30 de janeiro de 2010

Deus e a Luta contra o Mal

Há muita destruição no Universo. Na Terra, criaturas competem entre si, parasitam, devoram umas às outras, deterioram-se, sucumbem. Pessoas sofrem por doenças terríveis, deformações congênitas, acidentes, torturam, instrumentalizam-se, matam-se. Às vezes a nítida impressão é que a lei da vida é prevalecer inescrupulosamente. Guerras. Fome. Desastres. Angústia. Desespero. Medo. Deterioração. Ás vezes tudo está bem, e o desastre sobrevém. Ou o mal e o sofrimento são reais, ou nada é.

Uma reflexão cristã, ou seja, centrada na revelação de Deus em Jesus Cristo, sobre o mal e o sofrimento deve-se acautelar para não cair numa abstração fria sobre tal horror. Deve suscitar tanto o protesto contra o mal e injustiça, o engajamento pelo bem, amor e serviço, a busca de cura, quanto à aceitação dessa realidade no mundo e “serenidade para aceitar o que não se pode mudar”. Para isto, não pode cair nos erros históricos de se sacrificar o atributo do amor de Deus, nem o atributo de Seu poder e soberania, pois a esperança cristã depende de ambos. No cerne da tradição cristã está que o Altíssimo é amoroso e poderoso o suficiente para querer e poder abolir o mal; podemos então intuir que há um bom e forte motivo suficiente para ainda não tê-lo feito, e podemos ter a esperança confiante de que Ele irá derrotar o mal.

No comentário sobre Deus e a criação, falamos sobre a doutrina bíblica da redenção estendida a toda criação, e sobre a Nova Criação em Cristo nos abrangendo, humanos e natureza. Na Tradição cristã, podemos ver que no período dos Pais e Mães da Igreja, isto era muito bem enfatizado, sobretudo dentre os orientais. Por exemplo: "Quando o Verbo desceu sobre a santa Virgem Maria, o Espírito juntamente com o Verbo entrou nela; no Espírito o Verbo assumiu um corpo e adaptou-o a Si, querendo, por meio de Si mesmo, unir e conduzir ao Pai toda a criação" – Santo Atanásio. Cunharam até um termo técnico - apokatastasis - com o qual queriam dizer o resgate, a união e consumação de todas as coisas em Cristo.

Mas como assim falarmos de “redenção”, “resgate”, da criação? Ela também peca? Ela pecou? Mas isso não é prerrogativa de seres pessoais e morais? De quê ela será redimida? Deus falhou na criação???

Os cientistas hoje nos descrevem a natureza do cosmos como um processo em que se gera ordem do caos; de grandes perturbações, surgindo horizontes de possibilidades; e da destruição, vindo à tona novos padrões, e da desordem, surgindo a complexidade. É nesse processo que ocorre uma sintonia que possibilitou uma série de eventos e fenômenos com os quais surgiram a vida, e vida inteligente, que pode ter consciência de si e tomar decisões pessoais. Surgindo os seres vivos, eles têm de responder a esses processos de tal forma a possibilitarem se estabelecer no ambiente, e se multiplicar. Muita destruição, inevitavelmente, advém disto. E afeta a nós.

Costumamos pensar que “Criação”, na Bíblia, se esgota no Gênesis. Mas não. A maioria das passagens que se referem a ela estão fora dos primeiros 11 capítulos das Escrituras. E em muitas, retrata-se algo análogo a essa visão científica descrita. Deus fazendo sua criação emergir das forças do caos, e até mesmo em conflito com as forças da destruição. Tal como na narrativa de Gênesis, é importante que saibamos que para o povo dos escritores bíblicos, o mar representava as forças do caos. Nessas demais passagens, há até uma retomada de mitos de conflitos cósmicos de outras religiões, contudo, ao invés de representar um conflito entre divindades titãs de mesmo patamar, com a vitória do deus favorito, as narrativas bíblicas nos conduzem a imagens do único Criador lidando com poderosas criaturas, criaturas insurgentes.

Vejamos alguns exemplos:

Jó 26.10- 13: Traçou um círculo à superfície das águas, até aos confins da luz e das trevas. 11 As colunas do céu tremem e se espantam da sua ameaça. 12 Com a sua força fende o mar e com o seu entendimento abate o adversário. 13 Pelo seu sopro aclara os céus, a sua mão fere o dragão veloz.

