4 de setembro de 2009

Deus - Indomesticável


Teologia não é rede que se teça para apanhar Deus em suas malhas, porque Deus não é peixe, mas Vento que não se pode segurar...
Rubem Alves em "Sobre deuses e caquis", prefácio a "Da esperança", Papirus.

Uma reflexão antiga, que me vai e que me vem, me tomou por inteiro e desde então não me deixa, enquanto lia o livro “Os Demônios”, de Dostoievsky. O cenário se deu na Rússia dos fins do séc. XIX, carregada das discussões quanto ao estado e futuro da nação, os grandes conflitos ideológicos, o niilismo, a repressão governamental e os movimentos subversivos, muitos terroristas, o eclipse da fé, o cinismo moral e social, as condições materiais terríveis da maioria da população, e a fé vaga de que havia uma marcha na história que conduziria à solução pela emancipação do homem, cada um buscando interpretá-la à sua maneira.

Entremeados no romance ocorrem diálogos em que alguns viam a necessidade de revivificar o espírito do povo russo, e se mencionava Deus. Crendo ou não crendo nEle (quase todos os personagens não criam), se falava da necessidade de exaltar o “Deus Russo”, que serviria como instrumento de uma aurora resplandecente do país sobre o mundo, como o baluarte da realização civilizacional. O “Deus” que seria a projeção maior do espírito pan-eslavista...

Algum tempo antes, seu conterrâneo escritor, Leon Tolstói, em "Guerra e Paz", apresentou um cenário de uma missa feita no contexto da guerra entre a Rússia e a França e a invasão de Napoleão para conquistar seu país, onde o sacerdote rezava assim:

Senhor Deus todo-poderoso, Deus da nossa salvação! Concede a Tua graça e a Tua misericórdia às Tuas humildes criaturas e ouve a nossa oração, amerceia-Te de nós e tem piedade.

O inimigo enche de confusão a Terra e quer transformar o mundo num deserto. Este inimigo levanta-se contra nós. Homens criminosos reuniram-se para destruir o Teu bem, para arrasar a Tua fiel Jerusalém, a Tua Rússia bem-amada, para conspurcar Os Teus templos, derrubar os altares e profanar os Teus santuários. Até quando, Senhor, até quando triunfarão os pecadores? Senhor todo-poderoso! Escuta-nos a nós, que Te imploramos: ampara com a Tua força o nosso mui piedoso imperador autocrata Alexandre Pavlovitch. Lembra-Te da sua lealdade e da sua doçura, recompensa-o pela bondade com que ele nos protege, a nós, a Tua Israel bem-amada

Dostoievsky enxergava muito... enquanto escrevia sobre o "Deus russo", em "Os Demônios", enxergava além e “aquém” também - dos recônditos da alma, nada lhe escapava, ele via o “universal” de nosso interior. E essa é uma tônica. A idéia de “Deus” usada como mobilização da massa e dos indivíduos, para conferir-lhes uma entrega última a um propósito, que freqüentemente é capturado por discursos chauvinistas, por particularismos essencialistas de povos, nações, grupos, poderes, projetos mesquinhos, projetos de subjugação, domínio, conquistas pessoais...

Houvera o “deus branco” do apartheid, que justificava o status quo, e o dos queimadores de negros nos EUA. O deus “macho”, justificando o machismo. O deus “pan-europeu”, justificando os que promoviam genocídios sobre populações aborígenes. O “deus anti-semita”, e o deus “semita contra o resto”. O "nosso" deus, capturado em nossas redes. O deus "plutocrata" e/ou "demófobo" que legitima a injustiça social. Não é esse o segredo da magia, da feitiçaria? Buscar truques e jogos nos quais se envolvem as divindades e os poderes espirituais sirvam de joguetes para nós? Não estaria nisso a imagem simbólica da serpente, que sempre ilustrou a feitiçaria, na narrativa do Éden?

Uma vez discutia com uma pessoa a respeito da “Teologia da Prosperidade”, aquela que associa fé com ganho pecuniário, em que Deus está preso por certas regras a fazer barganhas com as pessoas para ficarem ricas, e o projeto de vida de fé é um projeto individualista a ficar rico, custe o que custar...a pessoa me respondia “pois o MEEEEEUUU [acentuadamente mesmo] Deus vai me dar, etc., etc.”.... Queremos ter, e o "nosso" Deus é o instrumento. Queremos vingança, e o "nosso" Deus é o instrumento. Infelizmente, na Reforma Protestante, o mote “deixai Deus ser Deus” não foi captado a fundo o suficiente, algumas vezes até distorcido (Deus sendo adorado como um tirano caprichoso, em alguns segmentos) pois muitas vezes a idéia de Deus foi usada para vindicar os crescentes sentimentos nacionalistas na aurora do Estado Moderno, para exaltar os soberanos, o deus da raça tal, do povo tal... isso faria até pensar que a Parábola do Bom Samaritano foi uma inserção tardia na Bíblia feita por um grupo de direitos humanos recente...

