15 de agosto de 2010

O Cristianismo e o Descortinar para as Mulheres

Tive a sorte de pertencer a uma família burguesa, que, além de financiar meus estudos nas melhores escolas, também permitiu que eu brincasse com as idéias. Por causa disso, consegui entrar no mundo dos homens sem muita dificuldade. Mostrei que poderia discutir filosofia, arte, literatura, etc., no nível dos homens. Eu guardava tudo o que fosse próprio da condição feminina para mim. 

Fui então motivada por meu sucesso a continuar, e ao fazê-lo, vi que poderia me sustentar financeiramente, assim como qualquer intelectual do sexo masculino, e que eu era levada a sério, como qualquer um de meus colegas do sexo masculino. Sendo quem eu era, descobri que poderia viajar sozinha se quisesse, sentar nos cafés e escrever, e ser respeitada como qualquer escritor do sexo masculino, e assim por diante. Cada etapa fortalecia meu senso de independência e igualdade. Portanto, tornou-se muito fácil para mim esquecer que uma secretária nunca poderia gozar destes mesmos privilégios. Ela não poderia sentar-se num café e ler um livro sem ser molestada. Raramente ela seria convidada para festas por seus “dotes intelectuais”. Ela não poderia pegar um empréstimo ou comprar uma propriedade. Eu sim. E pior ainda, eu costumava desprezar o tipo de mulher que se sentia incapaz, financeiramente ou espiritualmente, de mostrar sua independência dos homens. De fato, eu pensava, sem dizê-lo a mim mesma, ‘ se eu posso, elas também podem’. Ao pesquisar e escrever O Segundo Sexo foi que percebi que meus privilégios resultavam de eu ter abdicado, em alguns aspectos cruciais pelo menos, à minha condição feminina.”

Simone de Beauvoir.



Jesus desafiara tabus de seu tempo e promoveu uma verdadeira dignificação da mulher em um tempo que haviam até mesmo orações de graças por um homem não ter nascido mulher. Respeitara a inteligência, os sentimentos, a dignidade e responsabilidade pessoal delas, não opôs objeções a ter a companhia delas no discipulado, em um tempo que rabinos não o faziam. No ‘Abot 1.5, da Mishna, se apresenta que conversar muito com mulheres, incluindo esposas, era gastar mal o tempo e desviar a atenção da Torá, e males poderiam advir das conversas. As mulheres foram as primeiras testemunhas da Ressurreição e então as primeiras evangelistas. Mulheres com recursos contribuíam com o ministério de Jesus, e também com a igreja nascente; Paulo e os demais apóstolos da mesma forma se relacionaram com pregadoras, mulheres evangelistas e catequistas, em respeito e consideração. Contudo, algumas passagens analisadas de forma descontextualizada têm levado a, tanto fundamentalistas crentes quanto fundamentalistas céticos, a apregoar um certo machismo na igreja nascente. Vamos analisá-las.

Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos como ao Senhor; porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja [...]. De sorte que, assim como a igreja está sujeita à Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo sujeitas ao marido” [Efésios, 5:22-24].

Vamos continuar mais à frente?

Maridos, amai as vossas mulheres como Cristo amou a igreja” 5.25 – ou seja, por entrega total.
É assim que o marido deve amar a sua mulher, como o seu próprio corpo. Aquele que ama a sua mulher ama a si mesmo”. 5.29

Ou seja, Paulo foi muuuito além na alteridade conjugal do que ia todos os padrões de seu ambiente, tanto helênico quanto judaico. Por falar em ambiente, “cabeça” ali indicava algo no sentido de “fonte” e não “supremacia”, para a qual era empregado “coração” – que não tem o mesmo sentido atribuído pelo romantismo ocidental.

Confiram “Paul, Women, and Wives: Marriage and Women’s Ministry in the Letters of Paul”, de Craig Keener. Também tem-se a apresentação de seus argumentos neste artigo: The Changing Role of Women in the Early Christian World


As vossas mulheres estejam caladas nas igrejas; porque não lhes é permitido falar; mas estejam sujeitas como ordena a lei. E, se quiserem aprender alguma coisa, interroguem em casa a seus próprios maridos; porque é vergonhoso que as mulheres falem na igreja” I Coríntios, 14:34-5.


Paulo lidava com um contexto específico: a bagunça generalizada no culto da igreja de Corinto, com estardalhaço carismático. Mais acima se vê que ele estava explicando a respeito da confusão quanto à “glossolalia”, e os fiéis “profetizando”, sem ordem no culto. Então, ele estava sendo bem específico. Tanto assim que, como na citação acima, Paulo reconheceu apóstolas e catequistas.

A mulher aprenda em silêncio com toda a sujeição” [I Timóteo, 2:11]. Ainda: “Não permito, porém, que a mulher ensine nem use de autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio” [I Timóteo, 2:12]

Paulo [ se for realmente o autor de I e II Timóteo, que muitos consideram pseudepígrafas], diante da prisão derradeira sob Nero e em iminência da morte, estava fortalecendo um discípulo catequista e presbítero novo, que pela referência a ele como neothj ("em juventude"), em 1 Tm 4:12 apontaria algo de menos de 22 anos; e assim não devia ser muito respeitado de acordo com os costumes, e em uma província asiática onde houvera dentre os conversos muitos ex-líderes de cultos pagãos, dentre eles sacerdotisas; este fora o contexto, para o qual ele estava dando o aval para Timóteo impor sua autoridade.

