21 de fevereiro de 2010

Tudo se Perfaz

por Carlos Nejar

trecho:

IV
Devo eu dividir o amor em partes
ou dividir-me nele, compungido
nos dias que me cabe não retê-lo.
Desterra-lo de mim como um gemido
nas cordas de teus olhos, teus sentidos.

Depois ruir a dor, ruir a espera,
no que de espera, as coisas se entreabriram,
viram adultas esta deferência
de tudo andar na dor e no sigilo.

E Deus aparecer e se ocultar
quando o chamei de súbito.
Deus lutar comigo – nós ferozes,
amigos, inimigos. Nós, as vozes
que podem ecoar, se vibram juntas,
na lona de outras vozes, no manejo
de sombras e marujos.

Devo eu admitir com a volúpia,
a vintena, o disfarce dos deveres.
Mas o amor me reconhece, me fareja,
persegue o foragido.

Devo eu dividir. E que metade
saberá de sua outra? Que metade
será a corruptível, obstinada,
enquanto a seu revel, a parte pura
irá pôr-se de armas.

Devo eu dividir o amor em partes,
que o todo me refuta: vilipêndio
de augúrios e vínculos.
Solvida a ventania, designamos
o amor resistente, renitente.
Solvida a ventania, somos mares.
Solvido o mar, a praia em toda parte.
V
Não sei até onde enterrar
o amor, enterrar-me
no amor, desenterrar-me
dele e refazer depois
as noites sem revê-lo.

Não sei. Forças acodem
ou por elas perpassa
o seu tropel. O dia
é necessário. E somos
resistentes, solidários.

Tudo se perfaz, doendo,
com o mais raro apelo.
Tudo age mudando, indo
a outro amor que insiste
em ser eterno.

VI
Sei que amo
antes das coisas existirem.

A vida me define
e eu decido, existindo.

Não sei o que me fica
ou ficando, sobrepõe-se
ao desígnio.

Muito antes
de me escolher, banindo.

Sei que amo
e tudo acontecendo,
indo, vindo.

17 de fevereiro de 2010

QUARTA-FEIRA DE CINZAS

De T. S. Eliot

I

Porque não mais espero retornar
Porque não espero
Porque não espero retornar
A este invejando-lhe o dom e àquele o seu projeto
Não mais me empenho no .empenho de tais coisas
(Por que abriria a velha águia suas asas?)
Por que lamentaria eu, afinal,
O esvaído poder do reino trivial?


Porque não mais espero conhecer
A vacilante glória da hora positiva
Porque não penso mais
Porque sei que nada saberei
Do único poder fugaz e verdadeiro
Porque não posso beber
Lá, onde as árvores florescem e as fontes rumorejam,
Pois lá nada retorna à sua forma


Porque sei que o tempo é sempre o tempo
E que o espaço é sempre o espaço apenas
E que o real somente o é dentro de um tempo
E apenas para o espaço que o contém
Alegro-me de serem as coisas o que são
E renuncio à face abençoada
E renuncio à voz
Porque esperar não posso mais
E assim me alegro, por ter de alguma coisa edificar
De que me possa depois rejubilar


E rogo a Deus que de nós se compadeça
E rogo a Deus porque esquecer desejo
Estas coisas que comigo por demais discuto
Por demais explico
Porque não mais espero retornar
Que estas palavras afinal respondam
Por tudo o que foi feito e que refeito não será
E que a sentença por demais não pese sobre nós


Porque estas asas de voar já se esqueceram
E no ar apenas são andrajos que se arqueiam
No ar agora cabalmente exíguo e seco
Mais exíguo e mais seco que o desejo
Ensinai-nos o desvelo e o menosprezo
Ensinai-nos a estar postos em sossego.


Rogai por nós pecadores agora e na hora de nossa morte
Rogai por nós agora e na hora de nossa morte.


