15 de agosto de 2011

Oh mulher, grande é tua fé!


E, partindo Jesus dali, foi para as partes de Tiro e de Sidom.
E eis que uma mulher cananéia, que saíra daquelas cercanias, clamou, dizendo: _Senhor, Filho de Davi, tem misericórdia de mim, que minha filha está miseravelmente endemoninhada.
Mas ele não lhe respondeu palavra. E os seus discípulos, chegando ao pé dele, rogaram-lhe, dizendo: _Despede-a, que vem gritando atrás de nós.
E ele, respondendo, disse: _Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel.
Então chegou ela, e prostrou-se diante dele, rogando: Senhor, socorre-me!
Ele, porém, respondendo, disse: Não é fica bem tirar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos.
E ela insistiu: _Verdade, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus senhores.
Então respondeu Jesus, e disse-lhe: _Oh mulher, grande é tua fé! Seja isso feito para contigo como tu desejas. E desde aquela hora a sua filha ficou sã.
Mateus 15, 21-28.

É uma passagem que produz agudo espanto, e emociona. É enternecedora, tocante... chocante e intrigante. É bela e estranha.

É impossível não se comover com a mulher, não se comprazer em como conseguira se mostrar moralmente superiora aos discípulos e alcançar “converter” Jesus. Porém diversos detalhes importantes, entremeados no enredo, passam despercebido em uma leitura superficial.

Vamos examinar. Jesus está passando por terras estrangeiras, e é buscado por uma estrangeira. Era necessário se atravessar a região sirofenícia para ir ao mar da Galiléia e também Cesaréia de Felipe, e Jesus mais seus discípulos estavam procurando um tempo à parte das multidões. Ali era um local de terra fértil, importante entreposto comercial das rotas marítimicas, sobretudo de tinta púrpura extraída de conchas. Em especial na região de Tiro, aquela terra era amplamente habitada por caananitas, povo do qual os judeus sentiam repulsa dada a herança das tradições da Bíblia Hebraica de suas inimizades. Sidom fora a casa de Jezabel ( 1 Rs 16.31), uma rainha defenestrada na tradição judaica. Contudo, contemporâneo à Jezabel, Elias proporcionou cura e alimentação para uma viúva e seu filho (2 Rs 17.8-24). Eliseu também teve um encontro marcante com uma sunamita ( 2 Rs 4.28). E estas duas figuras eram impactantes na memória popular da Galiléia no tempo de Jesus, contadas entre os núcleos comunitários e familiares, influente nas aspirações populares ante a opressão que sofriam dos poderosos considerados traidores e dos povos estrangeiros.

Temos na reação de Jesus algo que está bem pertencente a um padrão ampla e consistentemente fixado nas recordações a seu respeito. De ter uma reação inesperadamente ríspida e desafiadora ao ser abordado de forma enaltecedora, aparentemente “bajuladora” ou “interesseira” por pessoas. Seria este o caso daquela mulher? Jesus poderia ter ficado intrigado a respeito.

Este padrão é retratado no episódio do “Jovem Rico”, Mt 19,16-22; Mc 10,17-22, Lc.18.18-30. Também em Lucas 9.57-62, àqueles chegando entusiasmados, fala-se secamente sobre raposas e aves do céu tendo onde se abrigar em contraste com o Filho do Homem; mortos enterrando seus próprios mortos (respondendo ao pedido de enterrar os pais), pôr a mão no arado e não olhar pra trás. Em João 3 no diálogo com Nicodemos, um mestre, é-lhe dito para nascer de novo, sem nenhuma palavra de consideração. Vê-se que em algumas vezes, no decorrer do diálogo, Jesus ganha mais empatia com a pessoa.

A mulher aborda Jesus dirigindo-lhe súplica como “Filho de Davi”. Sem dúvida, ecoava uma atribuição a ele por parte de muitas pessoas, refletindo as concepções delas quanto ao Messias. De alguma forma relatos sobre Jesus chegaram até ela. Mas o que este “Filho de Davi” significava? Textos contemporâneos à época, muitos dos quais se tratando de aplicações a passagens antigas da Bíblia Hebraica, revelam bem. Dado o espaço e limite desta nossa reflexão, não caberia transcrever todos os mencionados.