"Mas toda a mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta, desonra a sua própria cabeça, porque é como se estivesse raspada. Portanto, se a mulher não se cobre com véu, tosquie-se também. Mas, se para a mulher é coisa indecente tosquiar-se ou raspar-se, que ponha o véu” [I Coríntios, 11: 5-6].

Nenhum exegeta propugna que Paulo recomendava isso generalizadamente. Para a mentalidade judia, a mulher raspar a cabeça era desonra. Assim, Paulo aponta que se queriam tirar o véu para descobrir a cabeça, então porque não removerem também os cabelos? Ali estávamos numa região mediterrânea de grande influência das religiões de mistério orientais e de hábitos correlatos. Nestas culturas, tinha-se o cabelo como uma arma para a sedução, e os moralistas – não no sentido pejorativo, mas no sentido dos que pensam sistematicamente a moral e defendem-na – conclamavam-nas a cobrirem-nos, para deixar claro que não tinham a intenção de provocar alguém. Geralmente o costume era desafiado por mulheres da aristocracia, e Paulo nesta carta lida com a tempestuosa questão da diferença entre classes sociais na igreja.

Muitas sacerdotizas de cultos das religiões de mistério orientais raspavam a cabeça e às vezes marcavam-na e em redor. E faziam prostituições cultuais. Paulo estava enfatizando para elas se diferenciarem agora como conversas e não derem espaço a serem confundidas. Inclusive, veja só: estava falando de um culto público, e referiu-se a “orar” e “profetizar”, ou seja, manifestarem-se publicamente, até com o ensino – a profecia aberta.

Sobre a perspectiva geral das mulheres na igreja nascente, o estudioso Howard Clark Kee aponta muito bem no livro “As origens cristãs em perspectiva sociológica”:

Fustel de Coulanges mostrou que uma mulher romana nunca teve um lar ou um serviço religiosos que lhe fossem próprios, nunca exercia autoridade com referência ao culto, nunca era livre e dona de si, e com a morte do marido, cessava de ser mater famílias. Lembra documentação de Plutarco, segundo a qual a mulher não podia comparecer ao tribunal como testemunha, e de Gaio (fins do século II a.C.) que dizia “que nada se pode conceder na forma da justiça a pessoas sob potestade – como sejam as viúvas, filhos e escravos”. Quando o senado quis erradicar o culto de Baco com os seus excessos selvagens, anteriormente descritos por Eurípedes em seu Bacchae, concluiu com relutância que devia dar o poder de julgá-los à única autoridade tradicional sobre as mulheres: aos seus maridos. Como Catão Sênior o afirma, “seu poder não tem limites; podem fazer [com suas esposas] o que quiserem”.

(...)em Lucas as mulheres tomam a iniciativa de se aproximar de Jesus para receber cura e perdão ( LC.7,11-17; 13,10-17). Elas organizam o apoio a Jesus (8,1-3); cuidam de suas necessidades e se apresentam mais abertas aos seus ensinamentos (10,38-42). São representadas nas parábolas (15,8-10). Ouve-se a sua voz no meio dos seus seguidores (11,27-28). (...) mulheres participam com os homens da liderança da Igreja (At 12,12; 16,1;16,4;18,2.19), da perseguição (9,2;22,4), na proporção de convertidos (5,14;17,34), na distribuição de bens(6,1), e no apoio aos apóstolos (21,5). 

(...) Pelas inscrições e fontes literárias que informam sobre o culto de Ísis, p. ex., assim como pelas representações pictóricas do culto (como as do Iseum de Pompéia), podemos concluir que mulheres eram iniciadas nos mistérios de Ísis, mas fica evidente que a sua participação oficial no culto era de auxiliares ao sacerdócio masculino. A sacerdotisa é representada ao lado do sumo sacerdote; mulheres tocam instrumentos ou espalham flores na vereda da procissão de Ísis, mas o seu papel era claramente subsidiário. 

Na era pré-cristã, Eurípedes fazia críticas cortantes às mulheres devotas de Dionísio; na época da república romana, relata Lívio (História de Roma, livro 39) que mulheres eram as principais instigadoras dos bacanais, as cerimônias orgíacas noturnas que resultavam em assassinatos e toda sorte de excessos sexuais. Assim, nos inícios do império, os papéis das mulheres, nos movimentos religiosos, eram largamente suspeitos. O movimento cristão desafiou essa atitude e concedeu às mulheres novas formas de participação religiosa”. pp. 77-79.

Ou, ainda, certas frases das epístolas ou do ritual do casamento, na opinião de anticristãos, mostravam desprezo pelo intelecto da mulher. Mas descobri que os próprios anticristãos nutriam o desprezo pelo intelecto feminino; pois sua grande chacota contra a igreja na Europa era que "apenas mulheres" a freqüentavam.

G.K. Chesterton em “Ortodoxia”, p. 94

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