24 de abril de 2011

A Vocação Pascal

um sermão na Eucaristia da manhã de Páscoa em Durham, 2006.

por N.T.Wright - bispo anglicano aposentado, conhecido como um dos maiores especialistas em origens cristãs e Novo Testamento no mundo.



Vá para meus irmãos e dize-lhes: "Subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus." O comando notável de Jesus para Maria Madalena é o clímax da história de João da manhã de Páscoa. Os outros eventos até agora, não menos a aflitiva corrida de Pedro e João ao túmulo, estão enquadrados dentro da história de Maria. De agora em diante as coisas vão se ampliar para fora, com os onze no Cenáculo e depois a cena, uma semana depois, com Tomé; mas para a incomparável história da manhã de Páscoa de João o foco está em Maria.

Você nunca teria conhecido isto dos hinos, orações e liturgias habituais da Pásco. Se você reconstruiu a história da Páscoa a partir delas, você deveria supor que quando os evangelistas escreveram a manhã da Páscoa a sua principal mensagem era:_ Jesus ressuscitou, assim também nós devemos ser no final. Isso é verdade, e é o que Paulo e os outros dizem, mas uma das muitas características marcantes sobre as narrativas da ressurreição é o fato de que em nenhum momento qualquer Jesus ou qualquer outro menciona a esperança futura, quer para o céu, ou a salvação, ou mesmo para própria ressurreição. Tudo o que resta a ser trabalhado.


O que é muito mais urgente e importante que as questões de seu próprio destino final, é dizer, como todos os evangelistas fazem, quatro coisas. Primeiro, Jesus está realmente vivo novamente. Em segundo lugar então, ele realmente é o Messias, o verdadeiro Senhor do mundo. Em terceiro lugar, portanto, a nova criação de Deus já começou. E, em quarto lugar - e esta é a ponta afiada de tudo isso - então você tem um trabalho urgente e importante para fazer, e uma nova identidade para fazê-lo. A força desta longa história da manhã de Páscoa é levar-nos, através da pessoa e os olhos de Maria Madalena, no coração da primordial mensagem de Páscoa: Jesus ressuscitado, portanto o mundo é um lugar diferente, e nós somos chamados, como testemunhas da ressurreição, para anunciá-lo, para fazer que isso aconteça, e para nos encontrar refeitos no processo.


Olhe novamente para a história do ponto de vista de Maria. Ela ainda está na escuridão, desde que, naturalmente, pressupõe que uma tumba vazia é um túmulo roubado. João e Pedro vão correndo para lá e para cá, mas Maria ainda está de pé ali, e na verdade os olhos são pelo menos parcialmente cegos por lágrimas. Mas em meio às lágrimas ela vê - talvez você só pode vê-los quando você está chorando - dois anjos, um à cabeceira e outro aos pés do local onde o corpo de Jesus tinha sido sepultado. Rowan Williams sugeriu em um característico artigo há alguns anos que nós devemos ver isso como uma referência ao propiciatório no templo, com os querubins ofuscando-lhe em qualquer lado: esse lugar, essa borda em um túmulo, se tornou o lugar, o lugar final, onde Deus se encontrou com seu povo, e reuniu-se com eles em graça, trazendo ao seu próprio clímax o longo tema de João de Jesus ofuscando o Templo, da destruição e reconstrução do Templo de seu corpo. Voltaremos a este momento.


Mas, então, Maria se vira e vê o próprio Jesus e, em um daqueles momentos irônicos joaninos pensa que ele é o jardineiro - como é claro que ele é o novo Adão, na nova criação. E ele a chama pelo seu nome real, seu nome hebraico antigo, Miriam, nome da irmã de Moisés, que cantou sua canção selvagem de triunfo depois de assistir o Deus de Israel derrotar os egípcios no Mar Vermelho. Algo que deve estar ecoando nesta história também, com Jesus como o novo Moisés que liderou o caminho através das águas escuras da morte e agora está liderando o caminho de casa para a terra prometida.


