2 de agosto de 2009

A Mensagem das Origens - Quem somos nós

O relato das “Origens” no livro de Gênesis, na Bíblia, contempla os capítulos de 1 a 11. Contudo, não é apenas um texto, mas uma justaposição de mais de um texto editado em épocas diferentes. Possuem paralelos significativos com diversos textos importantes de povos do contexto histórico-geográfico, como o Épico de Atrahasis, Enuma Elish, a Epopéia de Gilgamesh, a Lista dos Reis Sumérios, e o Gênesis de Eridu. Como podem ver, não são poucos. Textos que têm a criação seguida por uma catástrofe e um novo começo. Entretanto, também se apresentam significativas diferenças em termos estilísticos, ênfases, visão de mundo, esperança, teologia, moral.

O que isso significa? Por um lado, que não podem ser meras cópias diretas. Por outro, que as tradições do livro de Gênesis, são bem antigas e remetem-se a tempos remotos. Podemos dizer que partilham das convenções narrativas vigentes e de um substrato cultural comum com outros mitos do Oriente Próximo ( diversos povos espalhados no mundo possuem mitos correlatos, e muitos mesmo crêem até num tipo de "queda" dos ancestrais ante seus deuses, p.ex. entre os Karen, na antiga Birmânia, hoje Mianmar, ante o Deus Supremo Y'wa, e que esperavam por um messias; mesmo entre os Tupis, no Brasil, e seu relato do Grande Dilúvio, bem como na Ilha de Páscoa, entre os Astecas, Maias, Mapuches, até na China, com notórias similaridades). Sendo assim, os textos não “caíram de pára-quedas” para os hebreus, mas estão enraizados na história.

Neste prisma, podemos ver com certeza que não podem ser tomados como se fossem narrativas literais descrevendo cientificamente a história da criação e registros históricos frios em formas de crônicas. Mas, a rigor, não se pode de maneira alguma dizer que são alegorias. Grandes estudiosos da crítica da forma, bem rigorosos, já mostram que não, são narrativas, feitas sim, por compilações, mas são narrativas - embora esteja errado quem diz que não há alegoria na Bíblia, os profetas usavam largamente a alegoria. São histórias de tempos remotos, contadas de forma que o significado é transformado em significante, ou seja, os meios e conteúdos da mensagem tomam forma dos elementos da narração.

Do período da nossa história escrita propriamente dita, nós só temos acesso a uma ínfima parte. Muito foi perdido, e quanto mais longínquo no tempo, mesmo com a arqueologia, menos temos; temos migalhas. E muito do patrimônio desse conhecimento tradicional dos povos tem, aceleradamente, sido perdido também. Mais ainda se formos pensar quanto a toda a história humana! O ser humano passou a maior parte de sua vida aqui no mundo sem a escrita! Ah sim, perdemos muito, muito... Geralmente se tenta reconstituir com o "método da analogia", retroprojetando no passado o que se processa numa escala de tempo mais próxima, em condições parecidas. Mas isso é limitado, pequenas variações iniciais nos fenômenos mudam todo o decurso deles. Alguns acontecimentos podem alterar todo o decurso da história, e no desenvolvimento de um processo podem ocorrer eventos que, se pudéssemos regredir no tempo, não encontraríamos a situação decorrente de uma regressão puramente linear; são irreversíveis.

Então, muita coisa se perdeu. Mas pode (acredito que deve) ter acontecido eventos que mudaram completamente o curso da evolução humana, que estão perdidos e inacessíveis a nós. Muita coisa ficou marcada nos signos humanos, canções, contos, mitos, expressões e modos de expressão, figuras de linguagem, etc. Muita coisa foi repassada dos pais aos filhos desde a infância às rodas de fogueira, danças, conversas ao rio, ao “fogão”, às atividades artesanais, etc. E muito ficou introjetado no inconsciente, se constituindo num material psicológico herdado.

