26 de setembro de 2009

Porque Jesus foi Crucificado?

Por Larry Hurtado

Tradução livre:

Uma afirmação central nos Credos Cristãos Tradicionais é que Jesus foi crucificado “sob Pôncio Pilatos". Mas a maioria dos cristãos tem somente um sentido vago do que a frase representa, e a maioria dos não-cristãos, provavelmente, não conseguem imaginar porque é uma parte tão integral da fé cristã. "Crucificado sob Pôncio Pilatos" proporciona à história de Jesus sua mais óbvia ligação com a ampla história humana. Pilatos era uma figura histórica, o procurador romano da Judéia; ele foi referido em outras fontes da época e ainda mencionado em uma inscrição encontrada no local da antiga Cesaréia em Israel. A ligação da morte de Jesus com Pilatos representa a insistência de que Jesus era uma pessoa real, não apenas uma figura de mito ou lenda. Mais do que isso, a frase também comunica de forma concisa algumas especificidades muito importantes deste evento histórico.

Por um lado, a declaração afirma que Jesus não se morreu simplesmente; ele foi morto. Esta foi a morte de um jovem na dor e humilhação pública, não um fim pacífico para uma vida longa. Também, essa não foi uma ação de uma turbe. É dito que Jesus fora Jesus executado, não linchado, e pela autoridade governamental romana devidamente nomeada da Judéia. Houve uma audiência de algum tipo, e os oficiais responsáveis pela ordem civil e pela paz e justiça romana condenaram Jesus. Isto significa que Pilatos encontrara algo muito grave que justificasse a pena de morte.

Mas este foi também um tipo especial de pena de morte. Os romanos tinham uma variedade de meios para realizar uma execução judicial, alguns, tais como a decapitação, eram mais rápidos e menos dolorosos do que a crucificação. Morte por crucificação era reservada para crimes e classes particulares. Aqueles com adequada cidadania romana deveriam ser imunes à crucificação, embora pudessem ser executados por outros meios. A crucificação era considerada em geral como não só assustadoramente dolorosa, mas também a mais vergonhosa das mortes. Essencialmente, foi reservada para aqueles que eram percebidos como levantando suas mãos contra o domínio romano, ou aqueles que de alguma outra forma pareciam desafiar a ordem social - por exemplo, os escravos que atacavam seus senhores, insurretos, como os judeus crucificados pelo general romano Vespasiano, na rebelião judaica de 66-72.

Assim, o crime mais provável pelo qual Jesus foi crucificado é refletido nos relatos dos Evangelhos na acusação colocada à cruz de Jesus: "Rei dos Judeus". Ou seja, ou o próprio Jesus afirmou ser o Messias Real Judaico, ou seus seguidores manifestaram esta reivindicação. Isso lhe obteria a crucificação pelos romanos.

Com efeito, um critério que deve ser aplicado mais rigorosamente nas modernas propostas acadêmicas sobre o "Jesus histórico" é o que poderíamos chamar de a condição de “crucificabilidade": Você deve produzir uma imagem de Jesus que dê conta dele ser crucificado. Estimulando as pessoas a serem como “um” umas para as outras, ou advogando uma interpretação mais flexível da lei judaica, ou mesmo condenando o Templo e os seus dirigentes, nenhum desses crimes é provável que levasse à crucificação. Por exemplo, o historiador judaico do primeiro século, Flávio Josefo, fala de um homem que profetizou contra o Templo. Ao invés de condená-lo, o governador decidiu que ele era inofensivo, embora um tanto desequilibrado e irritante aos sacerdotes do Templo. Então, depois de ser flagelado, ele foi liberado.

A alegação de messias-real, portanto, ajudar a explicar por que Jesus foi executado, mas seus seguidores não. Estes não eram uma célula de conspiradores. O próprio Jesus era o problema. Além disso, Pilatos recebera alguma oposição séria por ser um pouco violento demais na sua resposta aos judeus e samaritanos que simplesmente se demonstrassem vigorosamente contra suas políticas. Pilatos provavelmente decidira que publicamente executando Jesus o entusiasmo messiânico de seus seguidores iria expirar sem afligir os órgãos judaicos mais do que o necessário.