II


Senhora, três leopardos brancos sob um zimbro
Ao frescor do dia repousavam, saciados
De meus braços meu coração meu fígado e do que havia
Na esfera oca do meu crânio. E disse Deus:
Viverão tais ossos? Tais ossos
Viverão? E o que pulsara outrora
Nos ossos (secos agora) disse num cicio:
~raças à bondade desta Dama
E à sua beleza, e porque ela
A meditar venera a Virgem,
É que em fulgor resplandecemos. E eu que estou aqui
dissimulado
Meus feitos ofereço ao esquecimento, e consagro meu amor
Aos herdeiros do deserto e aos frutos ressequidos.
Isto é o que preserva
Minhas vísceras a fonte de meus olhos e as partes indigestas
Que os leopardos rejeitaram. A Dama retirou-se
De branco vestida, orando, de branco vestida.
Que a brancura dos ossos resgate o esquecimento.
A vida os excluiu. Como esquecido fui
E preferi que o fosse, também quero esquecer
Assim contrito, absorto em devoção. E disse Deus:
Profetiza ao vento e ao vento apenas, pois somente
O vento escutará. E os ossos cantaram em uníssono
Com o estribilho dos grilos, sussurrando:


Senhora dos silêncios
Serena e aflita
Lacerada e indivisa
Rosa da memória
Rosa do oblívio
Exânime e instigante
Atormentada tranqüila
A única Rosa em que
Consiste agora o jardim
Onde todo amor termina
Extinto o tormento
Do amor insatisfeito
Da aflição maior ainda
Do amor já satisfeito
Fim da infinita
jornada sem termo
Conclusão de tudo
O que não finda
Fala sem palavra
E palavra sem fala
Louvemos a Mãe
Pelo Jardim
Onde todo amor termina.


Cantavam os ossos sob um zimbro, dispersos e alvadios,
Alegramo-nos de estar aqui dispersos,
Pois uns aos outros bem nenhum fazíamos,
Sob uma árvore ao frescor do ~a, com a bênção das areias,
Esquecendo uns aos outros e a nós próprios, reunidos
Na quietude do deserto. Eis a terra
Que dividireis conforme a sorte. E partilha ou comunhão
Não importam. Eis a terra. Nossa herança.


III


Na primeira volta da segunda escada
Voltei-me e vi lá embaixo
O mesmo vulto enrodilhado ao corrimão
Sob os miasmas que no fétido ar boiavam
Combatendo o demônio das escadas, oculto
Em dúbia face de esperança e desespero.


Na segunda volta da segunda escada
Deixei-os entrançados, rodopiando lá embaixo;
Nenhuma face mais na escada em trevas,
Carcomida e úmida, como a boca
Imprestável e babugenta de um ancião,
Ou a goela serrilhada de um velho tubarão.


Na primeira volta da terceira escada
Uma túmida ventana se rompia como um figo
E além do espinheiro em flor e da cena pastoril
A silhueta espadaúda de verde e azul vestida
Encantava maio com uma flauta antiga.
Doce é o cabelo em desalinho, os fios castanhos
Tangidos por um sopro sobre os lábios,
Cabelos castanhos e lilases;
Frêmito, música de flauta, pausas e passos
Do espírito a subir pela terceira escada,
Esmorecendo, esmorecendo; esforço
Para além da esperança e do desespero
Galgando a terça escala.


Senhor, eu não sou digno
Senhor, eu não sou digno


mas dizei somente uma palavra.


IV


Quem caminhou entre o violeta e o violeta
Quem caminhou por entre
Os vários renques de verdes diferentes
De azul e branco, as cores de Maria,
Falando sobre coisas triviais
Na ignorância e no saber da dor eterna
Quem se moveu por entre os outros e como eles caminhou
Quem pois revigorou as fontes e as nascentes tornou puras


Tornou fresca a rocha seca e solidez deu às areias
De azul das esporinhas, a azul cor de Maria,
Sovegna vos


Eis os anos que permeiam, arrebatando
Flautas e violinos, restituindo
Aquela que no tempo flui entre o sono e a vigília, oculta


Nas brancas dobras de luz que em torno dela se embainham.
Os novos anos se avizinham, revivendo
Através de uma faiscante nuvem de lágrimas, os anos,
resgatando
Com um verso novo antigas rimas. Redimem
O tempo, redimem
A indecifrada visão do sonho mais sublime
Enquanto ajaezados unicórnios a essa de ouro conduzem.