Mas nesse ponto, e com todas as chocantes imagens bíblicas entrelaçando ao redor do texto e nas nossas cabeças, podemos ser tentados a ler a linha perfurada da maneira errada. "Não se apegue em mim", diz Jesus - não se trata de voltar à vida antiga, é sobre ir para a nova - porque eu ainda não subi ao Pai. Mas vai a meus irmãos e dize-lhes: "Eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus." 'E ela vai fazer o que Jesus lhe disse. E todos nós muito facilmente supomos que a mensagem é: Jesus está indo para o céu para sempre, e um dia vamos ir e se juntar a ele. E isso seria perder todo o sentido da Ascensão do Senhor, aqui e alhures no Novo Testamento.


O ponto da Ascensão, tão contundentemente destacado aqui na narrativa joanina de ressurreição, nos lábios do próprio Jesus, não é que ele está indo para muito longe, mas que ele está sendo elevado para ser o verdadeiro Senhor do mundo. A ressurreição justificara sua pretensão de ser o Messias de Israel, e o Messias de Israel é verdadeiro Senhor do mundo, como qualquer leitura bíblico-judaica poderia ter lhe dito. 'Eu vi o Senhor ", diz Maria aos discípulos, e a palavra" Senhor" não é apenas uma cifra, uma forma polida de denotar Jesus, o que João quer que a gente ouça é: "Eu vi o rei do Universo"," Eu vi um diante do qual as nações vão tremer”, “eu vi aquele através de quem e para quem todas as coisas foram feitas”. É por isso que, no final do capítulo, a confissão paralela por Thomé é, “Meu Senhor e meu Deus". Como Jesus deixou bem claro nos discursos de despedida, quando ele vai embora, é para enviar o Espírito, aquele através do qual o mundo vai ser julgado, em termos de pecado, da justiça e do juízo - precisamente o ponto que se faz próximo da história de Páscoa de João. Ascensão não significa ausência, significa soberania, exercida através do Espírito.


E quem é que leva esta mensagem estupenda, este anúncio primordial da nova criação, esta proclamação heráldica do rei dos reis e sua entronização iminente? É Maria de Magdala. Considerando a reputação subseqüente que a história dera a ela, vem como uma surpresa saber que, além de uma referência em Lucas, as únicas vezes que Maria Madalena aparece nas histórias do evangelho são na cruz e na sepultura, e aqui na ressurreição. E na referência solitária em Lucas, ela não é uma prostituta, ela não se identifica com a mulher que limpa os pés de Jesus com seus cabelos, ela é alguém que foi curada da terrível possessão demoníaca múltipla. Mas o choque real não é o caráter de Maria. É o seu gênero. Esta é talvez a coisa mais surpreendente sobre as narrativas da ressurreição, concedera a crenças universais do tempo a inconfiabilidade de mulheres em uma corte marcial ou quase qualquer outro lugar. É uma das coisas que absolutamente garante que os primeiros cristãos não inventaram essas histórias.


Eles nunca, nunca, nunca teriam inventado a idéia de que era uma mulher - uma mulher com um passado conhecido de instabilidade emocional, mas o ponto principal é que ela era uma mulher - a quem tinha sido confiada a mensagem de abalar a terra que Jesus estava vivo novamente, que ele estava a caminho de ser entronizado como Senhor do Mundo, e que - este é o significado do enfático "meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus" - ele estava abrindo a seus seguidores, como resultado de sua vitória sobre a própria morte, a mesma intimidade com o Pai na totalidade que tinha desfrutado por toda sua vida terrena. É Maria: não Pedro, não João, e não Tiago, o irmão do Senhor, mas Maria, que passa a ser a apóstola dos apóstolos, a primeira testemunha cristã, a primeira evangelista cristã. Isso é tão marcante, tão inesperado, tão embaraçoso para alguns dos primeiros cristãos - ele tiveram de refutar zombaria pagã sobre esse ponto - que não pode ser acidental. Ele não pode ser acidental, por João e outros escritores. E me atrevo a dizer que não pode ser acidental nos propósitos de Deus.


