9 de junho de 2015

Um escândalo religioso

Obra escandalosa do Mestre Mathias Grünewald, dentre os anos de 1512-16. O Retábulo de Iseiheim.

Em relevo na foto anexa, o Cristo retratado no painel do altar, com um traço marcante:
Num período turbulento envolvendo a "Guerra dos Camponeses" em terras alemãs, quando a nobreza se empenhava em sufocá-la, esta figura de Jesus em um altar na Alsácia retrata um camponês portador da doença mortal conhecida como "Fogo de Antão", que ocasionava ulcerações, purulências, fedor e dores que enlouqueciam as pessoas.

Vistos como fustigados pelo "flagelo de Deus", os camponeses, já com o ostracismo social, eram normalmente abandonados à sorte.

Mas havia religiosos antonitas que se dedicavam a cuidar destes momentos tenebrosos vividos pelas pessoas, a despeito da ideia de que esta doença era como a "lepra".



À pintura do altar se apresentavam os doentes, que viam a encarnação de Deus na Terra se identificando com seus sofrimentos; depositados aos pés do altar, confrontando as ideias de que o que viviam era castigo, viam no crucificado a desfiguração que lhes acometia.

Grunewald sofreu por ter tomado partido da causa camponesa. Ia contra o status quo.



Morreu em 31 de agosto de Deus de 1528, fabricando sabonetes e construindo canalizações de água.

15 de abril de 2015

Espiral de Desumanização


Na obra “A Desumanização”, o escritor espanhol Valter Hugo Mãe tece uma trama de carga psicológica profunda e claustrofóbica numa ilha islandesa em torno da menina Halla, que tem como estopim a morte de sua irmã gêmea Sigridur e o trauma dilacerante nela e na família. A irmã representava a completude de sua identidade, e a referência para ternura, cumplicidade, autodescoberta e mesmo a lucidez.

Objeto do descarrego da dor da mãe – que outrora era a imagem da candura -, em fúria insana que lhe busca como bode expiatório, Halla não podia encontrar apoio no pai; figura que outrora fora diligente, era quem lhe alimentava a alma de lirismo, imaginação, de possibilidades maiores de vida posto que era um erudito autodidata que lia para ela as histórias, se entregou e foi consumido pela letargia. Pra completar, Halla sofria o ostracismo, cercada de rejeição em toda a sua comunidade, estigmatizada e caluniada por pessoas que aparentemente seriam pacatas e cordiais aldeãs.

Sonhava com mundos além-mar, tinha um vento impetuoso e um fulgor em si porém. Mas neste desterro em suas próprias raízes, se envolveu com um rapaz problemático, muito mais velho, que na infância era o algoz dela e de sua irmã, para a qual prometera que nunca daria uma chance para ele. Acabou por desenvolver uma cumplicidade com ele, receber algo que lhe faltava do buraco que fora deixado por Sigridur, e descobriu o sexo sem amor até chegar ao amor sem paixão, mas um amor de entrega e refúgio.

Einar, o garoto, tinha certas desordens em organizar o raciocínio, era meio esquizoide, com grande senso de rejeição para o qual reagia como conscientemente inoportuno, era “sem graça” e de “boca podre”. Ela engravida, mas quer segredo dele, não quer que saibam que ele era o pai, ele quer. Espalha-se o forte boato de que o pai a violentara, e o pior poderia ter ocorrido se outra coisa ruim não acontecesse: descobrem o caso entre os dois. A espiral de maldade, incompreensão e intolerância aumenta, ainda mais, para com Halla, até que num ataque ensandecido a mãe lhe faz perder o bebê.
“Não é sobre o corte entre as pernas que me interessa pensar, pai. O corte entre as pernas não foi sequer capaz de me afastar a pele, porque a pele imediatamente se soube juntar e reconstruir. O que me magoa é mais violento do que isso. Porque à minha mãe posso odiar sinceramente, perdendo-lhe a ternura, como se exercesse um sentimento honesto, sem problemas maiores. O que me magoa está por definir e tem-me aqui presa quanto me obriga a fugir. De igual modo me propõe a morte e a vida ao mesmo tempo”.

Vai depois morar junto com o padrasto de Einar, o pastor da comunidade, que depois se casa com a tia de Halla que chegara da cidade, mulher dominadora.

Einar também tinha seus mistérios, lembranças reprimidas, que no convívio com Halla foram reemergindo e revelando para ambos maiores laços e histórias de maldade, desumanidade, perversão, autointeresse implacável e jogos de cinismo na vida das pessoas sob máscaras de virtude, autogratificação e vida pacata. Onipresente em toda trama e pano de fundo está uma cratera sem fundo na montanha, onde o vento sempre assoprava mostrando a sua fome de tragar almas, chamada “boca de deus”.