Naturalmente, os Evangelhos igualmente implicam autoridades religiosas judaicas - especificamente, os líderes sacerdotais, que administravam o Templo de Jerusalém sob concessão do governo romano. Muitos estudiosos, incluindo E. P. Sanders em “Jesus e o Judaísmo”, concluíram que os líderes do templo estiveram provavelmente envolvidos em Jesus chamando a atenção de Pilatos. Afinal, o sumo sacerdote e seus séquitos mantinham seus discursos através da demonstração de lealdade contínua a Roma. Se eles julgaram que Jesus representava uma ameaça para o domínio romano, eles eram obrigados a denunciá-lo. Portanto, não é tão difícil conceder uma certa probabilidade para a afirmativa dos Evangelhos de que as autoridades do Templo eram, pelo menos em parte, motivadas por um ressentimento da crítica de Jesus da sua administração do Templo, como pode ser refletido nos relatos de Jesus capotando as mesas dos cambistas que operavam nas instalações sob licença do sumo sacerdote. Mas os líderes judeus não crucificaram Jesus. "Crucificado sob Pôncio Pilatos" aponta para onde esta responsabilidade cabe, com a administração romana.

É bastante claro o que São Paulo quis dizer ao afirmar que "a pregação da cruz é loucura" para a maioria das pessoas de sua época. Como Martin Hengel mostrou em “Crucificação no Mundo Antigo e a Insensatez da Mensagem da Cruz”, os escritores romanos da época consideravam a crucificação o pior destino imaginável, uma punição de vergonha inominável. Celso, um crítico romano do cristianismo, ridicularizou os cristãos por tratar como divino alguém que tinha sido crucificado. Um grafite anti-cristão do segundo século de Roma, bem conhecido entre os historiadores que estudam o período, mostra um homem crucificado grosseiramente elaborado, com uma cabeça de burro, em que está uma figura humana, e sob este um escárnio rabiscado: "Alexamenos adora o seu Deus" [Alexamenos sebetai ton theon].

Havia, em suma, pouco a ganhar na proclamação de um Salvador crucificado nesse cenário em que a crucificação era uma realidade terrível. Alguns cristãos tentaram evitar a referência à crucificação de Jesus, enquanto outros preferiram um ou outro cenário alternativo. Em uma versão, em um texto cristão apócrifo, os soldados confundiram um observador com Jesus, crucificando-o em vez disso, enquanto Jesus é retratado como rindo de sua insensatez. Esta idéia é também provavelmente refletida mais tarde na tradição muçulmana em que uma pessoa da multidão foi erroneamente crucificada enquanto Jesus escapou. Muitos muçulmanos devotos acreditam que Jesus fora um profeta verdadeiro, então é simplesmente inconcebível que Deus tivesse permitido que ele morresse uma morte vergonhosa. É evidente que, pelo menos alguns dos primeiros cristãos se sentiram da mesma maneira.

De fato, a crucificação de Jesus representava um amálgama de problemas potenciais para os primeiros cristãos. Isso significava que, na origem e no coração de sua fé havia uma execução de estado e que seu reverenciado salvador tinha sido julgado e considerado culpado por um representante da autoridade imperial romana. Isso provavelmente fez um com que uma boa quantia de pessoas se questionarem se os cristãos não eram algum movimento seriamente subversivo. Foi, pelo menos, não o tipo de grupo a que prontamente recorreriam aqueles que zelassem por sua posição social.

A crucificação de Jesus representou uma colisão entre Jesus e a autoridade governamental romana, uma óbvia de responsabilidade para os esforços cristãos para promover sua fé. No entanto, curiosamente, de alguma forma eles conseguiram. Séculos de tradição cristã subseqüente têm feito a imagem do Jesus crucificado tão familiar que a ofensividade do evento que retrata foi quase completamente perdida.

23 de setembro de 2009

A Radicalidade de Jesus

Anacronismo é empregar/interpretar termos ou pensamentos com base em significados com uma grande distância temporal ou cultural entre si que os faz diferir sobremaneira.