Algo aconteceu na renovação da criação através da morte e ressurreição de Jesus, que tem o resultado, como uma de suas múltiplas segregações, que, enquanto antes Jesus só tinha enviado homens, agora - agora de todos os momentos! - ele envia uma mulher. E, embora a igreja tenha frequentemente dificuldade - para dizer o mínimo - com a idéia de mulheres sendo chamadas para o ministério apostólico genuíno, o registro é claro e inequívoco. E deixe-me apenas dizer que uma das grandes ironias do livro bobo “O Código Da Vinci” é que, na tentativa de elevar Maria Madalena, tudo que ele faz é diminui-la, para torná-la apêndice de Jesus, sua namorada ou mesmo a sua mulher, enquanto ela era sua apóstola escolhido em primeiro lugar. Aqui, como tantas vezes, as versões revisionistas do cristianismo só conseguiram domesticar a mensagem totalmente revolucionária do Novo Testamento -não, é claro, que a igreja não foi culpada de tê-lo feito tão bem.


Mas este destaque de Maria, embora muito importante para nós assimilarmos, não é a principal coisa que eu tenho no meu coração para dizer para você neste dia de Páscoa. Tendo estabelecido que a vocação apostólica - a chamada a ser testemunha da ressurreição de Jesus - não inclui apenas as mulheres, mas começou com elas, deixe-nos em simplicidade e em oração refletir sobre a sua própria vocação, a vocação cristã primordial para dar testemunho de Jesus Ressuscitado, para anunciar que ele é verdadeiro Senhor do mundo e ir como agente dessa nova criação que começou quando ele saiu do túmulo à primeira manhã de Páscoa. A Igreja* uma e outra vez foi um lugar de vocação, um lugar onde os homens e (graças a Deus) as mulheres também ouviram o chamado de Deus e descobriram no fundo do coração que nada é tão importante como dizer sim a esse chamado. Este é um lugar onde as vocações cristãs ao ministério em tempo integral têm sido detectadas, fomentadas, nutridas, celebradas e traduzidas em vidas de fiéis e profícuos trabalhos.


Rezo para que seja assim novamente. Estamos com falta de vocações agora, especialmente entre os candidatos mais jovens. Precisamos urgentemente de homens e mulheres na sua adolescência e juventude, bem como mais velhos, para dizer “Sim, creio no Evangelho da Páscoa, sim, eu acho que, como eu contemplo o mistério da Páscoa, eu descubro que estou na presença do Deus vivo que me encontra na graça naquele propiciatório entre os anjos, sim, como eu penso que eu ouvi Deus me chamando para ir e ser um agente de sua nova criação, sim, eu percebo como eu procuro meu coração que isso é mais importante do que qualquer outra coisa”.


Novamente e novamente este chamado vem como a voz de Jesus partira em meio a lágrimas de tristeza, como aconteceu com Maria, através da dúvida e desconfiança, como aconteceu com Tomé, através do fracasso anterior, com Pedro. Novamente, portanto, a chamada ao ministério cristão em tempo integral vem, como aconteceu com Maria, como renomeado, o dom de uma identidade nova, não apenas a chamada para fazer alguma coisa, mas para ser algo, alguém, em cuja dedicação total ao evangelho o poder da ressurreição tem o escopo completo para trabalho no mundo. Eu acredito que há pessoas na Catedral, esta manhã, a quem Deus está dizendo: “Você é a pessoa, e hoje é o dia”. E se você acha que poderia ser você, então quando você vem para receber a Eucaristia que faz de um momento de abertura, a abertura para a vida de Cristo Ressuscitado, a abertura para o propósito de Deus onde quer que leve você. Deus chama pessoas surpreendentes e ele dota-lhes para fazer coisas extraordinárias. 'Ide aos meus irmãos e dize-lhes: "Eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus." Através da obediência de Maria a esse comando, o Jesus ressuscitado lançou a mensagem de Páscoa. Quem sabe o que fará com o seu?



