5 de dezembro de 2009

Belém - Ele veio pequeno, dos pequenos, entre os pequenos, para coisas grandes...

Canta o clássico hino natalino que o Senhor “nasceu em Belém”. Belém, Bayt Laḥm, que significa “Casa do Pão”.

Atualmente, podemos ver um crescente descrédito em relação aos apontamentos dos evangelistas sobre o nascimento em Belém. Destaco que tal ceticismo é partilhado por estudiosos de diversas vertentes e posições, sérios, sóbrios, centrados. Eu penso que essa é uma polêmica difícil. De certa forma, o raciocínio que levaria ao nascimento ter acontecido em Nazaré seria levado mais pela via negativa do que positiva. Ademais, há pouco tempo muitos não teriam aceitado essa tese (talvez até muitos dos estudiosos mais velhos hoje que defendem-na) porque acreditavam que Nazaré não existia...

Quanto ao período em relação a Quirino, temos algumas controvérsias. Há uma ênfase comum nos evangelistas situarem o nascimento de Jesus à época de Herodes, o Grande, rei da Judéia, que morrera em 4 a.C. Mas tendo provas de que Quirino fora empossado no governo da Síria em 6 d.C., havendo a aí registro de um inventário humano feito por Arquelau [ mencionado por Flávio Josefo]; haveria uma grande discrepância irreconciliável. Também se questiona a existência de recenseamentos do gênero.

Porém, o arqueólogo John McRay, autor de “Archaeology and the New Testament”, apresenta um exemplo de recenceamentos semelhantes:
Gaio Víbio Máximo, prefeito do Egito (declara): Tendo chegado o momento de realizar a censo de casa em casa, é necessário que se requeira a todos os que, por algum motivo, residam fora de suas províncias, que retornem às suas casas, para que cumpram o que requer integralmente a ordem do censo, e possam também atender diligentemente ao cultivo da parte que lhes cabe.
Ele aponta também que há um papiro, de 48 d.C, dando a entender que o censo era algo que envolvia a família toda. Ocorria a cada 14 anos, segundo esse arqueólogo. Houveram censos de Herodes em agosto de 7 a.C. em Belém, 3 anos antes de sua morte, num período compreendido dentre 3 anos (8 a 6) em que houveram recenseamentos gerais.

Considerando isso, refletimos sobre os possíveis períodos. Considerando a moeda descoberta pelo arqueólogo Jerry Vardaman –citado por McRay - com o nome de Quirino em letras "micrográficas", fazendo dele procônsul da Síria e da Cilícia de 11 a.C. até depois da morte de Herodes, 4 a.C.; tendo documentado que ele fora governar a Síria em 6 d.C., pode-se inferir dois governos, de caráter diferente, de Quirino. Quirino realizara uma missão militar entre 12 - 6 a.C., havendo registros em escritos sírios de censos realizados na Judéia a partir de 12 a.C. (que não fora o inventário de Arquelau no ano 6 d.C.). Até a chegada do recenseamento à Judéia, que poderia ter levado um bom tempo, teria dado tempo de José e Maria terem chegado à Belém para o nascimento.

Outro cenário também pode ser delineado:

Uma aferição alternativa da passagem do evangelho de Lucas, no original em grego " "auth apografh prwth egeneto hgemoneuontoV thV suriaV kurhniou" poderia apontar que o censo se dera antes de Quirino ser o governador da Síria, sendo ele incumbido pelo imperador responsável pelo recenseamento, Augustos, sem ser o governador; a tradução em Lucas ficaria "Este censo aconteceu antes de Quirino se tornar governador da Síria", conforme propõe John Nolland em seu comentário sobre os dois primeiros capítulos de Lucas. John McRay aponta que o termo hégemoneuontos , que Lucas emprega, era usado também para o exercício de "procurador", e legatus era mais comum para "governador". De fato, o teólogo patrístico Tertuliano de Cartargo considerava que o censo foi feito quando o legado na Síria era Sentio Saturnino, em 9-6 a.C., unindo à Síria os territórios de Arquelau; época que ocorrera a revolta farisaica e a insurreição de Judas, o Galileu.

Tal quadro seria coerente com o reconhecimento do período de Quirino como procônsul da Síria e Cilícia, como mencionado acima.

Isto, ponderando que José e Maria tivessem chegado lá antes, e não na noite do nascimento como se costuma dizer. É coerente com Lucas: "E aconteceu que, estando eles ali, se cumpriram os dias em que ela havia de dar à luz", sugerindo que esperaram dias. Nesse caso, poderíamos imaginar que na verdade Maria teria chegado uns bons dias antes de dar à luz. Teríamos que pensar numa hipótese alternativa à da gruta. A palavra empregada kataluma, concordando com Marcos 14.14-15, poderia indicar um quarto de hóspedes. Para os dois relatos - considerando que são narrativas de episódios sui generis, que buscam repassar um significado especial e não descrições dissertativas frias - poderem ter um relativo grau de coerência, se consideraria que o episódio da matança dos inocentes, e a chegada dos magos, teria se passado um bom tempo, entre um a dois anos, após a natividade de Lucas.
No mais, caso a tradição fosse mesmo lendária, teríamos que admitir que o nascimento em Belém seria uma lenda bem precoce pelos critérios que examinam ambas as tradições, de Mateus e Lucas, e compartilhada com grande repercussão e crédito entre as comunidades cristãs, mesmo as não provenientes de adeptos do judaísmo, pois temos indícios de que desde os primórdios do cristianismo primitivo esta cidade era local de devoção. Registra-se que em 135, o imperador Adriano mandou construir, sobre a gruta de Efrata, um templo dedicado ao deus Adone, para contrapor à devoção cristã ao no lugar e abafá-la. Justino de Roma, nascido na Palestina, já o menciona o nascimento numa gruta em Belém, décadas após os evangelhos serem escritos, no Diálogo contra Trifão. e menciona, uns cinqüenta anos mais tarde, que Jesus nasceu em uma cova de Belém. Podemos vê-lo também nesta época em alguns textos apócrifos, como o Proto-evangelho de Tiago (+/- 150 d.C.), 17. Orígenes pouco mais tarde, também (Contra Celso I, 51). Também o “Pseudo-Mateus”, 13.