Constantemente, na interpretação bíblica, é o que se faz. Projetar sobre tempos remotos discussões e preocupações que não havia ou não faziam parte do pensamento da época. Com isso, muitas vezes a mensagem fica “desencarnada”, ou se acomoda a exigências subjetivas. Geralmente o anacronismo, em relação ao evangelho, se dá no sentido de promover uma transformação de cunho individualista, exotérico, uma “espiritualização” etérea, ou para atender necessidades e interesses tendenciosos bem diferentes da perspectiva neotestamentária.

Por exemplo, o próprio termo “evangelho” [evangelium] possui um sentido que raramente é evocado. Naqueles tempos, era comum haver a divinização da figura do rei. No Império Romano, o culto oficial era a divinização do Imperador, imbuindo-o de evocações deificadoras. Se pregava que ele era, por direito, soberano sobre a vida e a morte, o provedor e doador. Em grandes conquistas bélicas, havia um cortejo real, comemorando e proclamando as “boas novas” e exaltando o imperador. Daí, a imagem cristã para o papel de Jesus Cristo o Senhor: o evangelho [boas novas] de Jesus Cristo!

Muitos acham e pregam que na passagem do evangelho de São Marcos, capítulo 12.13-17, versa-se sobre “separação entre religião e Estado”. Anacronismo puro. Estas duas esferas, a política e a espiritual, eram inconcebíveis como duas esferas estanques no ideário de então, e também, na pregação de Jesus e seus discípulos. Vamos recapitular: aramara-se uma cilada. Com a pergunta sobre os impostos, Jesus se comprometeria respondendo diretamente que se pagasse e que não se pagasse. Eles queriam um motivo para lhe prender. Se recusasse, não só seria preso como seus discípulos seriam perseguidos e seu movimento poderia dispersar-se. Se capitulasse, seria uma decepção para seus discípulos e o povo ouvinte. Porquê?.. Se sua mensagem fosse puramente “espiritual” nos termos de hoje, porque simplesmente falar “sejam bons cidadãos pagadores de impostos” seria uma decepção? É o que não se responde...

Por que me quereis armar um laço? Mostrai-me um denário... ... De quem é esta imagem e a inscrição? De César... ... Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

Ao mostrar a inscrição da moeda, há um importante detalhe que não é investigado cuidadosamente. Nas moedas, havia a inscrição: DIVI F, quer dizer, DIVI FILIUS ou FILHO DE DEUS.

Então, o que Jesus mostrou a multidão e aos desafiantes fora que o imperador estava buscando pra si uma prerrogativa que não tinha: a de ser o Filho de Deus, de ser Deus na Terra. E com isso deslegitimando sua exploração. De fato, Jesus se esquivara de ser acusado de pregar abertamente ali uma sublevação, o que comprometeria sua pregação e obra no Templo completamente com tal perspectiva. Mas não capitulara. Para bons entendedores, pingo é letra. E ali, todos entenderam: havia uma exploração firmada num discurso ilegítimo, de deificação do Império e de seu representante. Ele queria o que era de Deus.

Não se prega com isso uma “Clerocracia”, o que seria igualmente anacrônico numa outra direção. Mas nos remetemos a uma outra frase de Cristo, referida no evangelho segundo São Mateus, 6.21- "Porque onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração". Aonde está a nossa segurança? Há algo neste mundo que legitimamos com algo que usurpa a primazia de Deus? Será que nos apegamos demais ao status quo a ponto de querer legitimá-lo com discurso deificador? Há algum “imperador” hoje em nossa vida, ou no mundo, buscando ocupar o lugar de Deus? Podemos justificar a exploração, injustiça social, marginalização sócioeconômica de povos, grupos e indivíduos, com base em “é assim que tem de ser”, ou “é a vontade de Deus”?

Jesus está sendo “radical” demais para você, amante da paz?

13 de setembro de 2009

14 de Setembro - Santa Cruz

Dentre as imagens expressadas e suscitadas pela tradição cristã, a respeito da obra de Jesus na Cruz, uma das mais imponentes que ressoam ao longo da história é a do Christus Victor. Ela ressalta que, ao contrário do que era de se esperar, a Cruz representa uma vitória de Deus, a vitória de Jesus.

Ele, de condição divina não considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente, mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo, tomando a semelhança humana. E achando-se em figura de homem, humilhou-se e foi obediente até a morte, e morte de cruz!

