21 de março de 2010

Sobre ritos e sacralidade

Acordando, pois, Jacó do seu sono, disse: Na verdade o SENHOR está neste lugar; e eu não o sabia. E temeu, e disse: Quão terrível é este lugar! Este não é outro lugar senão a casa de Deus; e esta é a porta dos céus.
Então levantou-se Jacó pela manhã de madrugada, e tomou a pedra que tinha posto por seu travesseiro, e a pôs por coluna, e derramou azeite em cima dela. E chamou o nome daquele lugar Betel; o nome porém daquela cidade antes era Luz.
E Jacó fez um voto, dizendo: Se Deus for comigo, e me guardar nesta viagem que faço, e me der pão para comer, e vestes para vestir; e eu em paz tornar à casa de meu pai, o SENHOR me será por Deus; e esta pedra que tenho posto por coluna será casa de Deus; e de tudo quanto me deres, certamente te darei o dízimo. Gênesis 28.16-19

Em toda a história, em todo o mundo, é universal dentre os povos alguma visão ou visões de esferas e hierarquias de sacralidade no microcosmo e macrocosmo abrangido por suas culturas. O Sagrado se apresenta por lógicas próprias, que transcendem os mecanismos e processos regulares da vida. Na hierarquia, há os contrastes, com diversas nuances, entre o sagrado e o profano. Em graus variáveis, diferentes âmbitos dão maior acesso ou maior distância para com o sagrado, manifestando-se por mediações destes lugares, ritos, sendo assim, níveis diferentes de pureza. Constatamos bosques sagrados, mananciais, montanhas, locais de cultos construídos, etc., etc. Objetos ou materiais purificadores, especialmente água e fogo. A impureza podia ser transmitida por contato físico, e expurgada por contato físico.

No recorte bíblico da religião hebraica, temos estes exemplos, destacando os Montes Sinai, Horeb, o Santo dos Santos no Templo. Locais em que a presença de Deus é mais imediata. Também impureza, ou seja, o afastamento da presença mais direta do sagrado, é expressa no consumo de determinados animais (Lv. 11), contato com animais mortos(Lv 11.24-28), secreções dos órgãos genitais ( Lv. 12.1-8; 15.1-32). No judaísmo do Segundo Templo, podemos ver a extensão dessa dinâmica pureza-impureza para esferas e atitudes comuns da vida privada e social em detalhes. A temática dominante para essas práticas era a discussão quanto a levar uma vida mais próxima de Deus, mais harmônica com o Senhor. Sobretudo quando se tinha uma auto-imagem de pessoa, comunidades e povo sacerdotal, ou seja, aqueles que intercedem pelo mundo a Deus e por intermédio de quem Deus busca se manifestar no mundo. E assim se constituía as tradições da vida religiosa cotidiana.

Uma leitura pouco cuidadosa leva à impressão de que Jesus se opunha em si a essa preocupação, encarando-a cinicamente como fútil e para bobocas hipócritas. Às vezes chega-se a projetar uma figura de Jesus como desconectada e em oposição a todo judaísmo de seu tempo. Nada mais falso. Jesus participava do culto nas sinagogas, ia às festas, valorizava as ceias comunais, usava vestes típicas dos homens piedosos e dedicados à reflexão teológica, como o tzit-tzit – algo que passa batido pelas traduções da passagem da mulher curada de hemorragia em Marcos 5.25-31, como “franjas” ou “bordas”.

O que Jesus criticava era a racionalização, ou o uso como desculpa, desses costumes, para a pessoa ter uma atitude de desamor e conveniência com a injustiça, ou ser chauvinista e demófoba com arrogância para com as pessoas simples, ou os desamparados e segregados dentre o povo, com os “menores”, os estigmatizados. Ele conclamava que a busca da pureza era boa, o zelo para com viver em harmonia com Deus. Porém, devia começar por uma novidade de vida, por misericórdia e empatia; a pureza advinha de uma busca de relacionamento pessoal íntimo com Deus que se manifestava numa disposição interior, e não se fiava em ritos e atitudes exteriores habituais que serviam para criar um coração fechado e amargo; pois com isto, na verdade se abdicava e se perdia do ser sacerdotal, pois Deus não está aí, Deus é “indomável”, “indomesticável”. Uma “religião do coração”, não no sentido sentimental apenas, pois o “coração” para os judeus na Antiguidade era o centro da vontade e determinação da pessoa; ser “o coração de algo” era ser o âmbito vital, norteador. “Cabeça”, por sua vez, costumava significar “fonte”, ou até mesmo o que hoje às vezes se emprega – fulano é o coração do time – ou seja, o núcleo referencial.

Por isso hoje, os cristãos não devem perder a grande riqueza da tradição histórica na liturgia, nos símbolos, rituais, rezas, cores, sabores, vestes, estética, hinos, arquitetura, arte sacra. O quanto está ficando insípida muita área da igreja que deu de ombros pra isso tudo! O quão raso e feio fica quando isto acontece! O foco é não deixar que estas coisas esteja, por si, em dessintonia com a disposição interior. A ordem é começar de dentro e exteriorizar, e estes símbolos e riquezas da tradição são repletos de significado a respeito da atitude interna do membro do cristianismo; não se pode é deixar que tomem o lugar desta atitude.

Nenhum comentário:

Postar um comentário