A irmã silenciosa em véus brancos e azuis
Por entre os teixos, atrás do deus do jardim,
Cuja flauta emudeceu, inclina a fronte e persigna-se
Mas sem dizer palavra alguma


Mas a fonte jorrou e rente ao solo o pássaro cantou
Redimem o tempo, redimem o sonho
O indício da palavra inaudita, inexpressa


Até que o vento, sacudindo o teixo,
Acorde um coro de murmúrios
E depois disto nosso exílio


V


Se a palavra perdida se perdeu, se a palavra usada se gastou
Se a palavra inaudita e inexpressa
Inexpressa e inaudita permanece, então
Inexpressa a palavra ainda perdura, o inaudito Verbo,
O Verbo sem palavra, o Verbo
Nas entranhas do mundo e ao mundo oferto;
E a luz nas trevas fulgurou
E contra o Verbo o mundo inquieto ainda arremete
Rodopiando em torno do silente Verbo.


Ó meu povo, que te fiz eu.


Onde encontrar a palavra, onde a palavra
Ressoará? Não aqui, onde o silêncio foi-lhe escasso
Não sobre o mar ou sobre as ilhas,
Ou sobre o continente, não no deserto ou na úmida planície.
Para aqueles que nas trevas caminham noite e dia
Tempo justo e justo espaço aqui não existem
Nenhum sítio abençoado para os que a face evitam
Nenhum tempo de júbilo para os que caminham
A renegar a voz em meio aos uivos do alarido


Rezará a irmã velada por aqueles
Que nas trevas caminham, que escolhem e depois te desafiam,
Dilacerados entre estação e estação, entre tempo e tempo, entre
Hora e hora, palavra e palavra, poder e poder, por aqueles
Que esperam na escuridão? Rezará a irmã velada
Pelas crianças no portão
Por aqueles que se querem imóveis e orar não podem:
Orai por aqueles que escolhem e desafiam


Ó meu povo, que te fiz eu.


Rezará a irmã velada, entre os esguios
Teixos, por aqueles que a ofendem
E sem poder arrepender-se ao pânico se rendem
E o mundo afrontam e entre as rochas negam?
No derradeiro deserto entre as últimas rochas azuis
O deserto no jardim o jardim no deserto
Da secura, cuspindo a murcha semente da maçã.


Ó meu povo.


VI


Conquanto não espere mais voltar
Conquanto não espere
Conquanto não espere voltar


Flutuando entre o lucro e o prejuízo
Neste breve trânsito em que os sonhos se entrecruzam
No crepúsculo encruzilhado de sonhos entre o nascimento e a
morte
( Abençoai-me pai) conquanto agora
Já não deseje mais tais coisas desejar
Da janela debruçada sobre a margem de granito
Brancas velas voam para o mar, voando rumo ao largo
Invioladas asas


E o perdido coração enrija e rejubila-se
No lilás perdido e nas perdidas vozes do mar
E o quebradiço espírito se anima em rebeldia
Ante a arqueada virga-áurea e a perdida maresia
Anima-se a reconquistar
O grito da codorniz e o corrupio da pildra
E o olho cego então concebe
Formas vazias entre as partas de marfim
E a maresia reaviva o odor salgado das areias


Eis o tempo da tensão entre nascimento e morte
O lugar de solidão em que três sonhos se cruzam
Entre rochas azuis
Mas quando as vozes do instigado teixo emudecerem
Que outro teixo sacudido seja e possa responder.


Irmã bendita, santa mãe, espírito da fonte e do jardim,
Não permiti que entre calúnias a nós próprios enganemos
Ensinai-nos o desvelo e o menosprezo
Ensinai-nos a estar postos em sossego
Mesmo entre estas rochas,
Nossa paz em Sua vontade
E mesmo entre estas rochas
Mãe, irmã
E espírito do rio, espírito do mar,
Não permiti que separado eu seja
E que meu grito chegue a Ti.






Tradução de "Collected Poems - 1909/1962", Ivan Junqueira, para publicação pela Editora Nova Fronteira em 1981.

12 de fevereiro de 2010

Representações de Deus - mais que meramentes

Pra falar sobre Deus...
 (...) quem se recusa a deixar Deus limitado ao transcedente tem dele uma idéia maior do quem o limita a isso; mas quem o limita ao imanente está pensando em outra coisa, e não n'Ele.
 Martin Buber, em “O Eclipse de Deus”.


Em ciências, precisamos de analogias e modelos conceituais para tratar de domínios do real que pela própria natureza não são manipuláveis, e mais ainda dos princípios que dão coerência. São visões limitadas e seletivas, cada uma em si. Mas podem ser sistematizadas. Não podemos ter uma linguagem diretamente unívoca sobre Deus. Tal pretensão é como um sacrilégio, ou no mínimo megalomania. Vejo as possibilidades como linguagem analógica, simbólica e a evocativa.