Por isso Deus o sobreexaltou grandemente e lhe conferiu o Nome que é sobre todo o nome, para que, ao nome de Jesus, todo joelho se dobre, nos céus, na terra e debaixo da terra e, para glória de Deus, o Pai, toda língua confesse: Jesus é o Senhor!
Carta de São Paulo aos Filipenses, 2:6-11

Certamente, a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós, que somos salvos , poder de Deus.

Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios, 1:18

(...)Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.
Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios, 1:25


Inverte-se a lógica de dominação humana. O “Ser Deus” do Altíssimo chacoalha as manifestações da pretensão de “ser como Deus” do coração humano, de “atingirmos por nós mesmos os Céus” e ocupar o lugar de Deus.

Há intuições e sentimentos fortes na consciência e no inconsciente humano de uma opressão, além de nossas faculdades, que nos aprisiona e impede que o que há de melhor em nós prevaleça. Impõem-se forças espirituais conscientes e más, impõem-se as engrenagens históricas, sobre indivíduos e grupos; o pecado; má orientação moral advinda de compulsões internas, alienação existencial, psicológica, social, espiritual.

A importância da doutrina da vitória de Cristo na cruz, Sua morte para daí advir Sua ressurreição, propicia que por meio dessa vitória, por meio dEle, sejamos libertos destas forças, pois garantira a deslegitimação do domínio delas, e pela fé o poder de Deus se manifesta nos elevando a além do domínio de ação destes poderes. A Esperança Cristã reside na manifestação plena do poder de Deus, subvertendo toda a opressão; e tal processo está em curso, antecipado pela vitória de Jesus na cruz. Nos concede um novo panorama de vida e existência. Aí encontramos o significado na vida.

O "Filho de Deus" não seria o Imperador, com seu pretenso poder sobre a vida e a morte, ao qual a vida dos colonizados era como massas para moldar e bater ao seu bel-prazer; mas que viraria pó como todos. O Filho de Deus é um sábio carpinteiro crucificado, que vencera a morte".

Quando Jesus transformava pecadores em bem-aventurados, tratava-se de pecadores de fato; mas ele não fazia primeiro de cada ser humano um pecador. Ele os chamava para longe do seu pecado e não para dentro do seu pecado. Com certeza, Jesus solidarizou-se com as pessoas na periferia da sociedade humana, prostitutas, publicanos, mas de modo algum apenas com elas, e sim porque quis solidarizar-se com os seres humanos em geral. Jesus nunca questionou a saúde, a força, a felicidade de um ser humano como tais e as considerou uma fruta podre; do contrário, por que então ele teria restabelecido a saúde dos doentes, devolvido a força dos fracos? Jesus reclama para si e para o reino de Deus toda a vida humana em todas as suas manifestações”.

Dietrich Bonhoeffer, em “Resistência e Submissão”, editora Sinodal, pg. 459.


(...)e, despojando os principados e as potestades, publicamente os expôs ao
desprezo, triunfando deles na cruz.
Carta aos Colossenses, 2.15.

8 de setembro de 2009

Deus - Indomesticável II

Retomando nossa reflexão no texto anterior, deixamos essa música magnífica de Sinead O'Connor, baseada na Canção do Vinhateiro do livro do profeta Isaías, capítulo 5. O enredo dessa passagem bíblica é instigante. Uma festa religiosa, com grande comemoração popular, em que haviam procissões alegres rumo ao Templo. O profeta se junta e começa a entoar uma canção que servia de embalo às pessoas. A nação eleita era uma vinha especial, plantada diretamente de Deus. Todos embalados com a música suave aos ouvidos. De repente, o pasmo, vem o questionamento cáustico: o que o vinhateiro deve fazer com a vinha bem plantada e cultivada que só produzia frutos ruins?

A letra da música não é para ser imiscuída em questões geopolíticas atuais sobre o Estado de Israel. Ela universaliza uma passagem de um contexto particular, que por si própria levanta o problema universal, e toca ácidamente nas concepções de religião como um anestésico, um chá tranquilizante, que nos deixa acomodados e dá harmonia à sociedade. E o que é pior, quando se transforma numa ideologia chauvinista para grupos, povos, instituições. O "Israel" do texto poderia ser transposto hoje à toda a família humana.



