31 de agosto de 2010

As armadilhas da falsa humildade

Por isso o reino dos céus pode comparar-se a um certo rei que quis fazer contas com os seus servos; e, começando a fazer contas, foi-lhe apresentado um que lhe devia dez mil talentos. Não tendo ele com que pagar, o seu senhor mandou que ele, e sua mulher e seus filhos fossem vendidos, com tudo quanto tinha, para que a dívida se lhe pagasse.

Então aquele servo, prostrando-se, o reverenciava, dizendo: Senhor, sê generoso para comigo, e tudo te pagarei. Assim o senhor daquele servo, movido de íntima compaixão, soltou-o e perdoou-lhe a dívida.

Saindo, porém, aquele servo, encontrou um dos seus conservos, que lhe devia cem dinheiros, e, lançando mão dele, sufocava-o, dizendo: _Paga-me o que me deves.
Então o seu companheiro, prostrando-se a seus pés, rogava-lhe, dizendo:
_Sê generoso para comigo, e tudo te pagarei.

Ele, porém, não quis, antes foi encerrá-lo na prisão, até que pagasse a dívida.

Vendo, pois, os seus conservos o que acontecia, contristaram-se muito, e foram declarar ao seu senhor tudo o que se passara.

Então o seu senhor, chamando-o à sua presença, disse-lhe:
_ Servo malvado, perdoei-te toda aquela dívida, porque me suplicaste.Não devias tu, igualmente, ter compaixão do teu companheiro, como eu também tive misericórdia de ti?

Há pouco tempo trabalhamos com uma exegese, um exercício interpretativo desta parábola contada por Jesus. As parábolas que Jesus contava primam, em primeiro instante, no relevo do plano de salvação que Deus estava implementando naquele momento crítico da História, em Jesus. Em segundo plano, são lições práticas sobre a vida cotidiana. Desta forma é o nosso tratamento em “Cristianismo, meramente”.

Essa parábola serve como dissecação arguta sobre algumas ciladas no dia-a-dia. Constantemente nos deparamos com pessoas que gostam de ostentar, com orgulho, sua humildade. “Eu sou só um reles x....”. Costumam se contrapor aos outros “bem, quem sou eu pra dizer diferente”; “ah, vou expor minha visão mas eu não sou como vocês...”; “olha, quem está querendo aparecer, aquele que se acha....”. É um tipo de armadilha retórica sórdida. Porque revela na verdade, o que a pessoa pensa em termos das relações sociais: uma concepção hierárquica esnobe. Pois o que ela se refere a si ela, fingidamente, ela aplica aos outros que enxerga como “de baixo”. Pois quem realmente não tem uma visão mesquinha ressalta a dignidade das pessoas vistas como “hierarquicamente inferiores”, sem precisar fazê-las de coitadas ou fazer-se de coitado. Os trabalhadores que realmente são democratas lutam pela sua dignidade, e não exploram uma falsa humildade. Não usam um “auto-rebaixamento” como constante em sua retórica, para constranger os outros a não retrucarem-no ou questionarem-no, ou para esconder suas posturas atrás dela.

Como nessa parábola. O servo insistia ao rei: tenha paciência... por quê?

Porque “oh, sou só um servo, quem sou eu? Perdoa esse servo coitado”... pra depois mostrar o que pensa dos servos: “você, seu ninguém, sua ralé, seu inferior, me pague”, e descarregava nele sua amargura por não ser um rei e ser subordinado.

Constantemente nos deparamos com pessoas assim. Em nossos lares, trabalhos, comunidades, país. Que se fazem de coitadas, revelando na verdade a forma como vêem o mundo. E é nos relacionamentos com pessoas em condições mais humildes que elas revelam isso. Como o servo da parábola.

Houvera um tempo no Brasil em que era “chique”, “sofisticado”, pregar a igualdade social e distribuição de renda. Se dizer de uma ideologia radical. Servia para muitos como pretexto para esnobar o povão, que não era “conscientizado”, não enxergava isso; era chique, a pessoa podia ser esnobe e se sentir superior. Era romântico e sofisticado condenar a desigualdade social em companhia de sarcásticos debochadores. Tal qual G.K.Chesterton ironizava os esnobes de seu tempo que se recusavam a comer carne, só porque o homem comum apreciava um bife; que abriam mão de tudo os que ligavam aos homens comuns, para se sentirem superiores, alegando justamente "idealismo".