Alguns, querendo tomar um rumo que não sabem para onde, costumam fazer discursos sobre nos despirmos das imagens gerais da tradição cristã clássica; algumas vezes com critério, mas na maioria, sendo arbitrários e superficiais.

Por exemplo, é comum sempre ouvirmos deboches infantis sobre “o homem de barba branca sentado em um trono”; geralmente contrapondo com apelações que nos evocam a imagem de uma fumaça em forma de espiral num breu total.

Hoje, vemos muitas coisas abomináveis na política, e clamamos por um aperfeiçoamento das instituições democráticas, moralização, etc. Poucos são os que afirmam que a solução seria chutar o balde e implantar algo completamente diferente. Da mesma forma, por mais que vejamos que houveram monarcas tirânicos e opressores na história, na maioria das vezes o que o povo aspirava era a um rei bom. Essa imagem evocava para eles Poder, Sabedoria, Sacerdócio, Apoio, Cuidado, Justiça, Zelo, Proteção. Hoje, está por demais distanciada de nossa cultura, apesar de que temos alguns vislumbres quando as pessoas curtem as imagens de obras como O Senhor dos Anéis, as sagas do Rei Arthur, etc., até mesmo ao repetirem os nomes e termos antigos, que ressoam poderosos...

Carecemos hoje de sondar e aprender mais a respeito de imagens antigas, até mesmo para termos critério e ponderação na hora de fazermos transposições; insisto que deve-se guardar todas, em termos mais gerais, e não abrir mão de nenhuma, pois é uma que garante que uma ou outra não enlouqueça; é todas as imagens cristãs clássicas de Deus juntas, e não em separado, que permite que uma em particular não vire um ídolo. Abrindo-se mão ou mesmo esquecendo, a que fica no lugar cairá deixando para trás cacos.

Na figura de Deus como o Rei, Altíssimo, aceito a realidade de que estou falando é de Deus, que é um Vós, e tenho que ter reverência, temor sim, não posso “precipitar-me no falar” nem no “fazer votos” e não falar seu nome em vão. Mas o mesmo Deus da nuvem de fogo é o que não estava na ventania, mas na brisa (I Reis 19.11); e é por isso que o “aparecer” na brisa torna-se algo tão especial; para um ser Deus, Deus é os dois; o mesmo Deus do Santos dos Santos, onde morre quem comparece indignamente, é o Deus que habita de tenda em tenda. O Criador pela Sua Palavra é o Espírito que atua dinamicamente; o Deus de Justiça é também Àquele cuja misericórdia é representada como as contrações do ventre da mulher – rhmjm . Para Deus ser o Deus cujo perdão extrapola o entendimento, é o mesmo Deus que odeia o pecado; para Deus ser Pai, e ser Deus, e não um pai, Deus é também mãe (Is. 49.15; 66.9-13). O Pastor do Rebanho, para ser Deus, e não um pastor divinizado, é a galinha que deseja guardar os pintinhos sob suas asas; para Deus ser Imanente, e ser Deus, tem que ser Transcendente. E vice-versa, vice-versa. Quando uma imagem é abafada ou perdida, a outra vira um semi-deus, um mito, um ídolo ou um demônio. Ou acaba.

O Senhor da História Universal é o que capacita um indivíduo a tomar decisões por conta própria. O Deus que julgará indivíduos, povos e nações, para ser Deus, deve poder ser o Deus Crucificado. Não apenas cada paralelo em particular. Tem que ser todos. É todos. Ou então é o general sanguinário, ou semi-deus confuso e apreensivo, ou criança chorona, ou o titereiro cósmico, o dínamo mecânico, o fluxo semi-consciente, o grandão fraco, a madrasta chantagista emocional, o padrasto incompreensivo...se centra-se só em algum, querendo “se despir” do resto, acaba-se sem nenhum. É todos, para ser mais que todos, porque É mais, não menos, que todos.

Aquele Deus que se envolve no tempo, não pode estar sob domínio do tempo. É Deus porque é Eterno, Supra-temporal, não precisa estar fora, mas ultrapassar o tempo e espaço. Aquele que ama, se enfurece, sofre, compadece, é, em si mesmo, auto-suficiente, mas deliberou interagir. É Deus. O “Eu Sou o que Sou”.