* No original, o autor escrevera "Durham", a diocese anglicana da qual era bispo na época. O tradutor aqui se reservou a liberdade de colocar de forma a abranger as igrejas em geral pensando nos leitores.

17 de abril de 2011

Buscar primeiro... o quê?


O grande fogo de paixão que moveu a vida e o ministério de Jesus é o projeto Reino de Deus. É o núcleo de sua mensagem. Não foi a alma indo para o céu, o indivíduo indo para a igreja. Mas a inauguração do Reino; a futura consumação do Reino e o sentido de constante urgência. Manifestações do Reino. A chegada do Reino de Deus com poder.

É uma expressão que aparecia muito pouco nas Escrituras hebraicas. Mas a quê ela remetia, de qual lençol e nascente ela jorrava?


“Não serei eu vosso soberano, nem meu filho. IWHW seja seu soberano!” -Gideão em Jz:8.3

IWHW disse a Samuel: Escuta a voz do povo em tudo aquilo que te pedem. Não é a ti que rejeitam, mas a mim. Não querem mais que eu reine sobre eles”. I Sm:8.7

“Dai a Deus a força. Sua majestade está sobre Israel, sua força está nas nuvens”. Sl:68.35

“Senhor, nosso Deus, outros senhores além de Ti dominaram sobre nós, mas é unicamente o Teu nome que repetimos”. Is: 26.13

“A oração foi a seguinte: 'Senhor, Senhor Deus, Criador de todas as coisas, terrível e forte, justo e misericordioso, o único Rei, o único bom,' (...)” II Mb:1.2

Vemos em um texto antigo o profeta Isaías, em êxtase, atônito diante da visão da coorte celestial de Deus:
No ano em que faleceu o rei Ozias, vi o Senhor sentado sobre um trono alto e elevado. A cauda de sua veste enchia o santuário. (...)
Ai de mim, estou perdido!
Com efeito, sou um homem de lábios impuros,
e vivo no meio de um povo de lábios impuros,
e meus olhos viram o Rei, YWHW dos Exércitos!

Salmo 47.8 “YWHW é o rei de toda a terra.” Salmo 103.19 : “Nos céus estabeleceu YWHW o seu trono, e os seus poder real domina sobre o universo.” Em Daniel 3.33, “Quão grandiosos são os teus sinais! Quão portentosas suas maravilhas! Seu reino é reino eterno e seu domínio vai de geração em geração”.

Então, sobre as bases da idéia do Reinado de Deus vinha a concepção de que não era algo situado aqui ou ali, delimitado a um local, uma particularidade, mas algo sem fronteiras e que perpassa e abarca a criação e a própria realidade cósmica.

Com o desenrolar da história de Israel, foi se firmando a perspectiva do Reinado de Deus como uma promessa de redenção para a nação. Vejamos o profeta que continua a pregação de Isaías, no contexto em que o povo estava sob o domínio da Babilônia, anunciando para o futuro próximo um novo êxodo do povo exilado em conexão com a ascensão de Deus ao trono, de importância mundial:
Que formosos são sobre os montes os pés do que anuncia as boas novas, que faz ouvir a paz, que anuncia coisas boas, que faz ouvir a salvação, que diz a Sião:
O teu Deus se tornou rei!
Ouve, os teus vigias erguem a voz,
juntamente exultam,
porque como com seus próprios olhos vêem
o retorno de YWHW a Sião.
Rompei em júbilo, exultai à uma, ó ruínas de Jerusalém;
Porque YWHW consola o seu povo, redime a Jerusalém
(Is 52.7-9)

Já no presente, o profeta vê o mensageiro da vitória de Deus para a nação, antecipando o futuro que será consumado, a fim de lhe trazer a notícia de paz: “Teu Deus se tornou rei!” Uma palavra de encorajamento, apresentando que as tristezas daquela situação não eram nem seriam a realidade definitiva que teria a última palavra. A cena é desoladora: Jerusalém está arrasada, destruída pelos babilônios; mas a vinda do Deus vitorioso é descrita.