Depois, que se começou a levar a sério isso de "distribuir renda", o que foi mais propiciado ao longo da evolução a partir da abertura política e democrática do país, parou de ser "cult", ficaram ressentidos de isso ter “caído na boca do povo”, do “povão” estar agora concordando, de isso os estar “nivelando”, e mostraram o que sempre foram por dentro: aqueles que defendem que os em posição socialmente em maior escala hierárquica são moralmente e essencialmente superiores e o poder deve concentrar-se em suas mãos.


Assim também, no cotidiano, vemos os “servos iníquos” mostrarem verdadeira agressividade quando se imaginam num cenário de equivalência com aqueles que vêem como debaixo de si. Na maioria das vezes, por parte daqueles que mais investem em uma máscara, fantasia, insistindo em toda oportunidade para demonstrar efusivamente de forma a mais afetada, que são o contrário.




E, indignado, o seu senhor o entregou aos atormentadores, até que pagasse tudo o que devia.

22 de agosto de 2010

Magnum Mysterium

Encotrei este vídeo no Youtube, com o maravilhoso hino "Magnum Mysterium" interpretado de forma bela, e com impressionantes imagens de monumentais e inspiradores mosteiros na Espanha.


A palavra de Cristo permaneça entre vós em toda a sua riqueza, de sorte que com toda a sabedoria vos possais instruir e exortar mutuamente. Sob a inspiração da graça cantai a Deus de todo o coração salmos, hinos e cânticos espirituais.
Colossenses 3.16

Aproveito e deixo dois links com imagens fantásticas de investigações arqueológicas em terras de Éfeso, por onde teria passado o apóstolo Paulo, que jogam importantes luzes acerca do contexto de então, mostrando também o quão plural era a audiência e a composição das comunidades cristãs de lá.

Os terraços das casas efésias.
Mileto

15 de agosto de 2010

O Cristianismo e o Descortinar para as Mulheres

Tive a sorte de pertencer a uma família burguesa, que, além de financiar meus estudos nas melhores escolas, também permitiu que eu brincasse com as idéias. Por causa disso, consegui entrar no mundo dos homens sem muita dificuldade. Mostrei que poderia discutir filosofia, arte, literatura, etc., no nível dos homens. Eu guardava tudo o que fosse próprio da condição feminina para mim. 

Fui então motivada por meu sucesso a continuar, e ao fazê-lo, vi que poderia me sustentar financeiramente, assim como qualquer intelectual do sexo masculino, e que eu era levada a sério, como qualquer um de meus colegas do sexo masculino. Sendo quem eu era, descobri que poderia viajar sozinha se quisesse, sentar nos cafés e escrever, e ser respeitada como qualquer escritor do sexo masculino, e assim por diante. Cada etapa fortalecia meu senso de independência e igualdade. Portanto, tornou-se muito fácil para mim esquecer que uma secretária nunca poderia gozar destes mesmos privilégios. Ela não poderia sentar-se num café e ler um livro sem ser molestada. Raramente ela seria convidada para festas por seus “dotes intelectuais”. Ela não poderia pegar um empréstimo ou comprar uma propriedade. Eu sim. E pior ainda, eu costumava desprezar o tipo de mulher que se sentia incapaz, financeiramente ou espiritualmente, de mostrar sua independência dos homens. De fato, eu pensava, sem dizê-lo a mim mesma, ‘ se eu posso, elas também podem’. Ao pesquisar e escrever O Segundo Sexo foi que percebi que meus privilégios resultavam de eu ter abdicado, em alguns aspectos cruciais pelo menos, à minha condição feminina.”

Simone de Beauvoir.



Jesus desafiara tabus de seu tempo e promoveu uma verdadeira dignificação da mulher em um tempo que haviam até mesmo orações de graças por um homem não ter nascido mulher. Respeitara a inteligência, os sentimentos, a dignidade e responsabilidade pessoal delas, não opôs objeções a ter a companhia delas no discipulado, em um tempo que rabinos não o faziam. No ‘Abot 1.5, da Mishna, se apresenta que conversar muito com mulheres, incluindo esposas, era gastar mal o tempo e desviar a atenção da Torá, e males poderiam advir das conversas. As mulheres foram as primeiras testemunhas da Ressurreição e então as primeiras evangelistas. Mulheres com recursos contribuíam com o ministério de Jesus, e também com a igreja nascente; Paulo e os demais apóstolos da mesma forma se relacionaram com pregadoras, mulheres evangelistas e catequistas, em respeito e consideração. Contudo, algumas passagens analisadas de forma descontextualizada têm levado a, tanto fundamentalistas crentes quanto fundamentalistas céticos, a apregoar um certo machismo na igreja nascente. Vamos analisá-las.

Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos como ao Senhor; porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja [...]. De sorte que, assim como a igreja está sujeita à Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo sujeitas ao marido” [Efésios, 5:22-24].

Vamos continuar mais à frente?

Maridos, amai as vossas mulheres como Cristo amou a igreja” 5.25 – ou seja, por entrega total.
É assim que o marido deve amar a sua mulher, como o seu próprio corpo. Aquele que ama a sua mulher ama a si mesmo”. 5.29

Ou seja, Paulo foi muuuito além na alteridade conjugal do que ia todos os padrões de seu ambiente, tanto helênico quanto judaico. Por falar em ambiente, “cabeça” ali indicava algo no sentido de “fonte” e não “supremacia”, para a qual era empregado “coração” – que não tem o mesmo sentido atribuído pelo romantismo ocidental.

Confiram “Paul, Women, and Wives: Marriage and Women’s Ministry in the Letters of Paul”, de Craig Keener. Também tem-se a apresentação de seus argumentos neste artigo: The Changing Role of Women in the Early Christian World


As vossas mulheres estejam caladas nas igrejas; porque não lhes é permitido falar; mas estejam sujeitas como ordena a lei. E, se quiserem aprender alguma coisa, interroguem em casa a seus próprios maridos; porque é vergonhoso que as mulheres falem na igreja” I Coríntios, 14:34-5.


Paulo lidava com um contexto específico: a bagunça generalizada no culto da igreja de Corinto, com estardalhaço carismático. Mais acima se vê que ele estava explicando a respeito da confusão quanto à “glossolalia”, e os fiéis “profetizando”, sem ordem no culto. Então, ele estava sendo bem específico. Tanto assim que, como na citação acima, Paulo reconheceu apóstolas e catequistas.

A mulher aprenda em silêncio com toda a sujeição” [I Timóteo, 2:11]. Ainda: “Não permito, porém, que a mulher ensine nem use de autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio” [I Timóteo, 2:12]

Paulo [ se for realmente o autor de I e II Timóteo, que muitos consideram pseudepígrafas], diante da prisão derradeira sob Nero e em iminência da morte, estava fortalecendo um discípulo catequista e presbítero novo, que pela referência a ele como neothj ("em juventude"), em 1 Tm 4:12 apontaria algo de menos de 22 anos; e assim não devia ser muito respeitado de acordo com os costumes, e em uma província asiática onde houvera dentre os conversos muitos ex-líderes de cultos pagãos, dentre eles sacerdotisas; este fora o contexto, para o qual ele estava dando o aval para Timóteo impor sua autoridade.

"Mas toda a mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta, desonra a sua própria cabeça, porque é como se estivesse raspada. Portanto, se a mulher não se cobre com véu, tosquie-se também. Mas, se para a mulher é coisa indecente tosquiar-se ou raspar-se, que ponha o véu” [I Coríntios, 11: 5-6].

Nenhum exegeta propugna que Paulo recomendava isso generalizadamente. Para a mentalidade judia, a mulher raspar a cabeça era desonra. Assim, Paulo aponta que se queriam tirar o véu para descobrir a cabeça, então porque não removerem também os cabelos? Ali estávamos numa região mediterrânea de grande influência das religiões de mistério orientais e de hábitos correlatos. Nestas culturas, tinha-se o cabelo como uma arma para a sedução, e os moralistas – não no sentido pejorativo, mas no sentido dos que pensam sistematicamente a moral e defendem-na – conclamavam-nas a cobrirem-nos, para deixar claro que não tinham a intenção de provocar alguém. Geralmente o costume era desafiado por mulheres da aristocracia, e Paulo nesta carta lida com a tempestuosa questão da diferença entre classes sociais na igreja.

Muitas sacerdotizas de cultos das religiões de mistério orientais raspavam a cabeça e às vezes marcavam-na e em redor. E faziam prostituições cultuais. Paulo estava enfatizando para elas se diferenciarem agora como conversas e não derem espaço a serem confundidas. Inclusive, veja só: estava falando de um culto público, e referiu-se a “orar” e “profetizar”, ou seja, manifestarem-se publicamente, até com o ensino – a profecia aberta.