Cada povo têm esses mitos de fundação consignados com sua auto-identidade. Os hebreus trabalharam em cima desse substrato partilhado ali para isso, entender a relação das origens com sua condição e caminhada. Os antropólogos estudam comunidades tradicionais e suas ligações com a terra, e vêem como os povos costumam legitimar sua ligação com “seu chão” guardando tradições sobre o primeiro antepassado a chegar no lugar; um desbravador, um viajante cansado que ali resolveu “apear”, um escravo fugido, ou que conquistara a liberdade ou a comprara; não somente indivíduos, mas mesmo grupos humanos. No relato bíblico, os hebreus remeteram à ligação do ser humano com a própria Terra, apontando que ele não é um ser originalmente concebido para ser alienado de um sentido de “pátria”, alguém deslocado, mas para ser alguém com raízes. O nome do “primeiro homem”, Adão - Adâm, está ligado a Adamah, ou seja, tirado do solo; a mulher, Eva - Ishshá, "humana”, que remete ao húmus, indicando aí a terra fértil. Mas esse elemento nas narrativas das comunidades tradicionais vai mais além também: essa origem de seu ancestral é marca primária de suas identidades, relacionada com a ocupação de seu chão; isso nos proporciona uma leitura impactante de Gênesis: nossa origem fundamental é em Deus, e nossa identidade funda-se em sermos originados de um propósito especial do Criador.


Compartilhamos com tudo o mais nossa origem como “pó”: tudo à nossa volta provém intimamente da poeira cósmica. O relato ainda expõe uma imagem do ser humano sendo incumbido de um grande privilégio sobre a criação, ao mesmo tempo em que uma grande responsabilidade. Temos responsabilidade sim sobre o que fazemos com a criação, e enquanto Gênesis expõe que não somos apenas um ser a mais dentre todos os outros, temos de forma especial em nós o “sopro” divino, somos criados à imagem e semelhança de Deus, também. E esse mandato não para abuso e arbitrariedade, mas cuidado, cuidado e convivência.

Também aprendemos dali do texto a sabedoria de que somos antes de tudo indivíduos, não apenas um naco de uma massa de multidão, ou outras abstrações coletivas. Mas não indivíduos completos e perfeitamente autônomos: somos seres relacionais, nossa natureza é de necessitar de semelhantes para nos complementarmos; mais que indivíduos, somos pessoas. Podemos “passear a sós”, ou seja, necessitamos de momentos para nós mesmos, sozinhos, mas não vivemos para isso e apenas nisso somos tão somente metade de um. Um mais um é mais do que dois; um mais um é um. A sabedoria do relato também não mostra a mulher sendo criada dos pés do homem, mas da costela, ou seja, os dois estão lado a lado, a relação básica é de alteridade.

Também vemos em Gênesis o que decorre da alienação ante a Deus, à fonte de nosso Ser: a morte. A partir de quando ouvimos as forças que tentam ocupar o lugar do Altíssimo (por quais interesses a "serpente" agira?), querendo nós mesmos ocuparmos o lugar dEle, tudo o que quer usurpar o que compete somente à Deus, nossa existência não é mais uma aventura rumo ao Grande Encontro com a Fonte, permeada por um relacionamento autêntico, ainda que longe de ser o pleno, com Ele; mas um fardo, em que passamos a busca-lO tateando, e não mais naturalmente ouvimos o Seu chamado; ficamos como entre quatro paredes num quarto escuro, sem saída; a morte passa a ser um encontro rumo à maldição. Não podemos encarar um ao outro como somos, mas sentimos vergonha, estamos alienados um do outro também, estamos alienados de nós mesmos. Nossa relação com a Criação passa a ser orientada pela luta, confronto.


Advém a inveja, incompreensão, fratricídio. Nossos empreendimentos se dão para preencher a lacuna do Absoluto, o vazio de Deus em nós, e procuramos chegar aos Céus por nós mesmos, compensar nossa alienação com megalomanias; o que era para ser um empreendimento criativo de realização de nossas potencialidades, passa a ser sede de poder.


O ensino destes relatos de Gênesis, é parte essencial da visão do cristianismo, por uma ligação coerente com as respostas gerais da fé cristã a quem nós somos, o que há de errado, quais as perspectivas de para onde vamos, o sentido de viver, o drama que envolve o cosmos e a história.

Destarte entendemos que somos uma criação de Deus, compartilhando a natureza material comum a toda a Criação, mas dotados de atributos e responsabilidades especiais pelo Criador, envolvidos num drama histórico-cósmico. Entendemos que estamos numa situação na história que não derivou apenas da evolução natural das coisas. Que não somos o que poderíamos, ou mais, deveríamos ser, poderíamos estar numa condição muito melhor. Que estamos numa condição alienada de nosso potencial, e a Quem o devemos; alienados de Deus. E isso gera uma angústia diante da realidade da morte e a perda da segurança de continuar a vida nAquele que a doou.

Mas Deus não nos deixou abandonados a nós mesmos. Pois assim a Desesperança seria a realidade definitiva, teria a palavra sempre atual e final. Aniquilar-nos-íamos e pronto. Parte daí a busca do ser humano por parte de Deus, a despeito do próprio ser humano. O arco-íris brilha ante a chuva.

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