Tradução livre:
Se tivesses uma vinha
em um monte frutífero
E o cercasse e o limpasse
de até todas as pedras
Plantarias nele
com a mais seleta videira
E construirias uma torre
e uma prensa para fazer o vinho
E acharias que iria produzir uvas doces
e ele desse somente uvas selvagens?

O que dirias?

Jerusalém e Judá
Sede os juizes para quem eu apelo
Entre mim e minha vinha.
Isto é o que o Deus diz.

O que mais eu poderia ter feito
Que eu não fiz no vinhedo ?
Por que quando eu o pedi por doçura
Traz somente amargura?

Pois a vinha do Senhor dos Exércitos
é a casa de Israel;
E os homens de Judá,
Seu jardim de delícias.

E Ele procura por justiça mas contempla opressão
E espera pela igualdade mas ouve um pranto.
Jerusalém e Judá
Esta é resposta de Deus.

A desgraça virá àqueles que acumulam casa sobre casa
Que ajuntam campo sobre campo
Até não deixar lugar para ninguém
Mas habita na terra,
Oh na terra!

E a desgraça virá àqueles que chamam o mal de bem
e o bem de mal

Quem apresenta trevas como luz e luz como trevas
Quem apresenta como doçura
as coisas que são amargura.

Pois a vinha do Senhor dos Exércitos é a casa de Israel
E os homens de Judá, seu jardim de delícias.

Oh! Que meus olhos eram uma fonte de lágrimas
Que eu pude chorar pelo meu povo pobre

Para todas as botas carimbadas com violência,
Para cada manto enrolado no sangue
Jerusalém e Judá,
Eu ia chorar se eu pudesse.

4 de setembro de 2009

Deus - Indomesticável


Teologia não é rede que se teça para apanhar Deus em suas malhas, porque Deus não é peixe, mas Vento que não se pode segurar...
Rubem Alves em "Sobre deuses e caquis", prefácio a "Da esperança", Papirus.

Uma reflexão antiga, que me vai e que me vem, me tomou por inteiro e desde então não me deixa, enquanto lia o livro “Os Demônios”, de Dostoievsky. O cenário se deu na Rússia dos fins do séc. XIX, carregada das discussões quanto ao estado e futuro da nação, os grandes conflitos ideológicos, o niilismo, a repressão governamental e os movimentos subversivos, muitos terroristas, o eclipse da fé, o cinismo moral e social, as condições materiais terríveis da maioria da população, e a fé vaga de que havia uma marcha na história que conduziria à solução pela emancipação do homem, cada um buscando interpretá-la à sua maneira.

Entremeados no romance ocorrem diálogos em que alguns viam a necessidade de revivificar o espírito do povo russo, e se mencionava Deus. Crendo ou não crendo nEle (quase todos os personagens não criam), se falava da necessidade de exaltar o “Deus Russo”, que serviria como instrumento de uma aurora resplandecente do país sobre o mundo, como o baluarte da realização civilizacional. O “Deus” que seria a projeção maior do espírito pan-eslavista...

Algum tempo antes, seu conterrâneo escritor, Leon Tolstói, em "Guerra e Paz", apresentou um cenário de uma missa feita no contexto da guerra entre a Rússia e a França e a invasão de Napoleão para conquistar seu país, onde o sacerdote rezava assim:

Senhor Deus todo-poderoso, Deus da nossa salvação! Concede a Tua graça e a Tua misericórdia às Tuas humildes criaturas e ouve a nossa oração, amerceia-Te de nós e tem piedade.