Sobre a perspectiva geral das mulheres na igreja nascente, o estudioso Howard Clark Kee aponta muito bem no livro “As origens cristãs em perspectiva sociológica”:

Fustel de Coulanges mostrou que uma mulher romana nunca teve um lar ou um serviço religiosos que lhe fossem próprios, nunca exercia autoridade com referência ao culto, nunca era livre e dona de si, e com a morte do marido, cessava de ser mater famílias. Lembra documentação de Plutarco, segundo a qual a mulher não podia comparecer ao tribunal como testemunha, e de Gaio (fins do século II a.C.) que dizia “que nada se pode conceder na forma da justiça a pessoas sob potestade – como sejam as viúvas, filhos e escravos”. Quando o senado quis erradicar o culto de Baco com os seus excessos selvagens, anteriormente descritos por Eurípedes em seu Bacchae, concluiu com relutância que devia dar o poder de julgá-los à única autoridade tradicional sobre as mulheres: aos seus maridos. Como Catão Sênior o afirma, “seu poder não tem limites; podem fazer [com suas esposas] o que quiserem”.

(...)em Lucas as mulheres tomam a iniciativa de se aproximar de Jesus para receber cura e perdão ( LC.7,11-17; 13,10-17). Elas organizam o apoio a Jesus (8,1-3); cuidam de suas necessidades e se apresentam mais abertas aos seus ensinamentos (10,38-42). São representadas nas parábolas (15,8-10). Ouve-se a sua voz no meio dos seus seguidores (11,27-28). (...) mulheres participam com os homens da liderança da Igreja (At 12,12; 16,1;16,4;18,2.19), da perseguição (9,2;22,4), na proporção de convertidos (5,14;17,34), na distribuição de bens(6,1), e no apoio aos apóstolos (21,5). 

(...) Pelas inscrições e fontes literárias que informam sobre o culto de Ísis, p. ex., assim como pelas representações pictóricas do culto (como as do Iseum de Pompéia), podemos concluir que mulheres eram iniciadas nos mistérios de Ísis, mas fica evidente que a sua participação oficial no culto era de auxiliares ao sacerdócio masculino. A sacerdotisa é representada ao lado do sumo sacerdote; mulheres tocam instrumentos ou espalham flores na vereda da procissão de Ísis, mas o seu papel era claramente subsidiário. 

Na era pré-cristã, Eurípedes fazia críticas cortantes às mulheres devotas de Dionísio; na época da república romana, relata Lívio (História de Roma, livro 39) que mulheres eram as principais instigadoras dos bacanais, as cerimônias orgíacas noturnas que resultavam em assassinatos e toda sorte de excessos sexuais. Assim, nos inícios do império, os papéis das mulheres, nos movimentos religiosos, eram largamente suspeitos. O movimento cristão desafiou essa atitude e concedeu às mulheres novas formas de participação religiosa”. pp. 77-79.

Ou, ainda, certas frases das epístolas ou do ritual do casamento, na opinião de anticristãos, mostravam desprezo pelo intelecto da mulher. Mas descobri que os próprios anticristãos nutriam o desprezo pelo intelecto feminino; pois sua grande chacota contra a igreja na Europa era que "apenas mulheres" a freqüentavam.

G.K. Chesterton em “Ortodoxia”, p. 94

7 de agosto de 2010

Dia dos Pais

Alexandre Dáskalos
poeta angolano









Carta

Jesus Cristo Jesus Cristo
Jesus Cristo, meu irmão
Sou fio dos pais da terra
Tenho corpo p’ra sofrer
Boca para gritar
E comer o que comer
Os meus pés que vão
No chão

Minhas mãos são de trabalho
Em coisas que eu não sei
E não tenho nem apalpo
Trabalho que fica feito
Para o branco me dizer
“Obra de preto sem jeito”
E minha cubata ficou
Aberta à chuva e ao vento
Vivo ali tão nu e pobre
Magrinho como o pirão
Meus fio salta na rua
Joga o rapa sai ladrão
Preto ladrão sem imposto
Leva porrada nas mão
Vai na rusga trabalhar
Se é da terra vai pró mar
Larga a larva deixa os bois
Morrem os bois... e depois?

Se é caçador de palancas
Se é caçador de Leão
Isso não faz mal nenhum
Lança as redes no mar
Não sai leão sai atum...
Jesus Cristo Jesus Cristo
Jesus Cristo, meu irmão
Sou fio dos pais da terra
Um pouco de coração
De coração e perdão
Jesus Cristo, meu irmão.