Em Ezequiel, algo semelhante acontece:

“Com mão poderosa, com braço estendido e com furor desencadeado, hei de reinar sobre vós; tirar-vos-ei do meio dos povos e vos congregarei dentre os países onde fostes dispersados(...) Levar-vos-ei ao deserto dos povos e ali entrarei em juízo convosco, face a face”. (Ez. 20.33-35).

Ali se apresenta que Deus congregará os que foram dispersos entre povos distantes. Estabelece um ato de libertação passional e subvertedor. E nele prova seu poder de rei e estabelece seu direito como senhor. É a esperança de um futuro que supera o presente.

Pois a Yahweh pertence o Reino: Ele governa as nações.
Sim, só diante dEle todos os poderosos da Terra se prostarão,
perante ele se curvarão todos os que descem ao pó;
Salmo 22.29-30a

Mexia de maneira avassaladora com a mente do povo os brados dos profetas sobre a restauração promovida por Deus a partir de um restante fiel, removendo a assolação promovida por, dentre outras coisas, a infidelidade anterior do povo:
Certamente reunirei todo Jacó,
Congregarei o restante de Israel, (..)
Sobe diante deles o que abre o caminho(...)
E o seu rei vai adiante deles
E YWHW estava adiante deles”
Miquéias 2.12.’Farei das estropiadas um resto,
e das dispersas uma nação poderosa.
E YWHW reinará sobre elas,
no monte Sião,
desde agora e para sempre.
Miquéias 4.7.

Restabelece-se o que foi perdido. Renova e aprofunda-se a aliança. Repara-se injustiças antigas. “O Reino pertencerá a YWHW”, não ao estado (Abdias 21). Em Zacarias 14, incorpora-se o juízo sobre os opressores, e remanescentes vindo de todos os povos adorar. “YWHW será rei sobre toda a terra; naquele dia YWHW será único, e um só será o seu nome”. (Zac.14.9; confira Deuteronômio 6.4; Salmo 22 28-30). A criação também é envolvida, e ela aclama e se alegra na redenção: “YWHW tornou-se rei – regozije-se a terra!” Sl. 97.1

Sob a subjugação e exploração do Império Romano, império este que se impunha através do Evangelho de César - a aclamação do Imperador, desfilando em carros e cavalos num cortejo e procissão triunfal, se glorificando de uma vitória de uma guerra ou uma conquista - e do discurso da filiação divina do mesmo imperador, Israel ainda considerava-se sob exílio, esperando a salvação de YHWH. É sob e por sobre toda esta expectativa e força propulsora que Jesus plasmará sua mensagem para seu tempo, para sua vida, para o povo e para o mundo. Ela alimentará suas pregações, suas curas, sua entrega até a morte.

10 de abril de 2011

Ainda que morto...