O inimigo enche de confusão a Terra e quer transformar o mundo num deserto. Este inimigo levanta-se contra nós. Homens criminosos reuniram-se para destruir o Teu bem, para arrasar a Tua fiel Jerusalém, a Tua Rússia bem-amada, para conspurcar Os Teus templos, derrubar os altares e profanar os Teus santuários. Até quando, Senhor, até quando triunfarão os pecadores? Senhor todo-poderoso! Escuta-nos a nós, que Te imploramos: ampara com a Tua força o nosso mui piedoso imperador autocrata Alexandre Pavlovitch. Lembra-Te da sua lealdade e da sua doçura, recompensa-o pela bondade com que ele nos protege, a nós, a Tua Israel bem-amada

Dostoievsky enxergava muito... enquanto escrevia sobre o "Deus russo", em "Os Demônios", enxergava além e “aquém” também - dos recônditos da alma, nada lhe escapava, ele via o “universal” de nosso interior. E essa é uma tônica. A idéia de “Deus” usada como mobilização da massa e dos indivíduos, para conferir-lhes uma entrega última a um propósito, que freqüentemente é capturado por discursos chauvinistas, por particularismos essencialistas de povos, nações, grupos, poderes, projetos mesquinhos, projetos de subjugação, domínio, conquistas pessoais...

Houvera o “deus branco” do apartheid, que justificava o status quo, e o dos queimadores de negros nos EUA. O deus “macho”, justificando o machismo. O deus “pan-europeu”, justificando os que promoviam genocídios sobre populações aborígenes. O “deus anti-semita”, e o deus “semita contra o resto”. O "nosso" deus, capturado em nossas redes. O deus "plutocrata" e/ou "demófobo" que legitima a injustiça social. Não é esse o segredo da magia, da feitiçaria? Buscar truques e jogos nos quais se envolvem as divindades e os poderes espirituais sirvam de joguetes para nós? Não estaria nisso a imagem simbólica da serpente, que sempre ilustrou a feitiçaria, na narrativa do Éden?

Uma vez discutia com uma pessoa a respeito da “Teologia da Prosperidade”, aquela que associa fé com ganho pecuniário, em que Deus está preso por certas regras a fazer barganhas com as pessoas para ficarem ricas, e o projeto de vida de fé é um projeto individualista a ficar rico, custe o que custar...a pessoa me respondia “pois o MEEEEEUUU [acentuadamente mesmo] Deus vai me dar, etc., etc.”.... Queremos ter, e o "nosso" Deus é o instrumento. Queremos vingança, e o "nosso" Deus é o instrumento. Infelizmente, na Reforma Protestante, o mote “deixai Deus ser Deus” não foi captado a fundo o suficiente, algumas vezes até distorcido (Deus sendo adorado como um tirano caprichoso, em alguns segmentos) pois muitas vezes a idéia de Deus foi usada para vindicar os crescentes sentimentos nacionalistas na aurora do Estado Moderno, para exaltar os soberanos, o deus da raça tal, do povo tal... isso faria até pensar que a Parábola do Bom Samaritano foi uma inserção tardia na Bíblia feita por um grupo de direitos humanos recente...

Sempre fora uma grande pedra de tropeço na Europa. Sua história é marcada por uma grande segmentação de nações e etnias com um histórico de lutas e massacres mútuos, que até hoje deixam marcas, traumas, sentimentos íntimos de busca de vingança, grandes rancores. E vemos na história o “deus dos bretões”, “deus dos goidels”, “deus dos saxões”, “deus dos francos”, “deus dos germanos”, etc., etc., cada um reivindicando pra si a vitória que Jesus venceu na cruz. O contrário do que era pra ser, com o Deus do Universo que é o Deus Triúno cristão, a fé que deveria servir não para apagar o patriotismo, o amor ao seu povo, mas para universalizar o amor, e deslegitimar todo o racismo, xenofobia, demonização do “outro”, todo o chauvinismo, etnocentrismo, pois em Cristo fora feita uma Nova Aliança aberta a toda a humanidade.
Não há mais judeu nem grego; já não há mais nem escravo nem homem livre; já não há mais o homem e a mulher; pois todos vós sois um só em Jesus Cristo.
São Paulo na Epístola aos Gálatas, 3.27.

Na Primeira Aliança, freqüentemente se vê os profetas advertindo o povo hebreu a não se fiar nesse chauvinismo religioso. Proclamavam que a Aliança não fora firmada por que tinham algum mérito essencial, intrínseco, porque conquistaram o direito, mas por Graça de Deus, de acordo com um plano de abençoar o mundo. Os profetas denunciavam a violação da Aliança, usando muitas vezes a imagem da prostituição, apresentando como o povo adulterava traindo seu casamento com Deus, e em prol de uma religião de acomodação social e de “paz” a justiça e a equidade com os mais vulneráveis socialmente eram deixadas de lado. E não eram por se julgar “o povo”, em contraste com os outros povos “impuros”, que essa situação seria sustentável.