Na Profecia de Natan, em 2 Samuel 7, a dinastia de Davi é referida efetuando a restauração de Israel, com ecos no livro do profeta Zacarias, capítulo 4 e Ageu 2,10-13. Em 17, 32 e 18,1.5.7 apresenta que sua missão seria afugentar os adversários e trazer paz a Judá.

A figura do “Filho de Davi” e mencionada explicitamente nos “Salmos de Salomão” (produzido provavelmente na década de 60 a.C. ou pouco antes), em 17.21, como uma figura belicosa. A passagem reverbera:

21. Veja, Senhor, e levanta-lhes o rei deles, filho de Davi, para reinar sobre Israel, seu servo, no tempo que escolheste, Deus. 22. Guarneceste-o com o poder para destruir os governantes injustos, para purificar Jerusalém dos gentios que a pisaram para destruir. 23. Para expulsar com sabedoria e justiça os pecadores da herança; para abater a arrogância dos pecadores como a jarra do oleiro.24. Para quebrar com vara de ferro toda a substância deles; para destruir as nações ímpias com a palavra de sua boca. 25. Para fazer as nações fugirem da sua face ameaçadora, e expor os pecadores pela palavra de seus corações.

Também tem-se uma ampla abordagem nos textos da biblioteca de Qumram [ um local onde se reunira uma comunidade religiosa que se apartara da sociedade religiosa judaica mais ampla, tendo ligações com os Essênios], por exemplo em IQM 5,1, 4 e Q 285, esta figura messiânica é líder militar atuante na consumação da história, investindo na guerra do fim dos tempos, em que desencadeará a vinda efetiva final de Deus. Renovará a aliança de Davi - 1Qb 5,20 ss, CD 7,18-21, traz à tona o cumprimento da promessa da “estrela e do cetro” de Nm 24,17. O rebento de Davi vence a figura demoníaca de Belial em 4Q174.

4Q252,1, V-1-4 apresenta uma reflexão sobre Gn 49,10, expondo que “Quando Israel tiver o domínio, não será exterminado aquele que se sentar no trono de Davi, pois o cetro é a aliança da soberania real, [e as tribos] de Israel são as bandeiras. Até a vinda do ungido da Justiça, do rebento de Davi, pois a ele e à sua semente é dada a aliança da soberania régia de seu povo até as gerações eternas”.

Em 4 Q161 temos uma interpretação de Isaías 11, 1-5: “O rebento de Davi se levantará no fim dos dias [...] Deus o apoiará[...] ele dominará todos os povos”.

Então, como se consegue imaginar aquela mulher estrangeira prestando deferência a um “Filho de Davi”, que representava sim uma ameaça, perigo, grande antagonismo? Que representaria sua expulsão daquela terra? Estaria ela sendo dúbia, ardilosa, bajuladora?

Os discípulos apresentam um coração bastante frio para com a mulher. Estava sendo um estorvo, tinha de se dar um jeito logo. O tempo dela e do povo dela estava para chegar....Jesus abrange ainda mais o panorama incorporando o peso de sua missão: aos cães domésticos, que eram os referidos no termo diminutivo da passagem, eram jogadas comidas sem valor ( confira Êxodo 4.22).

Importante ainda para reforçar a autenticidade desta memória é que o evangelho de Mateus, o mais “judaizado” de todos, tenha se alimentado e apresentado também a memória desta passagem.

E o decorrer dos acontecimentos mostra que não, a mulher não era dissimulada: realmente estava ali com coração aberto, vulnerável, e aceitava abrir mão de todo orgulho, toda abstração identitária, em prol de sua filha. Reconhecia que mesmo uma atenção desleixada de Jesus, o que sobrasse de seu tempo e dedicação, “as migalhas da mesa”, seriam suficientes para o quê, para ela, era realmente o que importava.

Esta fé conquistou Jesus.

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