Estava, porém, enfermo um certo Lázaro, de betânia, aldeia de Maria e de sua irmã Marta. Maria era aquela que tinha ungido o Senhor com ungüento, e lhe tinha enxugado os pés com os seus cabelos, cujo irmão Lázaro estava enfermo.
Mandaram-lhe, pois, suas irmãs dizer: Senhor, eis que está enfermo aquele que tu amas. E Jesus, ouvindo isto, disse: Esta enfermidade não é para morte, mas para glória de Deus, para que o Filho de Deus seja glorificado por ela. Ora, Jesus amava a Marta, e a sua irmã, e a Lázaro.
Ouvindo, pois, que estava enfermo, ficou ainda dois dias no lugar onde estava. Depois disto, disse aos seus discípulos: Vamos outra vez para a Judéia. Disseram-lhe os discípulos: "Rabi, ainda agora os judeus procuravam apedrejar-te, e tornas para lá?" Jesus respondeu: Não há doze horas no dia? Se alguém andar de dia, não tropeça, porque vê a luz deste mundo; mas, se andar de noite, tropeça, porque nele não há luz. Assim falou; e depois disse-lhes: Lázaro, o nosso amigo, dorme, mas vou despertá-lo do sono.
Disseram, pois, os seus discípulos: 'Senhor, se dorme, estará salvo." Mas Jesus dizia isto da sua morte; eles, porém, cuidavam que falava do repouso do sono. Então Jesus disse-lhes claramente: Lázaro está morto; e folgo, por amor de vós, de que eu lá não estivesse, para que acrediteis; mas vamos ter com ele.
Disse, pois, Tomé, chamado Dídimo, aos condiscípulos: "Vamos nós também, para morrermos com ele."
Chegando, pois, Jesus, achou que já havia quatro dias que estava na sepultura. (Ora Betânia distava de Jerusalém quase quinze estádios.) E muitos dos judeus tinham ido consolar a Marta e a Maria, acerca de seu irmão.
Ouvindo, pois, Marta que Jesus vinha, saiu-lhe ao encontro; Maria, porém, ficou assentada em casa. Disse, pois, Marta a Jesus: "Senhor, se tu estivesses aqui, meu irmão não teria morrido. Mas também agora sei que tudo quanto pedires a Deus, Deus to concederá. "
Disse-lhe Jesus: Teu irmão há de ressuscitar.
Disse-lhe Marta: "Eu sei que há de ressuscitar na ressurreição do último dia."
Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá;E todo aquele que vive, e crê em mim, nunca morrerá. Crês tu isto?
Disse-lhe ela: "Sim, Senhor, creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus, que havia de vir ao mundo." E, dito isto, partiu, e chamou em segredo a Maria, sua irmã, dizendo: "O Mestre está cá, e chama-te." Ela, ouvindo isto, levantou-se logo, e foi ter com ele. (Ainda Jesus não tinha chegado à aldeia, mas estava no lugar onde Marta o encontrara.)
Vendo, pois, os judeus, que estavam com ela em casa e a consolavam, que Maria apressadamente se levantara e saíra, seguiram-na, dizendo: "Vai ao sepulcro para chorar ali."
Tendo, pois, Maria chegado aonde Jesus estava, e vendo-o, lançou-se aos seus pés, dizendo-lhe: "Senhor, se tu estivesses aqui, meu irmão não teria morrido."
Jesus pois, quando a viu chorar, e também chorando os judeus que com ela vinham, moveu-se muito em espírito, e perturbou-se. Disse: Onde o pusestes? Disseram-lhe: "Senhor, vem, e vê."
Jesus chorou.
Disseram, pois, os judeus: "Vede como o amava." E alguns deles disseram: "Não podia ele, que abriu os olhos ao cego, fazer também com que este não morresse?"
Jesus, pois, movendo-se outra vez muito em si mesmo, veio ao sepulcro; e era uma caverna, e tinha uma pedra posta sobre ela. Disse Jesus: Tirai a pedra. Marta, irmã do defunto, disse-lhe: "Senhor, já cheira mal, porque é já de quatro dias." Disse-lhe Jesus: Não te hei dito que, se creres, verás a glória de Deus?
Tiraram, pois, a pedra de onde o defunto jazia. E Jesus, levantando os olhos para cima, disse: Pai, graças te dou, por me haveres ouvido. Eu bem sei que sempre me ouves, mas eu disse isto por causa da multidão que está em redor, para que creiam que tu me enviaste.
E, tendo dito isto, clamou com grande voz: Lázaro, sai para fora. 
E o defunto saiu, tendo as mãos e os pés ligados com faixas, e o seu rosto envolto num lenço. Disse-lhes Jesus: Desligai-o, e deixai-o ir. 
Muitos, pois, dentre os judeus que tinham vindo a Maria, e que tinham visto o que Jesus fizera, creram nele. Mas alguns deles foram ter com os fariseus, e disseram-lhes o que Jesus tinha feito. Depois os principais dos sacerdotes e os fariseus formaram conselho, e diziam: "Que faremos? porquanto este homem faz muitos sinais. Se o deixamos assim, todos crerão nele, e virão os romanos, e tirar-nos-ão o nosso lugar santo e a nação."
E Caifás, um deles que era sumo sacerdote naquele ano, lhes disse: "Vós nada sabeis. Nem considerais que nos convém que um homem morra pelo povo, e que não pereça toda a nação." Ora ele não disse isto de si mesmo, mas, sendo o sumo sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus devia morrer pela nação. E não somente pela nação, mas também para reunir em um corpo os filhos de Deus que andavam dispersos.
Desde aquele dia, pois, consultavam-se para o matarem. Jesus, pois, já não andava manifestamente entre os judeus, mas retirou-se dali para a terra junto do deserto, para uma cidade chamada Efraim; e ali ficou com os seus discípulos.