Elie Wiesel, escritor judeu, fora direto ao ponto nevrálgico, nesse trecho do livro “Homens sábios e suas histórias” :
“Uma sociedade que violenta a humanidade de seus componentes mais fracos está legando, se não produzindo, o próprio infortúnio, a própria maldição”.

Nos tempos de Jesus, tal advertência reverberava na pregação de João Batista:
Produzi, pois, frutos que testemunhem vossa conversão; e não comeceis a dizer a vós mesmos: 'Temos por pai Abraão’. Pois eu vos digo, destas pedras aqui Deus pode suscitar filhos para Abraão.
Evangelho segundo São Lucas 3.8.

Enxergo que o ápice da denúncia e deslegitimação do “chauvinismo religioso” está no livro do profeta Amós. Amós dizia de si que “não era profeta, ou filho de profeta”, ou seja, não era proveniente de nenhuma escola religiosa, não participava dos rituais dos grupos que incluíam “transes” e catarses religiosas (vide I Samuel, 10.10-12), mas era um homem do povo, humilde, um vaqueiro e agricultor. Mas Deus escolheu a ele, e não a um “religioso”; encontrou-o na sua condição, vocacionando-o a apresentar à nação sua deteriorada condição espiritual, suas injustiças e iniqüidades, e apresentar a leitura visceral dos tempos que viviam e a catástrofe que advinha por causa de suas ações e suas condição. No capítulo 9, ele argumenta justamente de acordo com a frase de Rubem Alves que abrira nossa reflexão: Deus não pode ser domado, não pode ser aprisionado, Ele é Universal e Soberano. Até que vem o ápice:
Para mim, não sois vós como os filhos dos Kushitas, ó filhos de Israel? - palavra do Senhor. Acaso não tirei eu Israel da terra do Egito, Os filisteus de Kaftor e Arâm, de Qir?

Não há como deixar de estremecer diante de tal palavra tão afiada, tão arguta, tão explosiva, que nos desarma e e faz pasmar...

Os Kushitas são os povos de origem dos etíopes. Atravessaram um período difícil de uma diáspora. Seu reino de Napata, que cuja independência fora conquistada dos poderosos egípcios, experimentara seu auge após uma grande unificação no século VIII a.C., chegando a exercer poder sobre territórios do Egito. Durante o século VII seu reino desmorona, até ser arrasado no início do VI. Um enredo bastante similar ao que seria o de Israel...

Deportados de sua terra, espalhados no mundo, referidos como servos de trabalhos mais rústicos (alguns ascendendo até a postos importantes de eunucos de cortes). Esse povo, então, com qual o o povo israelita não sentia vínculo algum, possivelmente até tinha ojeriza, era igualmente valioso aos olhos de Deus. Deus nutria por eles igual afeição.

E continua. O que era o Êxodo? Era o acontecimento que definia a identidade do povo hebreu. Era a ele que se reportavam para saber quem eram, de onde vieram. Alegravam-se nele que o Deus Absoluto ouvira seus sofrimentos e atentara para sua opressão, e efetuara sua libertação com atos especiais únicos na história, triunfando sobre todos os poderes,religiosos, políticos, sociais, do império egípcio. Eles viam sua distinção dentre todos os povos do mundo ali. E o que Deus proclama? Que efetuara atos libertadores também para com outros povos. E cita justamente povos odiados, inimigos históricos dos israelitas aos quais eles deviam pensar que eram povos ignorados, ou até desprezados por Deus. E sim, eles também tiveram seu Êxodo, sua Libertação, os filisteus e os arameus, de seus cativeiros...e por trás de tudo...

Deus, o Absoluto.

Na verdade, eu me dou conta de que Deus é imparcial e de que, em toda nação, quem quer que o tema e pratique a justiça é acolhido por Ele.
Discurso de São Pedro à casa do centurião Cornélio, em Atos 10.34-35.