16 de novembro de 2009

Finitude, Transitoriedade, Vulnerabilidade - parte II


Muito invocada é a história de Jó, na Bíblia. Ele realmente comeu o pão que o diabo amassou. Foi reduzido a uma existência miserável, sem tudo o que construíra com muito trabalho e virtude. Aí todos lembram que ele mantivera uma fé inabalável, e no final teve muito mais do que tinha antes (me deixa irrequieto neste conto – as pessoas, no caso os filhos, são substituíveis assim?).

Vamos olhar mais de perto. Fala-se no livro, aos interlocutores de Jó que debateram com ele sobre sua condição e a relação com a vontade de Deus: “ É unicamente em consideração a ele [Jó] que não vos tratarei como merece vossa insensatez, por não terdes falado de mim com retidão, como fez meu servo Jó” – 42.8.

Sim. E o que eles falaram durante este tempo?

Recorda: qual o inocente que pereceu? Onde se viu homens retos desaparecerem? Já percebi: os que forjam delitos, os que semeiam miséria colhem-na. Ao sopro de Deus perecem; ao sopro de sua narina se consomem.

Pois sim; já se viu, muitas vezes, é até freqüente, que justamente os homens retos e os inocentes perecem e desaparecem; e muitos dos que forjam delitos e semeiam miséria gozam uma vida relativamente feliz.

Outro amigo de Jó - Sofar:

Tu, quando firmares teu juízo, elevando a ele tuas palmas abertas, afasta a iniqüidade que há em tuas mãos e não habite injustiça em tua tenda.
Elifaz:

Ao Poderoso interessa a tua justiça?
Que ganha, se aperfeiçoas teu caminho?
Ele vai se defender por medo de ti, contigo entrar em julgamento?
É mesmo muito grande tua [a de Jó] maldade e não há limites para seus crimes.
Sem razão tomavas penhor de teus irmãos, tu os despojavas de suas roupas, deixando-os nus.
E assim, continuam. Na ótica deles, há uma relação linear, de causa-efeito, entre virtude religiosa e segurança e bem-estar. Logo, aqueles de “bem com Deus” se dão bem, e os que se dão mal era porque não estavam “de bem com Deus”. Assim, finge-se que não se vê que há, indubitavelmente, injustiças e absurdos na vida. Ou, por tabela, Deus passa a ser a justificativa para os absurdos e injustiças da vida. O responsável.

E Jó? O que Jó havia dito?

Realmente, dá até medo de se por no lugar dele. Alguém tão justo e virtuoso, tão temente a Deus, amigo mesmo de Deus, passando por uma experiência tão avassaladora!
Porque concede Ele a luz ao sofredor,
E a vida aos ulcerosos?
Esperam uma morte que não chega,
Buscam-na com mais ânsia que um tesouro.
Ou seja: por que Deus? Por que permitir tamanhas aflições? Porque aqueles que sofrem alem de suas medidas, sem ter como evitar ou desfazer a situação, permanecem ainda assim?
Porque pessoas morrem de fome, sede...morrem com doenças que as vão definhando? Porque não cessa a dor delas logo, mas vão se arrastando?

Muitos hoje, respondem: “é porque não são crentes. Venham pra Jesus”...aham... os amigos de Jó...

Continua:

O Poderoso cravou em mim suas flechas e o meu sopro aspira o seu veneno. Os terrores de Deus se alinham contra mim.
E ainda:

Restar-me-á ao menos um consolo,
Um quê de alegria em meio à tortura implacável: de nenhuma sentença do Santo descuidei.
O homem abalado tem direito à piedade do seu próximo; senão, abandonará o temor do Poderoso!

Ele apela:
Ah, se houvesse entre nós algum juiz, para pôr sua mão sobre nós dois! Apartaria de mim o chicote de Deus, e seu terror não me assolaria mais.
O homem justo vai mais além:

Ele priva de juízo os líderes do povo fazendo-os vaguear num caos, sem rumo. Privados da luz, vão apalpando as trevas; Deus os extravia como a bêbados.
Por que então, por que, as pessoas que fazem chantagem emocional com os problemas dos outros para que eles fiquem em suas organizações religiosas, fazem vistas grossas a isto? Vemos aí que Jó não fora o homem paciente, estóico, além de toda dor, que suportou tudo como se fosse um super-homem espiritual...

Está certo que mais a frente, aparece Deus o interpelando, pessoalmente:

Quem está a denegrir a providência com discursos sem sentido?
Onde estavas quando eu fundei a terra? Dize-me isso, sábio que és.
Pretendes mesmo anular meu julgamento, condenar-me, para te justificar?

Vemos na resposta divina não uma assertiva do gênero “eu sou grande, você pequenino, eu brinco com você, meu fantoche, como quiser”. Mas sim que Deus não se prende a racionalizações. Que ninguém pode querer enclausurar Deus num esquema mental partindo do próprio raciocínio através das coisas; mas que Deus está além de tudo, e antes de tudo, Ele é um ser pessoal, volitivo; se nem uma pessoa se esgota através das estereotipações que fazemos dela, imagine o Ser que é Mais-que-pessoal, que está além da nossa capacidade de racionalização? Podemos prendê-lo num esquema linear, de causa-efeito? Preserve o Mistério no Deus que se revela.

