16 de outubro de 2010

Sangue na Bíblia

Propusemos algumas reflexões já no nosso cantinho, “Cristianismo, Meramente”, acerca da leitura bíblica e do caráter sacro das Escrituras.

A Bíblia e o Sopro de Deus - parte I - Inspiração e Palavra

Bíblia e O Sopro de Deus - parte II - Linguagem e Revelação

Bíblia e O Sopro de Deus - parte III - Mensagem e Busca

Ler a Bíblia com Jesus?

http://defideorthodoxa-informadordeopiniao.blogspot.com/2010/03/lendo-biblia-com-jesus-parte-ii.html


Algumas vezes temos necessidade de irmos mais direto e nos debruçar sobre passagens controversas e constrangedoras, para reafirmarmos o princípio encarnacional, da Bíblia sendo divinamente inspirada e humanamente condicionada, os dois pólos em igual força. A condicionalidade bíblica não elimina seu caráter de ser testemunha da Palavra de Deus, e vice-versa.

Não temos espaço para tratar exaustivamente de diversas passagens; mas podemos pegar um exemplo dos mais controversos, examinarmo-lo rápida mas não superficialmente, e ilustrar e explicar esse princípio, podendo valer para extrapolarmos para outras narrativas e passagens.

As guerras israelitas contra as populações canaanitas, no livro de Josué.

- A leitura fundamentalista, para salvaguardar suas ênfases particulares, sacrifica até mesmo Deus no altar. Para sua leitura das “guerras de Yahweh” e do período de estabelecimento das tribos na Palestina, levam Deus a um nível moral muito mais abaixo do que o que Ele supostamente requer dos humanos. Iguala-o aos ditadores mais sangrentos, os mesmos que sofrem diversos oráculos de Juízo no "testemunho da Palavra de Deus" = Bíblia. Para eles, Deus exterminou arbitrariamente povos para promover uma limpeza étnica em favor de invasores.

Assim, eles têm de explicar o que Deus tem de tanta fissura pelos genes. Seria um sóciopata genocida. Dependente de genes – aliás, o que os genes garantem? Também, diversos escritores, como o deuteronomista, não enfatizam que Israel não possui uma santidade essencial, imanente, mas dependente da Graça?

Temos elementos para nos debruçar sobre um prisma mais condigno, fecundo, coerente, abrangente e corroborado?
Sim.

Considerando que:

  • na fuga do Egito, não havia um povo hebreu “puro” de sangue: junto com eles partiram outros povos misturados – Ex. 12.38; e na “conquista”, houvera mistura étnica que não fora nada reprovada - "dando suas filhas aos filhos deles, e seus filhos às suas filhas". Confira Js. 10:20.
  • o panorama geopolítico na região cananéia quando da chegada dos hebreus apresentava um aumento significativo da turbulência envolvendo sublevações de nações contra o Egito e reações egípcias implacáveis (como atestado na Estela de Merneptah) no período da segunda metade do século XIII adiante, com um notório enfraquecimento, substancial, do controle egípcio a partir da segunda metade do século XI; registra-se ainda turbulências internas em Canaã nesse período causadas pelos chamados habiru - semitas aparentados com os hebreus, tribos multiétnicas insurgentes. Tal instabilidade propiciava reinos buscando crescer e se consolidar e, para isso, buscando fortalecer relações tributárias expropriadoras e sendo muito sensíveis e desconfiados. Hazor, uma grande cidade, fora destruída no século XIII. 
  • a arqueologia constata que os pequenos reinados tinham cidades administrativas sobre as colinas, com fortalezas para manter o interior sob vigilância. Registra-se também movimentos de contingentes abandonando as aldeias controladas pelas forças militares em direção à terras menos férteis, na orla desértica da região montanhosa e terrenos acidentados das cadeias.
  • considerando a marca na tradição do povo sendo resistente a ter um rei, algo dissimilar para com o que se tem das culturas circuncidantes, como nos textos hugaríticos, o atestado dos pactos tribais em Juízes para se defenderem de reis, a retórica de valorização da autonomia ante administrações tributárias – resistida com guerra- como se vê em materiais textuais mais antigos, como o “canto de Débora” (Juízes 5), as diversas insurreições e guerras civis ante tentativas de administração mais central e verticalizada e controlada – a matança no recenseamento de Davi, a revolta benjaminita de Seba, a necessidade de Davi recrutar mercenários filisteus contatados na sua estadia lá, a estratégia salomônica dos trabalhos forçados monitorados por mercenários estrangeiros, a dissidência pós-Salomão, etc.
  • considerando o repetitivo resgate da memória coletiva de terem formado sua identidade a partir de uma libertação da escravidão por um império;



e muitos outros materiais, temos que:


  • o que houvera não foram “guerras de conquistas”, mas “guerras por autodeterminação e liberdade”. Aqueles povos nômades, em busca de estabelecerem seu modo de vida pautado por seu ethos e arranjo sócioeconômico de reciprocidade, transitando para o agropecuário, estavam à mercê de reinos que iriam ou massacrá-los, ou reduzi-los à uma servidão, desagregação social e fagocitose cultural, impondo uma servidão opressora de expropriação do excedente da produção. Então, a alternativa era a guerra e estabelecimento de alianças pragmáticas – o que se registra. O povo queria sua liberdade e dava sua vida por isso. Mesmo o famoso “votar em interdito” significava uma atestação de que não guerreavam para conquistar – não fazia sentido isso arrebentar com a terra e matar animais e não fazer escravos das vítimas -, nem eram guerras mercenárias para tomar coisas, mas autodefesa em estado de pânico.

Assim, emerge a imagem de que Yahweh é um Deus Libertador, e Fundamentador da autodeterminação comunitária. Inspirava a luta por liberdade e autodeterminação. A compreensão de que naquela contingência e naqueles condicionantes históricos, tal luta se dava na visceralidade marcante do rosto sangrento da história, por meio de guerras que refletiam a rotina histórica, vividamente narrado, não é um problema, antes, um contraponto para termos cuidado em aplicações automáticas e para usar como justificativa ao colonialismo, genocídio (como foi usado para se massacrar nativos nos EUA e para este invadir o México) e imperialismo. Em outros contextos, tal luta se manifesta de outra forma (e hoje, a luta se dá também impedindo que o Bush brasileiro e sua direita conservadora nos regridam no tempo nas eleições).

Mesmo o biblista evangelical Craig S. Keener tenta apresentar aos leitores a importância da compreensão da condicionalidade cultural da Bíblia:
O problema estava no fato de que, ao lerem a Bíblia, faziam-no baseados em seus próprios pressupostos culturais- o mesmo problema de todos nós ainda hoje, se não somos instruídos a enxergar para além desses pressupostos.
Todos os nossos antecedentes culturais, assim como os dados que estabelecemos como nosso ponto de partida, influem nas categorias e associações que introduzimos num texto - consciente ou inconscientemente.
(...) Se lermos o Evangelho à luz de nossa própria cultura, corremos o risco de confundir nossa cultura com a Bíblia, e impor aos outros nossa própria fórmula como condição indispensável para estarmos em harmonia com Deus.
Em Comentário Bíblico Atos do Novo Testamento.

9 de outubro de 2010

Transpondo o ministério de Jesus para o contexto atual

Recomendo o livro “Arqueologia, História e Sociedade na Galiléia: o contexto social de Jesus e dos Rabbis”. É uma excelente ferramenta para se entender a atmosfera da época, a configuração das relações sociais, as cargas conotativas que determinados termos e ações podiam carregar, cargas simbólicas, reflexos de eventos históricos na mentalidade do povo, o modo de vida, estrutura econômica, condições sociais, base material da cultura, geopolítica, etc. E isso é muito importante para quem quer transpor os cenários e seu impacto para o mundo contemporâneo, e podermos fazer um exame se a pregação e práxis tem refletido de acordo o ministério de Jesus e os primeiros cristãos, ou se estamos domesticando e criando nosso próprio cristianismo e mesmo nosso próprio “Jesus” de forma conveniente ao status quo.

O autor, Richard Horsley, apresenta um resumo ilustrativo da figura do ministério de Jesus entre as pessoas e estruturas de seu contexto, e o impacto de sua mensagem, a partir de uma aproximação histórica. Deixo um trecho que serve como ótima apresentação do que se emana, extraído de um outro livro dele, “Jesus e o Império: o reino de Deus e a nova desordem mundial”:

Recorrendo a esses valores e princípios tradicionais de relações político-econômicas justas e cooperativas, e adaptando-as, Jesus convocou as pessoas a assumirem o controle de suas vidas numa revolução social [ nota: revolução política é necessariamente tomada de poder através de um assalto; revolução social é transformação da ordem social advinda principalmente de transformação das relações sociais e econômicas]. Como Deus agia em nome delas, julgando e libertando, elas mesmas podiam agora agir para detectar comportamentos divisivos e para ® estabelecer a cooperação. Em vez de se culparem umas as outras pela pobreza que afligia a todos, elas podiam prestar socorro umas às outras, numa restauração de assistência mútua. Em vez de suspeição e rancor, podiam reacender um espírito de solidariedade. Longe de imitar as práticas exploradoras dos ricos, tirando vantagem da pobreza e desespero de outros para defraudar seus vizinhos, elas deviam renovar o compromisso com os princípios de justiça da aliança na esperança de que a ação restauradora de Deus era iminente. Em vez de imitar os padrões imperiais pelos quais os “grandes” exerciam o poder sobre outros,os que se dispunham a liderar deviam tornar-se servos dos outros.