8 de outubro de 2009

Paz, não como o mundo


Em todos os tempos, a religião possui uma função importante para a vivência humana, considerando o ser humano em sua integralidade. Cumpre uma função social, de dar coesão, motivações para as ações morais, força de vontade para além das dificuldades e absurdos da vida, a função estética, e para cada pessoa transcender a banalidade do cotidiano.

Contudo, uma tônica na pregação profética no Antigo Testamento, na Bíblia Hebraica, é a de que a religião não caia e se esgote apenas nisso. Não seja um sedativo para as consciências, não seja apenas um analgésico, para que o culto não caísse apenas numa ocasião social, nem fosse instrumentalizado para a busca de satisfações individuais, ou para alimentar o nacionalismo ou “harmonia social” apagando as injustiças e cobrindo o desamor. Deus não se deixava vender.


Dize a todo o povo da terra e aos sacerdotes: quando jejuastes, com lamentações, no quinto e no sétimo mês, e isso durante setenta anos, foi acaso para mim que praticastes esse jejum? Quando comíeis e bebíeis, não era para vós mesmos que comíeis e bebíeis? Não é esse, porventura, o sentido das palavras que o SENHOR proclamara por intermédio dos antigos profetas, quando Jerusalém vivia na paz e na tranqüilidade, cercada de suas cidades, e o Négueb e a Baixada eram habitados?
A palavra do SENHOR veio a Zacarias nestes termos: _Assim falava o Senhor de todo poder: ‘Pronunciai julgamentos verazes e que cada qual use de lealdade e misericórdia para com seu irmão. Não exploreis a viúva e o órfão, o migrante e o pobre; que nenhum de vós premedite fazer mal a seu irmão’. Recusaram-se, todavia, a dar atenção; deram de ombros e endureceram os ouvidos para não ouvir. Tornaram seu coração duro como diamante, para não ouvir a instrução e as palavras que o SENHOR de todo poder, lhes dirigira pelo seu Espírito, por intermédio dos antigos profetas. Entrou, então, em grande cólera o SENHOR de todo poder. E declarou, em conseqüência, o Senhor de todo poder: ‘Como eu os chamei e eles não me escutaram, assim eles me chamaram e eu não os escuto’.
Zacarias 7.4-13.

Esta passagem se dá num contexto em que as autoridades políticas, religiosas e do povo, consultam ao profeta Zacarias, que provavelmente exercia a função de sacerdote, a respeito de questões rituais, como manter ou suprimir os jejuns comemorativos. Era véspera do ano de dedicação do Segundo Templo do judaísmo, após o regresso do povo da Pérsia, aonde estava exilado. Era a perspectiva do novo começo na terra, e assim a função cultural e sociológica da religião era premente para reorganizar a nação.

Como ele mesmo ressalta, não foi o primeiro a advertir as pessoas. Foi algo constante na história. Mas o povo teimava. Queriam paz para a consciência, sem chatices de mudanças de atitudes que incomodassem sua busca prioritária por sossego e acomodação social auto-indolente, e querer levar vantagem em tudo sem ceder pensando no bem para o semelhante, buscando fugir, insensível, dos problemas do mundo, correndo atrás apenas da própria felicidade, sem pensar na pureza do comportamento e consciência para com Deus, na vontade própria, incorruptível, dEle. É a vivência de fé, com o apelo à conversão interior, que explode tanto com a displicência quanto com o legalismo.

Vamos a duas advertências mais antigas:


O jejum que prefiro, acaso não é este: desatar os laços provenientes da maldade, desamarrar as correias do jugo, dar liberdade aos que estavam curvados, em suma, que despedaceis todos os jugos?
Não é partilhar teu pão com o faminto?
E ainda: os pobres sem abrigo, tu os albergarás; se vires alguém nu, cobri-lo-ás: diante daquele que é a tua própria carne, não te recusarás.
Isaías 58.6-7.

Ainda mais:

Desejará o SENHOR milhares de carneiros? Quantidades de torrentes de óleo? Sacrificarei meu primogênito pela rebeldia? O filho de minha carne pelo pecado que cometi? Foi-te dado conhecer, ó homem, o que é bom – o que o SENHOR exige de ti: nada mais que respeitar o direito, amar a fidelidade, e aplicar-te a caminhar com o teu Deus.
Miquéias, 6.7-8.


(...)
O vosso amor é como a nuvem
da manhã,
como o orvalho matinal que passa.
Por isso os feri por intermédio dos profetas,
trucidei-os pelas palavras da minha boca;
e meu julgamento jorra como a luz.
Pois é o amor que me agrada, não o
Sacrifício;
e o conhecimento de Deus, eu o prefiro
aos holocaustos.
Oséias, 6.4-6.


Por isso é muito cômodo para a pessoa forjar um ídolo: a relação é meramente utilitarista. E com certos rituais, ou costumes certos, pode-se mesmo manipulá-lo, esperando os benefícios enquanto o compra. Tira dor de cabeça, trás de volta a pessoa “amada”, dá dinheiro (10 x !!)...

Agora, viver pela justiça e amor, num mundo decaído, acarreta riscos. E é para essa relação que O Incondicional, O Eterno, chama a pessoa. Por isso é mais cômodo a pessoa dizer que crê numa divindade diáfana, sem Poder para intervir. Uma divindade vaga, sem Presença, à qual não se tem com que se preocupar. Não se presta contas. Não “incomoda” a consciência alertando para os estados de rebelião para com Ela. Não tem Juízo. E damos desculpa de que “não quero sentimentos de culpa”. Na pregação profética, Deus tem vontade própria. E para Ele, não vale nada um culto bonito, com tudo esquematizado, todo o ritual cumprido, que não acarrete mudança de vida; conversão do coração, atitude interior. Que não se concretize em relações de justiça na sociedade, sem esnobismo para com ninguém, mas com equidade. Que o relacionamento com o SENHOR seja de busca pela Sua Santidade, para receber dEle Seu amor e com isso viver Seu amor.

Pois Deus não precisa de que adoremo-Lo. Ele deseja compartilhar de Si, até mesmo elevar Suas criaturas, criadas à Sua imagem e semelhança, através da comunhão consigo e do relacionamento sincero e reto com Ele, a uma “divinização”. Com a adoração, a pessoa se abre para crescer e caminhar com Deus, e Ele compartilha com ela de sua Natureza. A alegria com o bem, a felicidade, e o ódio ao mal e tristeza ante a injustiça com Sua criação. Sem isso, ir à igrejas, participar de rituais, seguir liturgias, fazer aclamações, orações eloqüentes, são atos ocos.


A obra da justiça será a paz:
O empenho da justiça, calma e segurança para sempre.
Isaías, 32.17


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