Sempre fora uma grande pedra de tropeço na Europa. Sua história é marcada por uma grande segmentação de nações e etnias com um histórico de lutas e massacres mútuos, que até hoje deixam marcas, traumas, sentimentos íntimos de busca de vingança, grandes rancores. E vemos na história o “deus dos bretões”, “deus dos goidels”, “deus dos saxões”, “deus dos francos”, “deus dos germanos”, etc., etc., cada um reivindicando pra si a vitória que Jesus venceu na cruz. O contrário do que era pra ser, com o Deus do Universo que é o Deus Triúno cristão, a fé que deveria servir não para apagar o patriotismo, o amor ao seu povo, mas para universalizar o amor, e deslegitimar todo o racismo, xenofobia, demonização do “outro”, todo o chauvinismo, etnocentrismo, pois em Cristo fora feita uma Nova Aliança aberta a toda a humanidade.
Não há mais judeu nem grego; já não há mais nem escravo nem homem livre; já não há mais o homem e a mulher; pois todos vós sois um só em Jesus Cristo.
São Paulo na Epístola aos Gálatas, 3.27.

Na Primeira Aliança, freqüentemente se vê os profetas advertindo o povo hebreu a não se fiar nesse chauvinismo religioso. Proclamavam que a Aliança não fora firmada por que tinham algum mérito essencial, intrínseco, porque conquistaram o direito, mas por Graça de Deus, de acordo com um plano de abençoar o mundo. Os profetas denunciavam a violação da Aliança, usando muitas vezes a imagem da prostituição, apresentando como o povo adulterava traindo seu casamento com Deus, e em prol de uma religião de acomodação social e de “paz” a justiça e a equidade com os mais vulneráveis socialmente eram deixadas de lado. E não eram por se julgar “o povo”, em contraste com os outros povos “impuros”, que essa situação seria sustentável.

Elie Wiesel, escritor judeu, fora direto ao ponto nevrálgico, nesse trecho do livro “Homens sábios e suas histórias” :
“Uma sociedade que violenta a humanidade de seus componentes mais fracos está legando, se não produzindo, o próprio infortúnio, a própria maldição”.

Nos tempos de Jesus, tal advertência reverberava na pregação de João Batista:
Produzi, pois, frutos que testemunhem vossa conversão; e não comeceis a dizer a vós mesmos: 'Temos por pai Abraão’. Pois eu vos digo, destas pedras aqui Deus pode suscitar filhos para Abraão.
Evangelho segundo São Lucas 3.8.

Enxergo que o ápice da denúncia e deslegitimação do “chauvinismo religioso” está no livro do profeta Amós. Amós dizia de si que “não era profeta, ou filho de profeta”, ou seja, não era proveniente de nenhuma escola religiosa, não participava dos rituais dos grupos que incluíam “transes” e catarses religiosas (vide I Samuel, 10.10-12), mas era um homem do povo, humilde, um vaqueiro e agricultor. Mas Deus escolheu a ele, e não a um “religioso”; encontrou-o na sua condição, vocacionando-o a apresentar à nação sua deteriorada condição espiritual, suas injustiças e iniqüidades, e apresentar a leitura visceral dos tempos que viviam e a catástrofe que advinha por causa de suas ações e suas condição. No capítulo 9, ele argumenta justamente de acordo com a frase de Rubem Alves que abrira nossa reflexão: Deus não pode ser domado, não pode ser aprisionado, Ele é Universal e Soberano. Até que vem o ápice:
Para mim, não sois vós como os filhos dos Kushitas, ó filhos de Israel? - palavra do Senhor. Acaso não tirei eu Israel da terra do Egito, Os filisteus de Kaftor e Arâm, de Qir?

Não há como deixar de estremecer diante de tal palavra tão afiada, tão arguta, tão explosiva, que nos desarma e e faz pasmar...

Os Kushitas são os povos de origem dos etíopes. Atravessaram um período difícil de uma diáspora. Seu reino de Napata, que cuja independência fora conquistada dos poderosos egípcios, experimentara seu auge após uma grande unificação no século VIII a.C., chegando a exercer poder sobre territórios do Egito. Durante o século VII seu reino desmorona, até ser arrasado no início do VI. Um enredo bastante similar ao que seria o de Israel...

Deportados de sua terra, espalhados no mundo, referidos como servos de trabalhos mais rústicos (alguns ascendendo até a postos importantes de eunucos de cortes). Esse povo, então, com qual o o povo israelita não sentia vínculo algum, possivelmente até tinha ojeriza, era igualmente valioso aos olhos de Deus. Deus nutria por eles igual afeição.

E continua. O que era o Êxodo? Era o acontecimento que definia a identidade do povo hebreu. Era a ele que se reportavam para saber quem eram, de onde vieram. Alegravam-se nele que o Deus Absoluto ouvira seus sofrimentos e atentara para sua opressão, e efetuara sua libertação com atos especiais únicos na história, triunfando sobre todos os poderes,religiosos, políticos, sociais, do império egípcio. Eles viam sua distinção dentre todos os povos do mundo ali. E o que Deus proclama? Que efetuara atos libertadores também para com outros povos. E cita justamente povos odiados, inimigos históricos dos israelitas aos quais eles deviam pensar que eram povos ignorados, ou até desprezados por Deus. E sim, eles também tiveram seu Êxodo, sua Libertação, os filisteus e os arameus, de seus cativeiros...e por trás de tudo...

Deus, o Absoluto.

Na verdade, eu me dou conta de que Deus é imparcial e de que, em toda nação, quem quer que o tema e pratique a justiça é acolhido por Ele.
Discurso de São Pedro à casa do centurião Cornélio, em Atos 10.34-35.

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