudo! O quão raso e feio fica quando isto acontece! O foco é não deixar que estas coisas esteja, por si, em dessintonia com a disposição interior. A ordem é começar de dentro e exteriorizar, e estes símbolos e riquezas da tradição são repletos de significado a respeito da atitude interna do membro do cristianismo; não se pode é deixar que tomem o lugar desta atitude.

7 de março de 2010

Lendo a Bíblia com Jesus? Parte II - revelação progressiva

A pregação profética tinha um duplo sentido; de um lado, denunciava uma queda em auto-suficiência, em que os princípios e o espírito da Aliança eram obnublados por uma confiança cega em serem “o povo”, falhando em cumprir a missão e as prerrogativas dela, em uma interpretação triunfalista; de outro, eles retomaram e ampliaram o alcance da questão sacerdotal, levando a últimas conseqüências sua implicação do caráter universalista do propósito desse ser divino para todo o mundo, e Israel e Judá como instrumento que estava falhando.

Por isso, ora vinham pesados juízos contra as nações pela violência, idolatria, perversão, agressão ao “povo escolhido”, ora vinham oráculos anunciando bênçãos a elas, e elas sendo legitimadas em subjugar um povo que abandonava e perdia sua razão de ser .

Com o exílio, estes temas proféticos foram retomados, sobretudo o da Aliança, e sob o ângulo dos caminhos abertos para a Bênção e Maldição, do vislumbre do que poderia ter sido caso Israel se mantivesse fiel à Aliança, e da constatação da quebra desta, da maldição decorrente e da falência humana em caminhar com Deus em harmonia, já visto aí como o único Deus verdadeiro, e não o maior; com um propósito universal de redimir o mundo, reforçando o caráter sacerdotal e necessidade de “santificação” do povo, e alguns (como o autor de Jonas) reforçando o tom universalista ante um provincianismo que ameaçava recrudescer.

Houve a justaposição dos textos da criação. Ali fora feita uma "projeção" de sua leitura da história de Israel e do povo hebreu, sobre a história da humanidade, enxergando que a primeira recapitulara a segunda. Como se a Aliança fosse, na verdade, uma Segunda Aliança, após a Primeira feita com a humanidade, quebrada e cujas consequências desta quebra todos sofrem.
No tempo de Jesus, com tudo o que decorreu posteriormente do domínio helênico, a resistência, os mártires, a revolta dos Macabeus e divisões religiosas, o domínio romano, haviam multiplicidade de respostas.

Mas num cerne abrangente, tinha uma noção, mais atenuada até mais apocalíptica, de que estavam ainda num “exílio” e que aguardavam Deus visitar novamente Israel, e a forma como isso se daria variava. Daí o cenário para uma “revelação progressiva”, um conhecimento progressivo dos caminhos de Deus.

Jesus parece ter adotado um amálgama de várias visões messiânicas, absorvendo elementos de cada e rejeitando outros. Compartilhou com João Batista a noção de que chegara o tempo da visita de YHWH. Que os “mais fracos”, os estigmatizados e precarizados, estariam no centro do plano de Deus para redimir. E que era necessário se cumprir os sinais esperados para a mediação do povo para estar pronto para isso. Ampliou a perspectiva com a noção mais universalista de que essa mediação era para com o mundo, e que estaria inaugurando-se com seu ministério.

Daí o panorama para um cristão se aproximar, ou tentar, com as lentes para uma linha norteadora da Bíblia Hebraica que era a Bíblia que Jesus adotava.

Ler a Bíblia com Jesus?

Ler com Jesus? É isso?

Com certeza seria mmmuuuuita megalomania pretender que se pode colocar no lugar de Jesus e querer ler a Bíblia Hebraica como se fosse ele próprio.

Mas podemos sim, aproveitar tooodo o cabedal dos estudos hoje que se valem da arqueologia, exame da literatura de então, geografia humana, estudos culturais, etc., para empreendermos uma jornada, cautelosa e sem buscar muita precisão, em busca de pistas da chave interpretativa da leitura de Jesus.

Primeiro, é vital considerar que é patente que a Bíblia não é um ditado de Deus, nem é, por si só, um acesso direto e inequívoco a Ele. Isso frisando, ainda na perspectiva cristã de sua sacralidade e inspiração divina.

Comecemos reforçando que há postulados básicos que interligam uma visão de mundo e a maneira de estar nele e se guiar, em especial filosoficamente ou religiosamente. Quem somos? Onde estamos? O que está errado? Qual a solução?Assim, teremos essas guias para refletir sobre um sentido construído historicamente, de como os judeus que se viam como “o povo de Deus” e retomavam seu memorial.

No geral, a religião hebraica em sua contingência histórica tinha como crença básica que eram um “povo sacerdotal”. Eles se constituíram como um povo que tinha uma missão especial e existia em decorrência dela, em relação aos outros povos. Retomavam em sua narrativa de fundação a imagem de que uma divindade poderosa entre os deuses, insondável, santo (consagrado e separado), oculta e moralmente volitiva, tinha feito uma aliança com eles para lhes constituir uma nação, visando consagrar toda a Terra, se revelar e lidar com a aparente maldade do mundo. Indo mais além nas narrativas das odisséias patriarcais (os patriarcas do Gênesis), as tradições foram socializadas e compiladas para mostrar como estavam ligados umbilicamelmente à divindade e tendo existência própria enquanto povo, dependente dessa divindade, uma nação em meio a povos hostis ou perigosos, em meio a uma rota importante de empreendimentos bélicos e entreposto para impérios (considerando também ser um povo com baixo domínio tecnológico). O termo sacerdotal remete a intercessão espiritual e mediação. Por isso se viam como tendo que se diferenciar de maneira muito forte para ter sua identidade própria, relativamente a procedimentos de outros povos.

Então não tinham sua existência dependentes só de si, nem por seus próprios méritos e forças, o que implica também o risco de falhar na missão.