Um Deus que não pode sofrer é mais pobre do que qualquer ser humano. Pois um Deus que é incapaz de sofrer é um ser que não se envolve de forma relacional. O sofrimento e a injustiça não o afetam. E pelo fato dele ser tão absolutamente insensível, nada pode afeta-lo ou abala-lo. Ele não pode chorar, pois não possui lágrimas. Contudo, quem é incapaz de sofrer também é incapaz de amar. Assim, ele é também um ser destituído de amor.
Jürgem Moltmann, “The Crucified God: The Cross of Christ as the Foundation and Criticism of Christian Theology”.p. 329.
Estas palavras extremamente fortes não são despejadas por um ateu, ou alguém revoltado contra Deus. São palavras bem centradas, de um livro profundo de um dos maiores teólogos do século XX e de todos ainda vivos. Jürgem Moltmann. E não são palavras de um acadêmico frio que produz teologia desvinculada da vida. Ele relatara diversas vezes sua experiência com Cristo na prisão, após a Segunda Guerra Mundial, e sua produção acadêmica é norteada por temas como a esperança enquanto eixo norteador da vivência cristã, manifestada concretamente em ações na esfera individual e coletivamente; atualmente, é uma das maiores vozes do cristianismo na esfera das discussões quanto ciência e ética, ética planetária, saber espiritual e ecologia dialogando com a ciência.
No livro que colocamos no link, ele expõe uma perspectiva importante da Teologia Cristã, muitas vezes eclipsada por abstrações impessoais de Deus, ou projeções psicológicas nele de tiranos da Terra. Mas muitas tradições e contribuições de gigantes pensadores da fé expõem que a visão bíblica, atingindo o ápice com a Paixão de Cristo, fala de Deus como participante do sofrimento humano e de toda a criação. Participa, envolve-se e assim arquiteta uma Nova Realidade.
Martinho Lutero falava da “Teologia da Cruz”, em contraposição a Teologia da Glória. E este aspecto do seu pensamento, um dos principais, raramente vem à tona ao se lembrar do reformador.
No Cristo crucificado é que estão a verdadeira teologia e o verdadeiro conhecimento de Deus.LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Vol. 1. São Leopoldo e Porto Alegre: Sinodal, 1987, p. 50.
Ele dizia que o ser humano, levado por sua racionalidade e pegando como matéria-prima o que pode observar, acaba sendo conduzido a engendrar uma imagem de Deus que de forma alguma expressa algo de Seu caráter próprio, da forma que Ele quer se dar a conhecer. Erguemos edifícios de sistemas de pensamento que justificam o status quo, projetos de poder, exaltação pessoal ou de outros constructos meramente humanos. Dizia que a maior revelação de Deus se dava, por Ele próprio, na entrega de Cristo ao sofrimento e cruz.
Quem reconheceria que aquele que é visivelmente humilhado, tentado, condenado e morto é, internamente e ao mesmo tempo, sobremodo enaltecido, consolado, aceito e vivificado, não fosse o Espírito ensiná-lo pela fé? E quem admitiria que aquele que é visivelmente enaltecido, honrado, fortificado e vivificado é internamente rejeitado, desprezado, enfraquecido e morto de maneira tão miserável, se a sabedoria do Espírito não lhe ensinasse isso?LUTERO, IV, 439, 19-24 apud EBELING, Gerhard. O Pensamento de Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 1986, p. 83.
Em meio às dores e angústias pelas quais passamos ou estamos sempre sujeitos a passar, mesmo inadvertidamente, ou as que vemos assolando o mundo, e buscando encontrar em Deus alguma força ou inspiração para lidarmos com isso tudo, se não voltarmos nossos olhos para essa manifestação dEle no sacrifício, no sacrifício de Jesus Cristo, dificilmente não toparemos com a divindade da “Teologia da Glória”, não escapando do sentimento de absurdo e podendo cair no desespero. Na “Teologia da Cruz”, conhecemos que, de acordo com o teólogo japonês Kazoh Kitamori, “Deus é o senhor ferido que experimentou a dor em si mesmo”.
Encontramos aí um, melhor, ocorre um encontro mútuo com um companheiro de luta e de peregrinação. Um companheiro que nos compreende. Compreendendo isto, quando nossos problemas não são resolvidos como num passe de mágica, não nos desiludimos com Deus julgando-O insensível. Sabemos apenas que estamos no “ainda não” de seu propósito para a vida. Não temos todas as respostas aqui: mas temos um sentido para suportar e enfrentar a dor. O termo hebraico empregado para a Compaixão de Deus na Bíblia é rhmjm, que é o mesmo para indicar o ventre materno. Pode-se dizer que Deus compartilha do sofrimento de Suas criaturas, tomando-as em Si como as dores de uma parturiente; Ele dará a luz a uma Nova Criação, e em Seu Reinado “Ele enxugará de seus olhos toda lágrima; e não haverá mais morte, nem haverá mais pranto, nem lamento, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas.” Apocalipse 21:4
Aqui, Deus não é compreendido como uma divindade que obriga milhões de gerações ao sofrimento e à extinção sem Ele mesmo ser afetado pelo processo, mas antes, como um Deus que participa do processo e compartilha o sofrimento e a morte do mundo. O preço pelo desenvolvimento da vida é pago não apenas pelas criaturas de Deus, mas pelo próprio Deus.George L. Murphy, Cosmologia, evolução e biotecnologia, p.261. in: BENNET, Gaymon, PETERS, Ted (orgs). Construindo pontes entre a ciência e religião, Eds. UNESP e LOYOLA, São Paulo.
Alguém pode perguntar, “isso é apenas uma forçação de barra, uma resposta forçada para que a religião cristã abarque algo que nunca pretendeu, porque hoje as pessoas estariam mais sensíveis ao sofrimento? Ou isto realmente, de forma procedente, fazia parte do cristianismo desde seu nascimento?”
Eu poderei responder me remetendo a uma obra que estuda exatamente esse ponto essencial abordado pela Teologia da Cruz, presente no nascimento do cristianismo. Deixarei a tradução de uma resenha, a respeito dela [pois não fora traduzida ainda no Brasil], logo mais à frente, daqui a alguns dias.
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