10 de janeiro de 2010

Carregar sua Cruz

"A seguir ele convocou a multidão, com seus discípulos e lhes disse:

Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. "
Evangelho Segundo São Marcos, 8.34.

Esta passagem é enigmática, e encerra dificuldades que passam despercebidas em uma leitura rápida e superficial.

Muitas vezes, as pessoas têm o reflexo de entender essa passagem como se referindo às dificuldades inevitáveis e naturais da vida. Serve como auto-compensação emocional para elas terem de lidar com tais dificuldades, muitas vezes se enaltecendo. “Aai, tenho que carregar a cruz daquele emprego”; “aquela pessoa é minha cruz”; “aaai, ai, essa cruz que eu carrego”, e nos sentimos os mártires merecedores de recompensa. Quaisquer que sejam as questões desagradáveis com as quais elas têm de lidar são chamadas “cruz”. Nada mais errôneo, uma injustiça enorme com essa passagem. As dificuldades, as pessoas têm de enfrentar independente de terem ouvido falar em Jesus ou não; todos ali tinham muitas; quanto mais tendo a ver com segui-lo...

Pensemos uma coisa. Jesus ainda não tinha sido crucificado, obviamente. Então, Ele podia até ter em mente seu destino, mas não era especificamente dEle que estava falando.

Pode-se retrucar mencionando as vezes em que Jesus anunciava o que lhe aguardava. De fato, Ele demonstrava ter a compreensão de que sua missão o conduziria ao julgamento romano e condenação à crucifixação; inclusive, interpretava tal como parte de seu chamado e sua missão messiânica.

Isso não resolve:

  1. Ele costumava falar mais abertamente assim apenas com o círculo mais íntimo de discípulos; e estes também não compreendiam ou não concebiam tal como o destino de tudo aquilo e Aquele para o qual entregaram suas vidas e aspirações.
  2. Jesus não falava nessa ocasião para si mesmo, mas para a audiência; então devia apelar para algo que esta visualizasse.

Se pensarmos que a “cruz” à qual Jesus se referia era em primeiro plano especificamente a sua, deixaremos a conclusão lógica que tal discurso fora inserido na boca de Jesus pelo evangelista para pregar encorajamento e abnegação à Igreja.


Então temos de refletir, ainda que de modo breve aqui neste espaço, sobre como tal menção impactaria a audiência, a partir do peso que a imagem do “tomar a sua cruz” teria para ela.

A multidão era composta de judeus. Um povo subjugado pelo Império Romano, em uma província que em si não despertava muita importância para o Império, a não ser como uma rota e entreposto. Também, subjugados e explorados pelos agentes do Império, como os procuradores, governadores, etc.

Na tradição judaica, a cruz era sinônimo de maldição. Ser crucificado era cair sob maldição para com os homens e os Céus.


Se um homem tiver cometido um pecado digno de morte, e for morto, e o tiveres pendurado num madeiro, o seu cadáver não permanecerá toda a noite no madeiro, mas certamente o enterrarás no mesmo dia; porquanto aquele que é pendurado é maldito de Deus. Assim não contaminarás a tua terra, que o Senhor teu Deus te dá em herança.(Dt 21:22-23)

A crucificação, também, era algo a expor a pessoa a extrema humilhação para com os povos “pagãos”, para com o mundo romano. Um opróbrio ao qual os pensadores helênicos consideravam inaceitável para um cidadão romano. A Lei Universal do “não fazer aos outros o que não quer que eles lhe façam” se evidencia nessa racionalização que buscamos para driblá-la; para isso, costuma-se rebaixar a categoria do “outro” para menos do que “o nós”, menos do que humana, ou não humana.

Mais tarde, pensadores romanos zombariam do cristianismo por adorar alguém que foi crucificado.

“Carregar a cruz” além de todo o sofrimento físico, era um ato de extrema exposição do condenado, mostrando o que acontece por perturbar a ordem do Império. Somente as autoridades do Império tinham autoridade para dar essa condenação. Era algo especialmente dedicado a criminosos considerados perigosos para o status quo de Roma. Ficavam expostos no processo até a crucificação e nela própria, mostrando a vitória das forças do Império e querendo dizer quão tola a pessoa fora por lhes criar problemas. Era uma total estigmatização, que pisava na honra do nome do condenado.

Então havia um recado claro ali: seguir Jesus apresentava um componente subversivo que ameaçava o status quo, e seria assim entendido. Não era algo que seria facilmente “ajustável”, “assimilável”, não tinha sentido de trazer conforto social ou satisfazer as aspirações desta forma. As pessoas tinham que entender que não estavam sendo convocadas para um desfile que ostentaria os “bem-sucedidos”, mas para algo que poderia virar o mundo ao avesso; o inconformismo com o mundo não serviria para fazer com que se entregassem ao esquema mundano de se sobrepor e viver pela lógica da dominação, do “estar por cima”, o de “o que importa é prevalecer sobre os outros”, incorporar o esquema de subjugação e apropriar-se dele, voltando-o contra os outros. Não. Iriam, de certo, mexer com a ordem. Mas não vistos como “novos imperadores”, “novos conquistadores”, mas enxergados como crucificados. E isso acarretaria perseguições e necessitaria abnegação, por amor a Jesus. Por um lado, não se quer dizer “isolar, fazendo-se de coitadinhos”.

Vamos ver o impacto disso no movimento cristão nascente?

Atos 17.4-7:
Alguns dos judeus se deixaram convencer e foram ganhos por Paulo e Silas, bem como uma multidão de gregos adoradores de Deus, e bom número de mulheres da alta sociedade. Mas os judeus, furiosos, recrutaram alguns maus elementos que vagabundavam pelas ruas, amotinaram a multidão e semearam a desordem na cidade; dirigiram-se então à casa de Jasão, à procura de Paulo e Silas, que queriam apresentar à assembléia do povo; não os achando, arrastaram Jasão e alguns irmãos para os apresentar aos politarcas: “Esses homens que sublevaram o mundo inteiro, gritavam eles, estão agora aqui, e Jasão os acolheu. Todos esses indivíduos agem contra os editos do imperador; eles pretendem que existe outro rei, Jesus.

Nessa passagem da acusação contra os cristãos, de que estavam “sublevando” o mundo, o verbo anastatów também quer dizer “agitar”, “tumultuar”, podendo ser traduzido também como “revolucionar”, como na Bíblia de Jerusalém. Remete à acusação do rei Acabe ao profeta Elias, em I Reis 18.17, uma mosca na sopa dos tiranos, “Tu és o perturbador de Israel”.

Ao longo da história, foi difícil para os cristãos lidarem com isso, e até hoje muitos não aceitam isso do “poder da fraqueza”, a subversão da lógica de dominação e sucesso do mundo fora da vontade de Deus. Mas essta atitude, ésse constrangimento, não é o princípio norteador do Reinado de Jesus. Não subverte nada. Não tira o sono dos que se aproveitam das estruturas injustas, exploradoras e subjugadoras. Se adapta a elas e se orienta nelas para buscar tirar proveito. Assume a orientação oposta ao plano redentor do Deus Crucificado.

É por aí a interconexão de toda a passagem de Marcos, onde
E que proveito o homem terá em ganhar o mundo inteiro e pagar com a própria alma? Que daria o homem que tenha o valor de sua alma? Pois se alguém se envergonhar de mim e minhas palavras em meio a esta geração adúltera e pecadora, também o Filho do Homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai, com os santos anjos. vs. 36-38.

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