10 de julho de 2009

Calvino: 500 anos


Hoje se comemora 500 anos do nascimento de um dos mais importantes teólogos cristãos da história: João Calvino.

O alcance e volume de sua obra, a argúcia e consistência de seu pensamento, bem como a amplitude dos temas abordados fazem dele um daqueles profícuos pensadores dos quais não se precisa ser um seguidor, no caso, um “calvinista”, para poder acolher diversos pontos e aprender com diversas elaborações e abordagens.

Ao mencionar o seu nome, costuma-se vir à tona imediatamente a doutrina da predestinação, embora ele não a inaugurara: Santo Agostinho, a partir do volume X de suas “Cidade de Deus”, a enfatizara de forma mais recrudescida do que dos escritos anteriores. No período "medieval", John Scotus Erigena, Bernard de Clairvaux, Gregório de Rimini, Hugolino de Orvieto, foram importantes teólogos a apoiarem a idéia de uma predestinação pró-ativa.

Embora a veemência com que Calvino tratara desta doutrina faça por merecer a associação entre seu nome e ela, ao contrário do que alguns pensam não se constitui no aspecto que ele buscava destacar na sua obra. Na verdade, seus seguidores na via chamada “ortodoxia reformada” se concentraram muito mais nela do que o próprio Reformador, que no seu escrito principal – as Institutas [que quer dizer “Instrução”] da Religião Cristã - em que apresenta seu pensamento sobre o cristianismo de maneira mais sistematicamente, em dezessete capítulos, dedicara um capítulo [na edição brasileira, pois na edição original os livros são desmembrados em mais capítulos, e nela seria quatro- contudo, a proporção em relação ao total da obra se mantém] o oitavo, no livro III (de quatro), ao assunto.

Outro grande disparate que proclamam a respeito dele é que enfatizara que as riquezas seriam os sinais da salvação da pessoa. Isso na verdade seria uma declaração que buscaria se apoiar na obra do grande cientista social Max Weber, “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”. Mas Weber nunca asseverara tal maluquice. Na obra ele escreveu:
Por outro lado, contudo, não temos qualquer intenção de sustentar uma tese tola e doutrinária, pela qual o espírito do capitalismo (no sentido provisório do termo acima citado) possa ter surgido apenas como resultado de certos efeitos da Reforma, ou mesmo que o capitalismo, como sistema econômico, seja efeito da Reforma. O fato de que certas formas importantes de organização capitalista dos negócios são sabidamente mais antigas que a Reforma bastaria, por si só, para refutar tal afirmação.
(...)
Adotaremos pois, como ponto de partida na investigação das relações entre a velha ética protestante e o capitalismo, o trabalho de Calvino, o Calvinismo e outras seitas puritanas.
Não deve porém ser entendido que devemos ter a esperança de encontrar nos fundadores ou nos representantes de tais movimentos religiosos os promotores daquilo que chamamos de espírito do capitalismo, com o sentido de finalidade de vida. Não podemos garantir que a ambição de bens materiais, concebidos como um fim em si mesmos, fosse para qualquer um deles um valor ético positivo.
(...)
Teremos pois de admitir que as conseqüências culturais da Reforma foram, em grande parte, talvez até no aspecto particular em foco, resultantes inesperadas e mesmo indesejadas do trabalho dos reformadores. Estas foram muitas vezes bastante distantes ou até mesmo opostas a tudo o que eles mesmos pensaram obter.
(...)
De início, parece misterioso ó modo como a indiscutível superioridade do Calvinismo na organização social possa estar relacionada com a tendência do indivíduo para sair dos laços apertados com os quais fora amarrado a este mundo. Porém, por estranho que pareça, ela provém da forma peculiar que o amor fraterno cristão foi forçado a assumir sob a pressão do isolamento interior do indivíduo, pela fé calvinista. Em primeiro lugar, é uma decorrência dogmática. O mundo existe para servir à glorificação de Deus, e só para este propósito. Os cristãos eleitos estão no mundo apenas para aumentar a glória de Deus, obedecendo Seus mandamentos com o melhor de suas forças. Deus, porém, requer realizações sociais dos cristãos, porque Ele quer que a vida social seja organizada conforme Seus mandamentos, de acordo com tais propósitos. A atividade social dos cristãos no mundo é apenas uma atividade in majorem gloria Dei. Este caráter é pois partilhado pelo trabalho dentro da vocação, que propicia a vida mundana da comunidade.
(...)
Por outro lado, para obter esta autoconfiança, era recomendada uma intensa atividade temporal como meio mais adequado. Esta, e apenas esta dissiparia as dúvidas religiosas e traria a certeza da graça.

Assim, as inferências de Weber eram que, para os fiéis lidarem com a ansiedade religiosa gerada pela doutrina da predestinação, assumiam uma profunda e disciplinada dedicação ao trabalho e austeridade no lidar com as finanças; e como tal, fomentou um tipo particular de ação econômica promovedora da livre-iniciativa e da poupança, internalizados psicologicamente e expressos numa ética de racionalização da organização social.

É importante frisar que Weber não era teólogo, e portanto, engendrou comentários sobre obras teológicas na qualidade de um leigo comum, não valendo nestes sua autoridade de cientista social. Também, ele não dedicara-se a um estudo direto das fontes nas obras de João Calvino, mas se referiu a elas por leituras de segunda mão e baseado nos escritos dos discípulos puritanos.