De fato, Belém poderia ser uma projeção apologética dos discípulos, de defesa da fé messiânica em Jesus como Aquele em quem Deus visitava Israel e os seres humanos; contudo, seria insuficiente como tal, pois eles apresentam que muitos o consideravam de Nazaré, debochando (detalhe que não passaria despercebido nesse caso, merecendo um comentário dos evangelistas como “contudo não sabiam que era de Belém”). Então tal tese não convence.


Alguns mencionam que o fato do extermínio das crianças por parte de Herodes não teria passado despercebido de historiadores como Flávio Josefo. Contudo, devemos considerar o porte do evento, alguma coisa relacionada a “Casus Belli”,e a trajetória geral de Herodes. Neste último fator, diante dos precedentes de chacinas de Herodes ante sua família e várias pessoas próximas a si, e outras tantas atrocidades, não seria algo excepcional. Dada também a magnitude de Belém, sendo que Raymond Brown no livro “O Nascimento do Messias” estima que a vila tinha cerca de mil habitantes na época, e o fato não se relacionar a alguma insurreição coletiva ou guiada por líderes carismáticos, afastamos o “casus belli”; e, considerando que Brown e outros estimam que o infanticídio atingiria cerca de 20 crianças, que se enquadravam na ordem dada, fora um evento então que poderia sim não ter chamado a atenção de Josefo e outros. Flávio Josefo, um fariseu versado nas discussões rabínicas, nada comenta em sua obra, nem menciona, um dos mais importantes deles que foi um divisor de águas, o rabino Hillel. Fílon de Alexandria e demais escritos rabínicos não mencionam João Batista. Simão Bar Kochba, o líder da insurreição dos judeus em 132-135 d.C., não é mencionado por Díon Cássio, historiador contemporâneo que escrevera sobre a revolta. Então, não é de se assustar com certas ausências de questões importantes em obras da época.


Vivia-se tempos tensos para com Herodes; ele era um governante déspota e sanguinário, obcecado em matar rivais; mas pouco antes houveram revoltas populares importantes, maciças, e não poderia mostrar fraqueza a ponto de ir pessoalmente conferir uma história contada por estrangeiros de que numa vilazinha nascera seu futuro rival, e que ressoaria profecias messiânicas; isso repercutiria em toda sua província e além, o que além de ser politicamente ruim para sua imagem com outros representantes romanos como procuradores, prefeitos, etc. (podendo chegar ao imperador), interpretariam essa exibição de fraqueza como sinal para uma nova revolta e surgimento de novos líderes.

Onde então podemos ver que não há cenário para uma investigação generalizada, em outras localidades como Nazaré, se por acaso alguém escapou de Belém com uma criança (até porque esse alguém não faria estardalhaço com isso). No seu testamento, Herodes confiara a seu filho Herodes Antipas a herança de seu trono, mas mudara de idéia e designara Arquelau, seu outro filho, mencionado nas narrativas. Poucos anos depois, na sua morte, os dois filhos se apresentaram ao imperador Augusto que repartiu metade do território judaico entre eles, ficando Antipas com a Galiléia e o outro filho, Herodes Filipe, com o extremo norte, e Arquelau com a Judéia e Samaria. É de se esperar Antipas com essa preocupação em suas prioridades?

Reforçando ainda a antiguidade da tradição de Belém, remontando aos períodos iniciais do movimento cristão, adquire assim um peso maior. Dadas estas considerações, considero que Belém ainda se sustenta. Além da força simbólica, a plausibilidade histórica. Pode-se cantar com os pulmões e consciência leve.

BROWN, Raymond E. O Nascimento do Messias: comentário das narrativas da infância nos Evangelhos de Mateus e Lucas. trad. Barbara Theoto Lambert. São Paulo: Paulinas, 2005

GONZÁLEZ, J. Echegaray. “Arqueología y evangelios”, Verbo Divino, Estella 1994

HORSLEY, Richard A.; HANSON, John S. Bandidos, Profetas e Messias. Movimentos Populares no Tempo de Jesus. São Paulo, Paulus, 1995.

JOSEFO, Flávio. Antiguidades dos Judeus contra Apion.  Rio de Janeiro, Editora Juruá, 2001.

McRAY,John. Archeology and the New Testament. Grand Rapids, Baker, 1991.

NOLLAND, John. Luke 1:9-20. Waco, TX: Word, 1993



Nenhum comentário:

Postar um comentário