13 de março de 2011

Meditação para a Quaresma: Alma Tentada

Como já comentamos aqui no “Cristianismo, meramente”, nas narrativas das origens em Gênesis, se busca situar a experiência de fé e o decorrente vislumbre de mundo experimentado com as experiências com Deus, relacionando-a com a condição humana e daí, com como se chegou à atual condição das coisas a partir do panorama descortinado pela fé. Todo um caldo cultural circundante, de tradições de origens, sobre criação do mundo pela batalha dos deuses, capricho dos deuses, necessidade do apetite ou xiste dos deuses, e assim também com a criação da humanidade, e a amizade/inimizade com certos deuses, foi reinterpretado a partir da visão de mundo completamente reorientada pelas experiências com o Deus Supremo de caráter distinto, e o relacionamento especial com Ele, e o maravilhar-se com um cenário ofuscante de que Ele tinha um plano para a História.

E assim é com a narrativa hoje conhecida como a “narrativa da Queda”. Um ser humano colocado para ser quase que co-regente de Deus em Seu mundo, plasmando interativamente com ele- o mundo - uma experiência de jardim, para crescer em sabedoria, aprendizado, acaba tendo uma nova orientação, uma desorientação, por ceder a pior das depravações, que é o ápice da idolatria - transformar Deus em ídolo. Pois foi este o retrato que fizeram de Deus, a imagem que fundiram dEle, equivocadamente, quando pensaram em “ser como Ele”. Pois da forma que os personagens imaginaram que seriam “como Deus”, fica nítido que não era a forma que Deus se apresentava. Vindo, em Sua grandeza, humildemente passear com eles e ter prosas coloquiais, um relacionamento carregado de singeleza e ternura. Deus não era o Dominador Tirânico e sedento de poder a que eles buscaram se tornar.

Foi por aí que na verdade o tiro saiu pela culatra. Ao invés de ser como Deus, se alienaram dEle, de si mesmos, da criação.

Na experiência visionária de Jesus no deserto, podemos ver como seria Ele quem reverteria esta Queda, tendo sido tentado no mesmo sentido: transformar Deus em ídolo.

Jesus vulnerabilizado, com fome, no deserto. Não saciado, num jardim de delícias.

Se ele era o Filho de Deus, então esse relacionamento especial tinha de se mostrar real com as necessidades satisfeitas, atendidas, uma relação instrumental; tinha que haver a demonstração de poder submetedor. Como é hoje em grande parte das buscas de Deus que vemos, nas igrejas e fora delas.

Outro dia uma pessoa veio me falar sobre ela não crer em Deus. Me disse algo assim: “se você está desempregado, procurando emprego, é você que tem que se virar; você tem que conseguir emprego. Não tem Deus lá não, é você! Não é Deus que vai criar empregos.

A questão aí é que é como se fosse um reflexo especular da fé imatura; a descrença imatura. Pois ambas vêem a mesma coisa: pra se ter relação com Deus, todas as necessidades teriam de ter imediata satisfação, e nossas responsabilidades, dramas, lutas, sumiriam; uns acreditam que é isso a fé, e relacionam-se com a fé assim, se auto-iludindo, e ao invés de Deus, possuem um ídolo do lar pra suas barganhas mágicas. Outros não acreditam que tal possa ser feito, e assim se despem da fé.

Ambos querem um ídolo. Uns acreditam na possibilidade de tal relação, outros não. E nenhum quer Deus. Experimentar arrebatadoramente e se acercar totalmente das energias de Deus.
Saltar do Templo. Fazer seus caprichos, que Deus correrá atrás. Ele terá que dar ordens aos anjos, porque você é Deus também, os anjos têm que te servir. Você não poderá tropeçar em nenhuma pedra. Hoje, podemos gozar e usufruir de bens e consumos que para gerações passadas eram inimagináveis. Queremos e sentimos que temos todo o direito, e todo o cosmos tem o dever de nos servir para aproveitarmos ao máximo. Se houver algum espaço para relacionarmos com Deus, tem que ser nestes termos e condições. Nada de atrapalhar esta realização de caprichos, antes, deve ser um instrumento de mais; deus de auto-ajuda, de mimo.

Depois, a tentação máxima da idolatria. Romper todos os escrúpulos em prol do sucesso, do que se imagina a plena conquista do sucesso e realização do ego. Poder sem limites. Estar no topo. Ser um astro. E que tudo se curve, e que todos os escrúpulos se curvem. E não percebe-se que na verdade, é a pessoa a se curvar, e dar o que não é seu. E perder tudo. E não aproveitar nada, na realidade, porque nem ela é mais de si mesma. Outro está a se esbaldar nela. Ela se alienou por completo.

Ao Senhor teu Deus adorarás,
e a Ele só prestarás culto.

Como se diz na oração comunal anglicana, Deus, a quem servir é a verdadeira liberdade. Com a vitória de Jesus sobre a tentação, se diz que o demônio foi embora, e aí os anjos de Deus puderam se aproximar e cuidar dele.

Como na paráfrase da poesia “Operário em Construção”, de Vinícius de Moraes:

Sentindo que a violência
Nao dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobra-lo de modo contrário
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher
Portanto, tudo o que ver
Sera' teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.


Disse e fitou o operário
Que olhava e refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria
O operário via casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!


- Loucura! - gritou o patrão
Nao ves o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Nao podes dar-me o que é meu.

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