Jorge Mateus de Lima











Lutamos Muito

Lutei convosco, fiquei cansado,
Fiquei caído. Quando acordei
Tu me ungiste, Tu me elevaste.
Tu eras meu pai e eu não sabia.
Eu sofri muito. Furei as mãos.
Ceguei. Morri. Tu me salvaste.
Eu sou teu filho e não sabia.
Lutamos muito: Eu Te feri.
Perdoa Pai, pensai meus olhos:
Eu era cego e não sabia.

Feliz dia dos Pais

1 de agosto de 2010

Inferno

por Richard Bauckham

No início de 1996 um relatório pela Comissão de Doutrina da Igreja da Inglaterra foi publicado. Era um livro (chamado O Mistério da Salvação”) sobre a compreensão cristã da salvação. A cobertura na imprensa nacional ficou amplamente confinada a um ponto neste livro de 200 páginas: o parágrafo sobre o inferno. As manchetes típicas na imprensa eram: "o inferno vazio da Igreja" - "anciãos da Igreja derramaram água fria no fogo do inferno e da danação" - "Nós acreditamos no inferno, diz a Igreja (mas sem as chamas)."

Isso foi uma surpresa para os autores do relatório, que encaravam o parágrafo sobre o inferno como bastante incontroverso. Em qualquer caso, era uma parte muito pequena do seu relatório, que tratou longamente com muitas outras questões mais atuais, como o feminismo e a atitude da igreja para com as religiões não-cristãs, que não teriam ficado surpresos ao encontrá-los provocando controvérsias.

Grande parte do relatório é uma tentativa constante de fazer a compreensão cristã de salvação relevante e significativa no contexto da vida e sociedade britânicas contemporânea. A mídia nacional não estava interessada nisso. Para eles, a salvação significa escapar do fogo do inferno quando você morre, e assim o único ponto que vale a pena observar no relatório foi a sugestão de que a igreja estava abandonando a sua imagem tradicional de fogo e enxofre como o destino dos condenados.

De fato, o relatório pretende que o inferno seja levado a sério. Mas o inferno não é nada mais do que não alcançar a salvação. Não pode ser entendido como algo positivo em si mesmo. Só faz sentido como uma negativa: não ser salvo. A salvação não é evitar o inferno, mas sim o inferno que é perder a salvação. Então o inferno não pode ser entendido sem uma compreensão perfeitamente cristã e inteiramente positiva da salvação.

Há muitas maneiras de se descrever a salvação cristã. Uma forma que o relatório da Comissão da Doutrina adota é a seguinte: A Salvação é experimentar Àquele que é a Fonte e a Meta de todas as coisas como a Fonte e a Meta de seu próprio ser e viver. Salvação significa, em última instância, encontrar uma realização como ser humano em Deus. Os seres humanos são feitos para encontrar a realização, em última instância, somente em Deus. Salvação, tanto agora como depois da morte, está em conhecer a Deus.

Se este é o destino para o qual Deus nos fez, o inferno não pode ser uma espécie de destino paralelo, alternativo. O inferno é o resultado de uma recusa do destino para o qual fomos feitos e a única maneira em que a vida humana pode encontrar satisfação eterna. É uma possibilidade real e terrível, os seres humanos podem recusar o destino para o qual eles foram feitos. Isto pertence à seriedade absoluta a qual Deus leva para com a liberdade que Ele nos deu.

Nós não podemos dizer dogmaticamente se no final alguém vai escolher o inferno. Mas o inferno é uma possibilidade absolutamente grave a que as pessoas têm de ser avisadas. Ninguém deve supor que, embora recusando-se a conhecer a Deus agora, pode sempre mudar de idéia mais tarde. Como em todas as áreas da vida, nossas escolhas agora podem limitar as escolhas que podemos fazer no futuro.

O Novo Testamento usa uma variedade de diferentes imagens para descrever o inferno: o fogo é uma delas, a destruição uma outra, a exclusão da presença de Deus outra. Queimar no fogo por toda a eternidade é a imagem que ficou muito fixada no ensino tradicional sobre o inferno, como se fosse uma descrição literal. O Novo Testamento não nos obriga a pensar no inferno desta forma. O inferno não é uma câmara eterna de horrores através do caminho do céu. O inferno é o destino daqueles que rejeitam o amor de Deus. O amor de Deus não pode obrigá-los a encontrar o seu cumprimento em Deus, mas não há outra maneira para que eles possam encontrar satisfação. Excluem-se da Fonte de todo ser e da vida.