Calvino também costuma ser acusado de arremeter contra a obra de Nicolau Copérnico baseado numa interpretação literalista dos primeiros capítulos de Gênesis e versos poéticos dos Salmos, advogando impedernidamente o Heliocentrismo. Tal versão fora promulgada por um historiador, Andrew Dickson, no livro “History of the warfare of science with theology”:

Em seu Comentário de Gênesis, Calvino foi um dos primeiros a condenar todos aqueles que afirmavam que a terra não era o centro do universo. Ele encerrava a questão recorrendo à conhecida referência ao primeiro versículo do Salmo 93 e perguntava: “Quem ousará pôr a autoridade de Copérnico acima da autoridade do Espírito Santo?”

Na verdade, Andrew cometera o maior pecado do historiador: o blefe. Não existem tais palavras de Calvino em seu comentário.

O sociólogo Robert K. Merton na obra - Ciencia, tecnología y sociedad en la Inglaterra del siglo XVII, Madrid: Alianza Editorial – assevera que na formação e consolidação da importantíssima academia científica, a Royal Society, figuravam líderes religiosos e leigos calvinistas e desenvolve um estudo a respeito da racionalidade motivadora do empreendimento científico deles na obra de Calvino.

Em Sociologia: teoria e estrutura - São Paulo : Mestre Jou, 1970, ele aponta:

Dentre os líderes influenciados pelas forças religiosas encontravam-se espíritos tais como John Wilkins, John Wallis e, pouco depois, Robert Boyle e Sir William Petty. (p. 684).

No Novo Mundo (EUA), os correspondentes e os membros da “Royal Society” que viviam na Nova Inglaterra, eram ‘todos treinados no pensamento calvinista.’ Os fundadores da Universidade de Harvard vinham da cultura calvinista, não da era literária do Renascimento ou do movimento científico do século XVII (p. 688)

Em uma outra oportunidade, tratei no blog AD CUMMULUS, com o qual colaboro como convidado, a respeito do polêmico caso da condenação à morte de Miguel de Servet, caso que muitos invocam para pintar o estereótipo de João Calvino como um sanguinário incendiário de pessoas.

Corrigimos aqui também os apontamentos de que Calvino apregoava que Deus desejava que apenas umas pessoas fossem salvas, e que Cristo teria vindo ao mundo e realizado sua obra em sua Morte e Ressurreição apenas pelos “eleitos”, e não por todo o mundo:

Devemos agora ver de que modo nos tomamos possuidores das bênçãos que Deus nos concedeu em seu Filho unigênito, não para uso particular, mas para enriquecer o pobre e o necessitado. E a primeira coisa em que se deve prestar atenção é que, enquanto estamos sem Cristo e separados dele, nada do que ele sofreu e fez pela salvação da raça humana é de benefício mínimo para nós. Para comunicarmo-nos as bênçãos que ele recebeu do Pai, ele precisa se tornar nosso e habitar em nós
[Institutas, 1.3.2).

Esta é a nossa liberdade, esta é a nossa glória contra a morte, a de que nossos pecados não nos são imputados. Deus diz que essa redenção foi obtida pelo sangue de Cristo, pois pelo sacrifício de sua morte todos os pecados do mundo foram expiados.
[Comentários a Colossenses, 1.15].

Quando ele comenta sobre as palavras de Cristo na Ceia, “isto é o meu sangue, que é derramado por muitos”, ele proclama:

A palavra ‘muitos’ não significa uma parte do mundo apenas, mas toda a raça humana: Jesus contrasta muitos com um, como se dissesse que não seria redentor de uma pessoa apenas, mas iria para a morte para libertar muitos de sua culpa maldita. É incontestável que Cristo veio para a expiação dos pecados do mundo todo.
[Eternal predestination of God, IX, 5).

Despedimo-nos deixando um fragmento do pensamento de Calvino, do livro III das Institutas:

Nós, de um lado, atribuímos a Deus tanto a predestinação como a presciência, mas julgamos absurdo subordinar uma à outra. Quando atribuímos presciência a Deus, entendemos que todas as coisas sempre estiveram e eternamente estarão perante seus olhos, de modo que, para o seu conhecimento nada é futuro ou passado, mas todas as coisas são presentes; presentes não no sentido de que são reproduzidas na imaginação (assim como nós estamos conscientes dos acontecimentos passados retidos em nossa memória), mas presentes no sentido de que Ele realmente vê e observa as coisas em seu lugar, como se estivessem ante seus olhos. Esta presciência se estende a todo universo e a toda criatura.

HINO DO V CENTENÁRIO DE CALVINO (Em Rocha Firme - João Wilson Faustini) - partitura e mid

2 comentários:

  1. Eu me considero meio Calvinista. Bom, eu me considero tanta coisa rs. Admiro muito o pensamento de Calvino desde que tive o privilégio de ler as Institutas, mas infelizmente fujo (se sair correndo mesmo) da meioria dos calvinistas que conheço. Acho que de uma certa maneira adoeceram Calvino.

    Gostei bastante do texto.
    Inté.

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  2. Pois é, Éverton, eu não sou calvinista, mas como disse, há muito do pensamento de Calvino que bebo. Na verdade, como na proposta do blog, não sou afiliado a uma "corrente" particular no cristianismo, mas me mantenho no núcleo histórico de fé e bebo de águas de diversas contribuições.

    Abraços

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