Salmo 89.9-10 - Dominas a fúria do mar; quando as suas ondas se levantam, tu as amainas. Calcaste a Rahab, como um ferido de morte; com o teu poderoso braço dispersaste os teus inimigos.

Isaías 51.9,10: Por acaso não és tu aquele que despedaçou Rahab, que trespassou o Dragão?

Salmo 74.13-17: Tu, com o teu poder, dividiste o mar; esmagaste sobre as águas a cabeça dos monstros marinhos. 14 Tu espedaçaste as cabeças do Leviatã e o deste por alimento às alimárias do deserto. 15 Tu abriste fontes e ribeiros; secaste rios caudalosos. 16 Teu é o dia; tua, também, a noite; a luz e o sol, tu os formaste. 17 Fixaste os confins da terra; verão e inverno, tu os fizeste.

Nisso, podemos ver algo a mais do que meramente símbolos para o caos intrínseco da natureza descrito pela ciência. Pois se reveste aqui de uma dimensão maior, representada pela revolta dessas criaturas contra Deus, para a qual Ele deu uma resposta ativa, de guerra...a ilustração bíblica para a compreensão de que Deus enfrenta uma grande revolta...há muita coisa fora dos propósitos de Sua natureza própria.

Já se enfatizou que esse processo dinâmico da natureza foi necessário para surgir criaturas com capacidade de abstrair, tomar decisões de vontade própria, ser moralmente responsável e pessoalmente capaz de escolher; uma ordem natural completamente estática só poderia produzir autômatos, como peças de dominó; enfatizamos também que a visão bíblica do ser humano, em termos gerais, é de que somos dotados de um centro, um “eu”. Somos seres que tomamos decisões pelas quais podemos nos responsabilizar, e efetuamos escolhas conscientes. Daí, não somos apenas um joguete de nossos instintos, um feixe de instintos determinado puramente pelos processos materiais impessoais.


Nós não apenas “erramos” no comportamento adequado para a sobrevivência. Às vezes, em nome dele, perpetramos crueldades e destruições requintadas, sofisticadas, conscientes de que estamos fazendo o mal que não queríamos para nós; exploramos, abusamos, de maneira planejada e abstraída, contra os semelhantes, contra a natureza. É o mal moral, é onde entra a questão do Bem e Mal. Pecamos, “contra Deus, contra nosso próximo e contra nós mesmos”.

Isto se dá em interação com esse estado de revolta em que se encontra a criação, apesar de ser considerada, em si mesma, como boa por Deus. Como um dos maiores teólogos cristãos da história, Karl Barth, formulara, o mal se apresenta como um poder de “negação da existência”, fundamentado no que Deus não desejou no ato da criação. Antes de significar o “nada”, é algo que ameaça reduzir ao nada, afrontando os propósitos de Deus no mundo. Barth enfatiza então a confiança na Graça e na soberania de Deus fazendo-a triunfar sobre esse mal. Assim, o mal existe enquanto a negação de Deus, a oposição à sua Graça.

Mas como Deus o evitaria, sendo que para isso, desistiria do intento de obter seres à Sua imagem e semelhança, como tratamos aqui?
Nisto podemos enxergar uma visão um pouco mais global da redenção e salvação final de Deus: Deus Pai, Filho e Espírito Santo, agindo na história humana e de toda a natureza. Redimindo esta, com um ato especial tal qual seu ato criador. Possibilitando uma nova realidade, uma Nova Criação, não mais havendo a deterioração e destruições inerentes, e não mais havendo isso que caracterizamos como a grande “revolta” contra Deus, que origina o mal. E nesse porvir, sob total, perfeito e completo governo de Deus, haverá sintonia com nossa faculdade espiritual e moral e decisória: pois, através da salvação e santificação, e da união com Deus - teósis - estaremos, voluntariamente, sintonizados com essa nova ordem, encontrando a perfeita liberdade em submissão voluntária a Deus, na perfeita comunhão com Ele, raiando a justiça, o amor. A morte será abolida. Não haverá mais choro, nossas lágrimas serão enxugadas.

Maranata!

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