Maria, Marta e seu irmão Lázaro eram amigos próximos de Jesus, que o acolhiam quando ia para Jerusalém e preferia ficar no seu vilarejo do que na cidade urbanizada. Betânia ficava pouco mais de 3 Kms de Jerusalém, no lado oriental do monte das Oliveiras. O nome "Lázaro" era uma variação de Eleazar, “Deus ajuda”. Ao comentar sobre Maria, João antecipa o relato do capítulo 12.

Jesus está na Galileia e Lázaro morre pouco antes de Jesus começar a retornar. No tempo de Jesus os judeus consideravam que a morte é completamente e irreversivelmente estabelecida a partir de quatro dias. O princípio vital pairaria três dias sobre o corpo, com a esperança de se retornar. No quarto dia, vinha a putrefação, e se passava o efeito das substâncias aromáticas. Com isto, se permitia a preparação do corpo mesmo no sábado. Havia também o período de luto conhecido como Shiv'ah, que significa algo como "sete", em que se sentava e lamentava a morte do parente por 07 dias. As pessoas sentavam-se no chão ou num assento baixo na casa do morto, abstinham-se do trabalho ordinário e diversões. Amigos iam orar e se lamentar com eles. O evangelho que mais enfatiza Jesus como Revelador do Pai, apresenta-lhe também como alguém envolvido em amizades e partilhando do prosaico da vida com os lares e famílias.

A sepultura é típica; escavada em uma caverna com um bloco de pedra – que geralmente era em forma de disco para ser rolado – que protegia o túmulo de violações, de ataques de animais ao corpo, de intempéries. Havia uma antecâmara em cujo chão o corpo era depositado. Após um ano, se recolhiam os ossos em um ossuário, que era também deposto numa fenda na parede do túmulo. Se envolvia o cadáver em longas tiras de pano, atados para mantê-lo ereto atá as maçãs do roso, fechando a boca e cobrindo a face com um sudário de até quase um metro. Se amarrava os tornozelos e prendia as mãos ao corpo. Normalmente, pelo sistema deste embrulhar, impediria um alguém reavivado de se locomover. Talvez neste caso, o corpo de Lázaro tenha sido enrolado de uma maneira não tão rígida.

Jesus corre risco indo à Judéia. Apresenta aos discípulos que está consciente de que o tempo de seu ministério está se esgotando...

Era comum que houvessem lamentadores, alguns até profissionais – incluindo flautistas, mulheres pranteadoras, em que mesmo pobres os contratavam -, mas era um traço cultural muito forte que as pessoas acompanhassem os familiares em seu pranto e dor. O termo no grego para a expressão normalmente traduzida por "perturbou-se" ou "comoveu-se internamente" tem uma conotação de grande agitação interna no sentido de raiva, irritação; Jesus está profundamente comovido ante a situação e irado diante da praga da morte que vigora, e também ante a dor que assola seus amigos. A morte é sua desafiante, e de seu ministério. É como se estivesse lidando com um quadro de fracasso. Não importa as maravilhas e sinais que tinha feito, seu amigo está morto, e é essa a realidade da vida.

Jesus chora... o termo empregado indica um derramar copioso de lágrimas.