Com o aprofundamento do stress, insanidade e apatia em sua família, com a amargura de Halla que só tinha a ela a se apegar, Halla se sente desapegada de tudo, até do que amava, ela se desumanizara; não porque não podia mais amar algo ou nutrir bons sentimentos, mas ela se desumanizara. Perdera a ideia de alma eternamente ligada com a da sua irmã, já não sentiam que elas poderiam ainda ser gêmeas; não mais lhe guiava entre o certo e o errado. Topa uma fuga da ilha para tocar a vida no desconhecido com Einar, e na véspera da fuga combinada, tranca a casa com ele, o pai adotivo e a nova madrasta, assassinos do pai do garoto, usa os poemas do pai para tocar fogo com os três e seguiu seu caminho.


Os sentimentos que irrompem e nos acercam ao nos depararmos com os comentários de notícias na internet também pareiam com estes processos de “desumanização”. Há uma pulsão de realmente considerarmos que o empreendimento humano é um caso perdido, que a esperança deságua nas torrentes do niilismo, que por esta raça não vale a pena lutar, que estes picos de gelo no mar são icebergs inexoráveis que afundarão quaisquer engenharias humanitárias a quererem atravessar as águas caóticas, antes que se chegue à terra firme e fértil. Ou antes que se chegue ao lar.

Numa matéria simples no site da UOL, com a chamada "Perto dofim da escravidão, 60% dos negros trazidos ao país eramcrianças", 90% dos comentários em redes sociais são de fazer vomitar sangue.

Coisas como "e daí, deviam ter permanecido na África então e tudo seria melhor", "mereceram, uns venderam aos outros", "nós brancos apenas compramos a mercadoria", "eles têm que agradecer por serem trazidos e ganhado comida, para não passarem fome na África", "isso é pesquisa plantada pelo PT pra insuflar a luta de classes comunista".

Todos comentaristas "Cidadãos de Bem da família pagadores de impostos".

Parece que há uma soma de forças conectadas para nos desiludir totalmente, como a dizer “este é o verdadeiro rosto das criaturas que comerão as mãos que se lhe estendem. Somos horripilantes. Somos o seu vizinho do cumprimento simpático do elevador, as senhorinhas gentis do Pilates, somos 'os caras legais', as meninas bonitas, somos a potência daquele menininho do riso enternecedor e da menina brincando de repórter”. E sim, os soldados de Gengis Khan, a turba disciplinada no nazismo, os cientistas austeros em limpos jalecos brancos usando de cobaias humanas, os líderes religiosos instigando matanças, todos tinham e têm no dia à dia, este “rosto humano”.

Todo este desvencilhar do pudor, da alteridade, da autocrítica, todos estes demônios das Caixas de Pandora abertas nas redes sociais, todas essas “abissalidades” que se julgava superadas no empreendimento civilizatório mostrando que não só estão muito vivas, presentes, como querem agora recuperar qualquer centímetro perdido e se esbaldar sem nenhum constrangimento.

É para jogarmos a toalha e queimarmos os poemas. E simplesmente resolvermos tocar o barco até que afunde. Mas há quem esteja à espreita nisso tudo, a invocar Plutão para ditar as coordenadas de navegação no mar.


Onde vejo a resposta de Camus para o dilema que formulou no livro “O Mito de Sísifo” incompleta, e Dostoiévski ilumina essa incompletude. Dostoiévski conseguiu penetrar nas mais diabólicas cavernas do coração humano, mergulhou na abissal “boca de deus” dos pesadelos da ilha islandesa de Hugo Mãe, e sentiu o hálito do sopro insaciável.

Conseguiu retratar a sordidez presente como um rizoma na mente e comportamento humano, na sociedade e nos indivíduos, sem falso pudor. Mas ele precisava de uma inocência, de uma virtude, ainda que restasse a ela enlouquecer para não se perder a integridade no mundo insano, como com o Príncipe Míchkin em “O Idiota”, ou com a chama bruxuleante do idealismo de Stiepan Trofímovitc se descobrindo cercada de niilismos fanáticos em “Os Demônios” e tentando distinguir o que busca e o que não busca, ou como o pobre Aliócha com seu “Discurso Junto À Pedra”, em que até então, ele absorto nas sequenciais eloquências niilistas que expunham o absurdo visceral do mundo para, como Satanás reclamou a Simão, lhe “peneirar como trigo”, invoca a ressurreição para manter viva a chama do amor nos meninos invocando uma memória querida, e seguindo seu caminho, em um desfecho diferente do de Halla. Dostoiévski ainda foi mais além com o sofrimento redentor de Raskolnikov amparado pela candura de Sônia que vencera as trevas.

