6 de maio de 2012

Uma nova identidade







Estamos sempre acercados pela indagação quanto a nossa identidade. O que nos distingue? Quem somos e por que somos? Isto está arraigado em questões de valor próprio, de nos apercebemos que temos uma singularidade, ou fazemos parte de algo maior mas também específico, e não somos apenas algo amorfo em uma massa de bolo.
 

O livro bíblico de Deuteronômio foi produzido em períodos de crise, após a divisão de Israel no Reino do Norte e em Judá, no sul. Possui uma base composta primeiramente no Reino do Norte, numa crise diante da perspectiva de ter sua cultura absorvida, tendo perdido o centro simbólico cultural, Jerusalém, com a divisão territorial, perigo de absorção cultural e religiosa com povos vizinhos com os quais se promoviam alianças políticas e intercâmbios econômicos...se reliam as tradições mais antigas sobre as origens de Israel com o Êxodo do Egito e a passagem pelo deserto, com novas molduras e traços, sob esta perspectiva; mais tarde foi acrescentado e remoldurado mais, tendo chegado até o Reino do Sul, e mais ainda sob o reinado do Rei Josias, após uma profunda reforma no sistema religioso do Templo, quando este Reino também passava por uma grave crise religiosa e de liderança.

Percebemos então estas formas, marcas e acentos em passagens emblemáticas como:
Agora, pois, pergunta aos tempos passados, que te precederam desde o dia em que Deus criou o homem sobre a terra, desde uma extremidade do céu até à outra, se sucedeu jamais coisa tão grande como esta, ou se jamais se ouviu coisa como esta?

Ou se algum povo ouviu a voz de Deus falando do meio do fogo, como tu a ouviste, e ficou vivo?
Ou se Deus intentou ir tomar para si um povo do meio de outro povo com provas, com sinais, e com milagres, e com peleja, e com mão forte, e com braço estendido, e com grandes espantos, conforme a tudo quanto o SENHOR vosso Deus vos fez no Egito aos vossos olhos?
A ti te foi mostrado para que soubesses que o SENHOR é Deus; nenhum outro há senão ele.
Desde os céus te fez ouvir a sua voz, para te ensinar, e sobre a terra te mostrou o seu grande fogo, e ouviste as suas palavras do meio do fogo.
E, porquanto amou teus pais, e escolheu a sua descendência depois deles, te tirou do Egito diante de si, com a sua grande força.
Para lançar fora de diante de ti nações maiores e mais poderosas do que tu, para te introduzir e te dar a sua terra por herança, como neste dia se vê.
Por isso hoje saberás, e refletirás no teu coração, que só o SENHOR é Deus, em cima no céu e em baixo na terra; nenhum outro há.
E guardarás os seus estatutos e os seus mandamentos, que te ordeno hoje para que te vá bem a ti, e a teus filhos depois de ti, e para que prolongues os dias na terra que o SENHOR teu Deus te dá para todo o sempre.
Deuteronômio 4:32-40


Ali, repensar seu lugar na História do Mundo vista a partir da vontade de Deus, a honra e a responsabilidade como tal, e o reforço a se notarem que têm marcas especiais em si e não podiam diluir isto.


Na Primeira Carta de João, temos uma comunidade com grandes problemas. O caldo cultural greco-romano tinha uma predominância acentuada de se considerar a verdadeira identidade da pessoa numa substância delineada imaterial e independente, com imortalidade inata, presa no corpo. Assim, tinha dificuldade com as heranças judaicas do cristianismo, que enfatizavam a participação da matéria e do corpo no horizonte para além da história do plano de Deus, e também na obra redentora de Jesus. Era difícil aceitar que a redenção do mundo por Jesus se deu com a participação central do seu corpo; isto deveria ser uma ilusão para os menos esclarecidos. Necessidades próprias de renovação e de redefinirem-se em seu tempo também fazia com que desdenhassem da autoridade do Ancião João. Assim, ele enfatiza a ética coerente no presente tempo, como forma de ver que tendo ela inevitavelmente que se praticar no mundo material e com o corpo, não faz sentido desvincular Cristo de sua participação material e corpórea em sua obra redentora. E que o vínculo entre si e com Cristo seria nesta participação também, retroagindo pelo agir coerente com seus mandamentos, implicando daí na observância do amor como padrão maior e enxergando como isso vincularia as gerações da igreja e como isto respaldaria sua aliança.