O conselho trama para levar Jesus à morte. Esse que desafiou as autoridades, que subverte o padrão hierárquico que as visões religiosas estabeleciam, que subverte a expectativa dos líderes religiosos quanto ao destino de Deus para as pessoas e quanto aos critérios de acolhimento das pessoas por parte de Deus, que denunciou todo o sistema político-religioso manipulador, explorador, centrado e simbolizado pelo sistema sacrificial do Templo, apresentou o sinal mais perigoso: impelir as pessoas a não terem medo da morte. A morte é o instrumento de controle mais poderoso e efetivo dos poderosos, o poder sobre a vida das pessoas, o poder sobre a morte delas. O que fariam agora que as pessoas, seguindo Jesus, não teriam mais medo da morte?

Caifás honra a reputação ao ser arrogante com o Conselho [ o historiador judeu Flávio Josefo chega a escrever sobre os líderes saduceus “a conversação deles com os de seu próprio partido é tão bárbara como se eles fossem estrangeiros para com eles”, em “Guerras Judaicas” 2.8.14 } 166]. E mostra-se simbolicamente no texto qual a racionalidade de poder que se opunha frontalmente a Jesus. E ao invocar a “segurança nacional”, invoca um discurso historicamente repetido pelos tiranos para tentar legitimar um status quo injusto e silenciar os que clamam por justiça. Há precedentes no judaísmo para crenças a considerar que o sumo-sacerdote, mesmo em torpeza, tem um poder profético forte nas suas palavras [ em “Antiguidades dos Judeus” Josefo narra o caso da previsão de um sumo-sacerdote iníquo, Paddua, previndo que Alexandre o Grande não assolaria Jerusalém, e também comenta sobre o poder profético de Hircano, outro sumo-sacerdote condenável].

O maior recurso para os poderosos, políticos e econômicos, para oprimirem as pessoas, que é o medo que impõem pelo poder para a morte, é frontalmente posto em questão.

Jesus retira-se para o deserto de Efraim [ 2 Crônicas 13.19], perto de 19 Km de Jerusalém. Breve ele retornará para a Páscoa...

7 de abril de 2011

As crianças no Reinado de Deus

E traziam-lhe meninos para que lhes tocasse, mas os discípulos repreendiam aos que lhos traziam.
Jesus, porém, vendo isto, indignou-se, e disse-lhes: Deixai vir os meninos a mim, e não os impeçais; porque dos tais é o reino de Deus.
Em verdade vos digo que qualquer que não receber o reino de Deus como menino, de maneira nenhuma entrará nele.
E, tomando-os nos seus braços, e impondo-lhes as mãos, os abençoou.
O Evangelho segundo a tradição de São Marcos, 10.13-17.

Crianças: seres insignificantes. Eram um peso a mais para se alimentar e cuidar, completamente dependente dos pais. Em algumas regiões do império, eram jogadas em monturos para morrer, ou abandonadas e recolhidas como escravas. As crianças meninas então, eram muito mais indesejáveis.

Há uma descoberta arqueológica ao sul do Cairo de um escrito do século I a.C., de um emigrante que arrumar a trabalho em Alexandria, de nome Hilarião, para sua mulher Alis, então grávida: “Eu fico em Alexandria. Peço-te encarecidamente que cuides de nosso filhinho, que eu, quando receber o pagamento, lhe enviarei. Se deres à luz uma criança, caso seja varão, deixai que viva; mas se for menina, expõe-na para que morra”.

Jesus as toma como o paradigma de como se recebe o Reinado de Deus e como se entra nele: com esta postura de dependência e anelo pelo apego e acolhimento. Seria anacrônico pensarmos que a ênfase é na “inocência” das crianças, um conceito romântico. Mas dentro daquela cultura, perante a audiência do contexto, tem a ver justamente com as crianças estarem bem abaixo na escala do status quo, do que representa poder e presunção, e serem dependentes e necessitadas, e aceitarem este cuidado.