A questão para Dostoiévksti é que ele explorara igualmente como Camus o sofrimento absurdo, e a tormenta interior e sentimento de exílio na sociedade que Camus explorara, em personagens ácidos dos subterrâneos, como o irredimível de “A Queda” do "juiz-penitente" Jean-Baptiste; em “Notas do Subsolo”, Dostoiévski solapa mais do que Camus com toda a auto-complacência, pois seu personagem sem nome aí também se encontra não só em fluxo de consciência mas em ação, na rememória de uma trama degenerada e torpe.

A clivagem que eu vejo entre as respostas de Dostoiévski e Camus se dá quando este diz que imagina um Sísifo feliz. Este que, condenado a empurrar a pedra que no limiar de chegar ao cume da montanha sempre rola novamente abaixo, encarna o herói trágico e dionisíaco de Nietzsche, transformando o “assim foi” no “eu quis assim”, encontrando no destino sua marca impressa. Eu não imagino um Sísifo feliz a não ser que ele fosse como as figuras de “Admirável Mundo Novo”, condicionado para finalmente desaguarem o destino no empurrar a pedra, ou entregando a consciência para a fatalidade. Vejo Dostoiévksi, em uma das suas experiências mais importantes para desenvolver seu trabalho de vivissecção moral literária, na prisão, pautando que se colocarem um preso para a tarefa mais pesada que fosse, mas ele visse que estava construindo uma ponte, uma obra significativa, ele teria uma determinação em si; mas colocando-o para algo como peneirar água, encher uma pá de areia e jogá-la para o alto, ele se alienaria em demência, frustração e explodiria.



Por isso precisamos de algum significado para dar sentido ao que fazemos. Se não pensarmos um pouco que nossos trabalhos ou alguma ação ajuda a algumas fagulhas de luz, não semeia alguma beleza ou bondade ou indignação criadora, não instiga alguma força de vida e algo melhor no mundo, fica difícil resistir ao fatalismo; ainda que por vezes precisamos nos fiar numa via negativa, algo como pensar que se o mundo se queimar ou apodrecer, não foi por pensarmos que não tínhamos poder de fazer nada que contribuímos para isso, tal como muitos que o pensaram contribuíram. Mas é claro que por detrás das frustrações devemos nos perguntar se não havia também cinismo, autocompensação emocional e descargo de consciência, com uma vontade de dominação.



Cena final de "Melancolia", de Lars Von Trier
Como nos filmes de Lars Von Trier (que explorou a fundo o niilismo em "Melancolia", que desfecha com uma explosão fútil que termina com a vida na Terra, única no Universo), como no “Europa”, “Medea”, “Dançando no Escuro”, “Dogville” e “Manderlay”… os desprendimentos humanitaristas dos personagens, de Leopold Kessler na Alemanha até a Grace nos povoados, são tragados pelo que a raposa eviscerada vaticina em O Anticristo, “o caos reina”; sugados numa espiral que os leva ao limite, desarma, e “o que não tem governo nem nunca terá” desnuda neles todos os sentimentos de ódio e sadismo que condenavam antes, porque há arranjos e configurações de aparência bizarra e
ineficiente que são formas eficazes encontradas para lidar com forças desconhecidas presentes mesmo na trajetória que formou os sentimentos dos humanitários. “Pois é, sra. Grace, é fácil insultar os negros [quando ela diz que eles escolheram e mereceram a escravidão, frustrada por não se acomodarem aos seus planos civilizatórios], mas não está esquecendo algo? Vocês nos criaram”.Em muitos filmes dele, humanitarismo, as piedades religiosas, racionalidades modernas como a
psicanálise, tentaram adestrar as forças caóticas, para submeter os outros à servidão, e terminaram por serem reviradas do avesso e vítimas de si próprios.



Não temos como “domesticar” e as pessoas. E nem temos que nos impor este fardo frustrante de convencê-las. Muitos referenciais nossos podem nos desiludir. Mas também muitos gigantes monstruosos têm pés de barro, e muitas pessoas também apenas estão com medo ou frustradas. Com esta resposta inconclusa de quem não quer ser o humanitarista redentor que vai curar a excruciante ninfomania de Cloe, apenas quero desafogar o peito rezando para que não nos desumanizemos.

