17 de agosto de 2009

Pecado - condição


Somos muito mais inconscientes de nós mesmos do que poderíamos ou gostaríamos de imaginar. Por isso Freud se referia ao nosso 'Eu' como um palhaço tolo que se intromete em tudo no circo para que os espectadores pensem que é ele quem dirige tudo o que ocorre.

Paulo Sternick, psicanalista, articulista do "Diário de Teresópolis"

A "noção de pecado" na fé cristã é herdada do judaísmo; neste, o termo empregado era 'hatta'a', com o sentido básico de "errar um alvo ou um caminho", e também o termo 'awon', com o sentido de "transgressão". O pecado é tanto assim uma ruptura no relacionamento com Deus, como algo que impede esse relacionamento devido ao fato de que desfigura a imagem e semelhança de Deus no homem.

No Koiné, o grego neotestamentário, empregavam-se 'hamartia', da onde vem a disciplina teológica "hamartiologia". O sentido é similar ao do hebraico; era empregado para quando atletas ou soldados falhavam em seu desempenho, fracassavam. Combina também com outro termo empregado, parabasis, que é "ultrapassar o limite permitido, transgressão". Há também o termo ‘hubris’, que é soberba, auto-elevação, indicando no contexto a disposição e intenção de assumir e ocupar a posição que é só de Deus, a grande megalomania.

Com Santo Agostinho, veio a doutrina do "pecado original" propriamente dita, em que ele postulava que a humanidade estava sob juízo, compartilhando a culpa do primeiro pecado que afastou o homem do caminho de Deus. Contudo, antes dele, se via já na patrística, entre os “Pais da Igreja”, o conceito de "queda", diferente por não postular que todos estavam "incriminados" na culpa pelo pecado dos primórdios da humanidade, mas sob o efeito dele, que fez a condição humana decair diante do propósito de Deus para ela, se desviar de seu propósito e potencial. Toda a humanidade se encontra numa condição existencial de propensão para o pecado, em todas as dimensões do seu ser, vontade, passionalidade, intelecto, intuição, pois o “eu” que integra todas elas está corrompido.

A diferença nesse caso é que num ponto de vista, o ser humano já se encontra numa condição sob juízo desde o nascimento; compartilha a responsabilidade desde os primeiros pecados. No outro, o compartilhamento está somente na condição de estar desviado de sua potencialidade; só se encontra sob responsabilidade por cada pecado que comete, não pelo pecado em geral; contudo, essa condição o torna propenso a "errar o alvo", ele não estaria mais de acordo com aquilo que deveria e poderia ser.

Agostinho, na sua formulação, tinha em mente a preocupação com certos grupos com os quais estava polemizando, os pelagianos e os donatistas. E a história mostra que os pensadores, quando em epicentros de controvérsias acirradas, ao mesmo tempo em que são mais criativos, costumam também recrudescer muito nos seus pontos. Inclusive, antes do volume X de sua monumental obra “Cidade de Deus” , até cerca de 430 d.C., ele professara a visão comum da patrística.
De fato, o pecado é tanto um mal voluntário que não é pecado de forma alguma, a menos que seja voluntário” (“Sobre a religião verdadeira”, in: A select library of the Nicene and post-Nicene fathers of the church. Org., Philip Shaff. Grand Rapids, 1956, vl2, p. 14)

Quem quer que seja que tenha feito qualquer coisa má por meio de alguém inconscientemente ou incapaz de resistir, este último não pode por meio de algum ser condenado justamente”(“Duas almas, Contra os Maniqueus” 10.12.in: A select library of the Nicene and post-Nicene fathers of the church. Org., Philip Shaff. Grand Rapids, 1956, vl2,).
Logo, ou a vontade é a causa primeira do pecado, e nenhum pecado será causa primeira do pecado” (O Livre-Arbítrio, 3.49, trad., org., introd. Notas: Nair de Assis Oliveira, ver. Honório Dalbosco. São Paulo, Paulus, 1995).

Com o tempo, o conceito de “pecado original” ganhou abrangência abarcando, em muitas referências, a primeira concepção apresentada de "queda".

Na Liturgia Anglicana, reza-se uma confissão de pecados constante no Livro de Oração Comum, numa prece que contempla praticamente tudo o que apresentamos até aqui:
Deus Onipotente, nosso Pai celestial, reconheço e confesso meus muitos pecados, que tenho cometido por pensamentos, palavras, ações e omissões, contra ti, contra o meu próximo e contra mim mesmo. Concede-me verdadeiro arrependimento e, por amor do teu Filho Jesus Cristo, perdoa-me todo o passado e dá-me a graça de te servir com alegria, para honra e glória do teu santo Nome. Amém.


Podemos então entender quando o cristianismo nos informa que “o salário do pecado é a morte” (Rm. 6.23). No hebraico, o termo “morte” - mawet - significava primeiramente “separação”, a separação entre nós enquanto seres orgânicos do nosso elemento transcedente, espiritual - refraim. Nos alienamos assim primeiramente de Deus e da realidade espiritual, nos alienando de nós mesmos, cingindo nosso “eu”, nossa integralidade, e nos alienamos de nosso próximo e da criação. Esse é o “poder da morte” - azmavate - que sujeita a pessoa através do pecado.



Eu, que quero fazer o bem, constato portanto esta lei: é o mal que está ao meu alcance. Pois eu me comprazo na lei de Deus, enquanto homem interior, mas em meus membros descubro outra lei que combate contra a lei que a minha inteligência ratifica; ela faz de mim o prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros. Infeliz que eu sou! Quem me livrará deste corpo que pertence à morte?
Apóstolo Paulo, na epístola aos Romanos, cap. 7.21-24.
A Bíblia – Tradução Ecumênica (TEB).

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