Constantemente, na interpretação bíblica, é o que se faz. Projetar sobre tempos remotos discussões e preocupações que não havia ou não faziam parte do pensamento da época. Com isso, muitas vezes a mensagem fica “desencarnada”, ou se acomoda a exigências subjetivas. Geralmente o anacronismo, em relação ao evangelho, se dá no sentido de promover uma transformação de cunho individualista, exotérico, uma “espiritualização” etérea, ou para atender necessidades e interesses tendenciosos bem diferentes da perspectiva neotestamentária.
Por exemplo, o próprio termo “evangelho” [evangelium] possui um sentido que raramente é evocado. Naqueles tempos, era comum haver a divinização da figura do rei. No Império Romano, o culto oficial era a divinização do Imperador, imbuindo-o de evocações deificadoras. Se pregava que ele era, por direito, soberano sobre a vida e a morte, o provedor e doador. Em grandes conquistas bélicas, havia um cortejo real, comemorando e proclamando as “boas novas” e exaltando o imperador. Daí, a imagem cristã para o papel de Jesus Cristo o Senhor: o evangelho [boas novas] de Jesus Cristo!
Muitos acham e pregam que na passagem do evangelho de São Marcos, capítulo 12.13-17, versa-se sobre “separação entre religião e Estado”. Anacronismo puro. Estas duas esferas, a política e a espiritual, eram inconcebíveis como duas esferas estanques no ideário de então, e também, na pregação de Jesus e seus discípulos. Vamos recapitular: aramara-se uma cilada. Com a pergunta sobre os impostos, Jesus se comprometeria respondendo diretamente que se pagasse e que não se pagasse. Eles queriam um motivo para lhe prender. Se recusasse, não só seria preso como seus discípulos seriam perseguidos e seu movimento poderia dispersar-se. Se capitulasse, seria uma decepção para seus discípulos e o povo ouvinte. Porquê?.. Se sua mensagem fosse puramente “espiritual” nos termos de hoje, porque simplesmente falar “sejam bons cidadãos pagadores de impostos” seria uma decepção? É o que não se responde...
Por que me quereis armar um laço? Mostrai-me um denário... ... De quem é esta imagem e a inscrição? De César... ... Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
Ao mostrar a inscrição da moeda, há um importante detalhe que não é investigado cuidadosamente. Nas moedas, havia a inscrição: DIVI F, quer dizer, DIVI FILIUS ou FILHO DE DEUS.
Então, o que Jesus mostrou a multidão e aos desafiantes fora que o imperador estava buscando pra si uma prerrogativa que não tinha: a de ser o Filho de Deus, de ser Deus na Terra. E com isso deslegitimando sua exploração. De fato, Jesus se esquivara de ser acusado de pregar abertamente ali uma sublevação, o que comprometeria sua pregação e obra no Templo completamente com tal perspectiva. Mas não capitulara. Para bons entendedores, pingo é letra. E ali, todos entenderam: havia uma exploração firmada num discurso ilegítimo, de deificação do Império e de seu representante. Ele queria o que era de Deus.
Não se prega com isso uma “Clerocracia”, o que seria igualmente anacrônico numa outra direção. Mas nos remetemos a uma outra frase de Cristo, referida no evangelho segundo São Mateus, 6.21- "Porque onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração". Aonde está a nossa segurança? Há algo neste mundo que legitimamos com algo que usurpa a primazia de Deus? Será que nos apegamos demais ao status quo a ponto de querer legitimá-lo com discurso deificador? Há algum “imperador” hoje em nossa vida, ou no mundo, buscando ocupar o lugar de Deus? Podemos justificar a exploração, injustiça social, marginalização sócioeconômica de povos, grupos e indivíduos, com base em “é assim que tem de ser”, ou “é a vontade de Deus”?
Jesus está sendo “radical” demais para você, amante da paz?
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