Bansky, "O lançador de flores"

_ Digo isso por receio de que nos tornemos maus – prosseguiu Aliócha -, mas por que teríamos de nos tornar maus, não é verdade? Sejamos primeiros e antes de tudo bons, depois honestos e já depois – não nos esqueçamos nunca uns dos outros.
(...)
_Bem, agora encerremos os discursos e vamos às exéquias dele. Não vos perturbeis porque comeremos panquecas. Porque é uma tradição antiga, eterna, e nisso há algo de bom – riu Aliócha. _Então, a caminho! E agora lá vamos nós de mãos dadas!
_ E sempre assim, de mãos dadas para o resto da vida! Hurra, Karamázov! - gritou Kólia mais uma vez entusiasmado, e mais uma vez todos os meninos secundaram sua exclamação.















13 de janeiro de 2015

Sorrisos do Canto Primordial - Notas de uma escaldante tarde qualquer no centro urbano


No cotidiano por entre o concreto e o asfalto, entre as buliçosas gentes distinguimos em meio a gastura da fuligem, sussurros soprados aos ouvidos.

Perambulando compenetrado em sensações vagas de nossa finitude quando temos de atravessar ruas do centro da cidade grande, como a Rua 04 de Goiânia altura com a 06 (ou 07), topei às 13:30h de uma terça-feira com uma cena excepcional: um caminhão da limpeza urbana municipal, atravessado à rua em suas ocupações com o que vai sobrando do nosso dever de existirmos e sermos percebidos, tendo em pé sobre seu para-choque traseiro quatro garis, mulheres com risadas tão abertas, francas e descontraídas que me chamaram a atenção. Notei os batons, brincos, penteados, cuidados de si e afirmações devida lavando estereotipagens que se poderiam impor sobre elas, que as roupas alaranjadas passaram a brilhar como enfeites de Natal.

Mas a energia dessa história toda jorrou de suas risadas, tão abertas que pareciam os arco-íris conduzidos por bolas de sabão brilhando com os feixes do sol.

O contágio foi imediato, o sorriso brotou em mim como nascente no campo, desconhecendo o motivo da alegria delas que talvez poderia ser os equilíbrios inexplicáveis da natureza imediata após o Big Bang, talvez um fenômeno que só o coração delas captavam a contra gosto do ruído dos carros e da agonia dos transeuntes. Ou algo mais natural e igualmente radiante, na macia e acariciante radiação daqueles risos que nem mesmo aquele cinza urbano eclipsa.

Em meu contentamento acenei com a cabeça para elas com o sorriso contínuo espontâneo. Quando passei, ouvi pela diagonal da orelha direita a observação de uma: “Pode sorrir, gente, porque isto não se costuma ver nunca não”.

A seguir fui fulminado com por um raio, primeiramente por um momento de vácuo de estupor no pensamento; logo após viera o som do trovão,intrepidamente veio de súbito a recordação de um trecho mordaz de uma das mais eletrizantes crônicas do G. K. Chesterton, “Os passarinhos que não cantam”:

E no final e minhas reflexões não consegui de fato chegar mais longe do que o sentimento subconsciente de meu amigo do banco –que há algo espiritualmente sufocante sobre nossa vida; não apenas sobre nossas leis, mas sobre nossa vida. Os bancários não têm canções, não porque são pobres, mas porque são tristes. Marinheiros são muito mais pobres. Enquanto ia para casa passei por alguma pequena construção metálica de algum tipo de religião, que era sacudida com gritos como uma trombeta que se rompe com seu próprio som. Eles estavam cantando, de qualquer forma; e tive por um instante uma impressão que já tivera frequentemente antes: que entre nós o sobre-humano é o único lugar em que se encontra o humano. A natureza humana está sendo caçada e escondeu-se num santuário.

Este final me remete – assumo a responsabilidade disso - ao corcunda Quasímodo, resgatando a formosa cigana Esmeralda da turbe furiosa e dos soldados do reino, levando-a lépido para onde recebiam um “salvo-conduto”, aos brados na torre: “Santuário! Santuário!”.

Fotografia de Phillip Lorca diCorcia,
do trabalho "Reflections oh the
Streetwork"
Prosseguindo no dever de andar pra frente, preocupado e alegre,sapecado de calor mas tendo recebido certo frescor no peito, na Rua 15, talvez já sem sorrir eu experimentava uma felicidade vívida e mais comum que não é de filme da Sessão da Tarde ou das que as autoajudas preconizam, uma mulher à minha frente voltava a cabeça aturdida e preocupada. Segurou sua bolsa firme no corpo e retesou o pescoço à frente e o olho atrás. Julguei que pelo bem-estar geral de todos que seria mais saudável que eu atravessasse a rua.