Meus filhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas por obra e em verdade.
E nisto conhecemos que somos da verdade, e diante dele asseguraremos nossos corações;
Sabendo que, se o nosso coração nos condena, maior é Deus do que o nosso coração, e conhece todas as coisas.
 Amados, se o nosso coração não nos condena, temos confiança para com Deus;
E qualquer coisa que lhe pedirmos, dele a receberemos, porque guardamos os seus mandamentos, e fazemos o que é agradável à sua vista.
E o seu mandamento é este: que creiamos no nome de seu Filho Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, segundo o seu mandamento.
E aquele que guarda os seus mandamentos nele está, e ele nele. E nisto conhecemos que ele está em nós, pelo Espírito que nos tem dado. 
I João 3, 18-24



O Evangelho de João tem grande probabilidade de advir dos testemunhos do mesmo João das cartas. Mas não há como se ter toda a certeza. Escrito em torno de 60 anos após a Ressurreição de Jesus, de qualquer forma, visualiza-se entre os estudos especializados que era também um ambiente em crise. Eu visualizo uma comunidade plural, com muita gente oriunda de meios diversos do judaísmo, oriundas do núcleo dele a partir do epicentro em Jerusalém e raios mais místicos de tal; samaritanos, isto, um ambiente que acolhera samaritanos; gentios. Havia diversos traumas de separação: a drástica separação da sinagoga, a partir de 70 d.C. após a assolação de Jerusalém e destruição do Templo; samaritanos que enfrentavam a rejeição de judeus e poderiam ser – e julgo, eram mesmo- questionados por judeus-cristãos de diversas partes, a própria igreja sendo questionada quanto a legitimidade de ter havido uma missão entre eles; gentios, ou seja, não-judeus (pela ótica dos judeus), estigmatizados no mundo romano. Provavelmente enfrentavam também oposição e questionamento de círculos que buscavam continuar a tradição de João Batista.

Neste Evangelho, se mostra como a nova identidade em Cristo redefinia tudo; a participação no amor dele, e o novo ambiente de vida e estar no mundo a partir do seguimento a ele, e o vínculo que se dava a partir de estarem ligados a Jesus e ao Pai pelo Advogado/Consolador, o Paracleto, o Espírito, era agora o autorreferencial, de cada um e de todos. Não mais deviam ter como parâmetro a mentalidade predominante na sociedade com aquilo que estabelecia como padrão para o valor pessoal e para se ter status; mais do que qualquer vínculo, este vínculo espiritual era agora uma porta de entrada a um novo mundo, da vida eterna com Deus.
Podemos entender

Se me amais, guardai os meus mandamentos.
E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre;
O Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco, e estará em vós.
Não vos deixarei órfãos; voltarei para vós.
Ainda um pouco, e o mundo não me verá mais, mas vós me vereis; porque eu vivo, e vós vivereis.
Naquele dia conhecereis que estou em meu Pai, e vós em mim, e eu em vós.
Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda esse é o que me ama; e aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei, e me manifestarei a ele.

João 14:15-21



E ver como foi impactante para o eunuco etíope, em Atos 8, 26-40, ao mesmo tempo advindo de traumas de desprezo por ser de um povo então há séculos desterrado e espalhado por nações, estigmatizado por muitos como feitos para serem serviçais, e ele um eunuco; mas também, ser alguém de uma posição singularmente importante na hierarquia para com sua rainha, um administrador, oficial encarregado de seus tesouros, mas também alguém privado de poder deixar descendência. Impactante para o eunuco etíope, no primeiro registro de uma conversão gentia no cristianismo, ter redefinida sua história e identidade a partir da identificação da mensagem de Jesus, Redentor, como Servo Sofredor, de Isaías 53; sua identificação em participar de Jesus e se referenciar a partir dele agora. Ele vê chegando a si a expectativa da profecia de Isaías, 56, 4-5.