Ainda assim, o juízo de Deus sobre as palavras de Jó é muito menos severo do que dos amigos do homem. Jó caira nos laços da retórica deles, e acabou considerando que realmente Deus estava sendo arbitrário e estava sendo castigado sem razão. Mas O Eterno preferiu ser contestado, do que ver uma pessoa racionalizar a religião para justificar a injustiça e crueldade para falsear a realidade. Ele corrigiu Jó, mas não confirmou o veredito dos “religiosos”, de que “aqui se faz, aqui se paga”, de que tudo o que acontece pode se apoiar no caráter de Deus. Ele respondeu à interpelação sincera. A resposta de Jó que Lhe aprouve não foi “sim, eu fiz por merecer, e os outros gozam da vida boa porque são mais amigos de Deus”, mas “Pois é, eu abordei sem sabê-lo, maravilhas além de mim, que não entendia.” Ele viu que Deus está além de qualquer iniciativa de enclausurá-Lo num esquema que explica e justifica tudo o que acontece. E o encontro legítimo com O Absoluto é esse: o que reconhece a Sua santidade e Transcedência.

Qual é o pano de fundo do livro de Jó?

Israel sofrera devastações, fora assolada, por grandes impérios, e o povo deportado, os reis humilhados. Eles foram advertidos muitas vezes pelos profetas sobre seu comportamento, os pecados individuais, familiares e sociais; a busca de estarem satisfeitos consigo mesmos, achando que barganharam com os deuses, esquecendo-se e negligenciando a aliança com o Senhor absoluto, buscaram a “paz” a despeito da justiça. Foram cavando sua sepultura. E atacando os profetas que Deus enviava para evitar as tragédias e transformar a realidade.

Quando do retorno do povo à terra-natal, houvera sim contrição e uma busca de ler na história do povo como ele foi se afastando da Lei do Altíssimo. Buscaram atentar para o que os profetas falaram, e evitar fazerem o mesmo que antes. Mas depois de um tempo, foi-se longe demais. Começaram a estruturar um esquema religioso extremamente legalista, com um grande poder para os “retóricos oficiais da palavra religiosa”, e buscando aplicar uma visão religiosa a qual justificava tudo o de ruim como se fosse resultado dos pecados; começou-se com um “aqui se faz-aqui se paga” extremamente rígido, e o sol de Deus passou a nascer para poucos - em suas retóricas. O livro de Jó é um poema redigido como parte das reações que se fizera a essa teologia, hoje convencionalmente chamada “teologia da retribuição”. Esse é o quadro geral de sua leitura.

No livro, Jó ainda teve sua vida restaurada, e tudo o que perdeu ele recuperou ainda mais. Mas é este o padrão? E Jeremias, o profeta, que viveu visceral e integralmente para Deus e com Deus, a despeito de toda a oposição? Sofreu, foi também abandonado, perdeu bens, apanhou, foi humilhado, deportado para uma terra estrangeira (Egito), onde também buscava ser um agente do Senhor. Ele não teve a sorte de Jó. E os mártires do período de dominação Greco-macedônica, após Alexandre o grande, que recusavam a apostatar da fé judaica e eram torturados e massacrados?

O livro de Hebreus apresenta no capítulo 11 uma série de exemplos de pessoas virtuosas que se destacaram no mundo e realizaram prodígios. Mas depois, ele vem -vs 34:
Mas outros sofreram o esquartejamento, rejeitando a libertação para conseguir uma ressurreição melhor; outros ainda sofreram a provação dos escárnios e do chicote e das correntes e da prisão; foram apedrejados, serrados; morreram assassinados à espada; levaram uma vida errante, vestidos de peles de carneiro e pêlos de cabra; foram sujeitos às privações , oprimidos, maltratados(...)”.

E então: pessoas destacadas pela sua fé, sofreram ao extremo e morreram sofrendo. Pedro? Crucificado de cabeça pra baixo. Paulo, cortada a cabeça. O cristianismo floresceu não com apelos de que quem cresse teria todos os dramas resolvidos. Não, muitos passaram a encarar a estigmatização, zombaria, perda do status social, marginalização, perseguição, tortura, morte violenta. Não, não estavam atrás de auto-ajuda, de varinhas de condão divinas. Mas antes, eles tinham uma luz para além dos absurdos da existência. Podiam crer que a virtude é real, não uma ilusão, e com isso, muitos até abdicaram da “auto-satisfação” em nome da fé. Por isso podemos entender que na mensagem de Jesus, servi-lo é encontrar a verdadeira liberdade. Porque hoje os bonitões podem dizer que quem tem fé vai ter todas as soluções para os dramas da vida? Ah, porque se não falarem assim, “ a igreja ‘não cresce’ ”...

Não ousando pôr o pé fora da soleira da porta, suportei extremo sofrimento, vômitos constantes seguidos de dor de cabeça, inapetência e contínua insônia.
São João Crisóstomo. Letters of St. Chrysostom to Olympias.

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