31 de agosto de 2011

Não viemos ao mundo a passeio - parte I

Reflexões sobre:

II Samuel 2,17-27
Salmo 24
Mateus 25, 14-30
Romanos 12, 9-21

Para poder acompanhar a reflexão com vividez, pedimos que façam uma leitura prévia destas passagens que, para não alongar demais, evitamos reproduzi-las aqui.


É fascinante podermos viajar no patrimônio cultural comum entre a humanidade, ou mais, quando podemos viajar nas atitudes coletivas comuns na humanidade para com elementos e pulsões internas, para com o transcendente, no que compartilhamos quanto ao que ultrapassam o tempo ainda que varie de forma e em diversos aspectos.

Neste Salmo, se prestarmos atenção numa leitura atenta e detalhada, veremos que é um cântico de procissão. Um cântico de procissão do povo, emanando dele sua devoção, fascínio, aspirações coletivas, sua identidade como povo, sua força interior canalizada e direcionada, força para enfrentar os poderes do “não-ser” que podem ameaçá-lo. Podemos formar uma imagem do povo judeu seguindo os sacerdotes em procissão ao Templo, com danças, expressões devotas, olhos cerrados, bocas abertas pra cima, mãos à frente...um povo em procissão sem imagem, pois não forjavam imagens do divino. Haviam outras imagens de adorno e de formação de uma aura de devoção e temor, de expressão do numinoso do local de culto, como as de Querubins, leões alados com rosto humano... mas não do alvo de sua devoção.

Assim podemos também nos aproximar melhor da angústia que o canto fúnebre ante a morte do rei Saul carrega. Ali não era apenas a morte do rei. Era uma profunda adaga cravada no orgulho nacional e no sentimento agregador, na expressão de ser do povo. O símbolo do seu projeto de nação. O rei, seu descendente imediato, os maiores guerreiros.... e quê adiantava isto agora? O que eles, realmente foram e apresentaram por si mesmos? O filho do rei morto em combate, o rei ante à iminente captura, se atira numa espada após ordenar ao servo que o matasse e este lhe desobedecesse.

Não devemos estranhar demais o quanto a Bíblia está entremeada de noções e lida tão naturalmente com guerras. Guerras e guerras. Era a realidade crua do povo que ali é retratado. Israel era um país pequeno cercado de nações, numa rota estratégica para, principalmente,  passagens de exércitos de impérios em guerras uns com os outros. Seria algo completa e dissimuladamente antinatural e dissimulado, plenamente falso, se ali não contivesse a guerra no imaginário e linguagem normal dos escritos. Podemos ter uma noção ao pensarmos nas letras de rappers, carregadas de violência ou agressividade que advém da realidade que eles nos jogam na cara, que seria desonesto se não falasse delas.

"Não publiqueis em Gat, não o anuncieis nas ruas de Ascalon, que não se alegrem as filhas dos filisteus, que não exultem as filhas dos incircuncisos." Temiam que se juntasse o escárnio para levar a profundezas ainda mais lúgubres seu augúrio e humilhação.

Pereceu o esplendor de Israel nas tuas alturas! (...) Tombaram heróis em pleno combate!

E quais os frutos das decisões existenciais que eles tomaram? Daquilo que fizeram com suas oportunidades e responsabilidades?

A parábola de Jesus em Mateus é conhecida como “Parábola dos Talentos”. Alguns associam equivocadamente o “talento” que aí se fala com o termo “talento”, o que limita seu sentido. Talento era o nome do dinheiro, que alguns estudiosos presumem que na época do ministério de Jesus aquela quantia do proprietária deveria equivaler a 5000 dias de trabalho, 2000 dias e 1000 dias. Pouco? Nãao, hehe. Aquele tempo era uma cena comum, homens ricos e de prestígio muitas vezes eram mercadores, e empreendiam longas viagens, encarregando a empregados, sejam livres ou servos, o cuidado da administração de suas finanças, devendo ser zelosos e buscar fazê-las prosperar. Engraçado que hoje se encontrara em achados arqueológicos, exemplos de dinheiro enterrado, para o qual os donos não puderam voltar... Importante nos acercarmos destes dados para vermos que Jesus não proferia ensinamentos como abstrações, ou aforismas pretensamente “caídos do céu”, mas arraigados na experiência vivencial das pessoas. Até porque costumava ir ensinar nas sinagogas, que funcionavam como centros comunitários onde as pessoas discutiam as questões de sua comunidade, além dos momentos religiosos, aquelas questões também carregadas de temática religiosa.

Podemos então compreender que os “Talentos” significavam os recursos – incluindo, mas ultrapassando os dons - oportunidades e responsabilidades na vida. Cada pessoa possui os seus.  Cada um tem sua vivência, e a mescla da interação entre seus genes, corpo, mente, ambiente, experiências. Nenhum vive a pessoa do outro. Ninguém responderá pelas escolhas do outro, mas pelas escolhas que teve quanto ao que fazer com o produto destas interações.

Lembro-me do filme “O Resgate do Soldado Ryan”. Uma viúva sozinha recebe uma carta comunicando as mortes dos filhos na Segunda Guerra Mundial, lhe restando mais um que está no front de batalha. O exército decide empreender um resgate dele para diminuir o sofrimento da mulher. E uma equipe consegue lhe achar. Ele a princípio fica incrédulo, depois se recusa a ir, argumentando que é um soldado como qualquer outro e não merece tratamento especial. Por fim, após fortes combates, ele consente em ir e escapa, tendo vários companheiros e membros da equipe sido mortos. Seu superior lhe fala: “faça valer a pena”.

Assim também na parábola. Um servo usou de pretexto leviano. Se ele tinha tal conceito do senhor, então aí que era para ele se motivar mais ainda a não deixar o dinheiro se desvalorizar e buscar fazê-lo render, imaginando que seria cobrado. Foi negligente e irresponsável.

Na vida, muitas pessoas não terão nunca oportunidade, nem um senso de chamado, para empreenderem atos famosos que consagrarão grande destaque. A maioria é encarregada de lidar com suas oportunidades e deveres diários e imediatos. Nem por isso sua missão é menor.

É com essa vivência diária que está o grande empreendimento e a grande responsabilidade. Algumas pessoas poderão se deparar com um grande encargo especial que lhe suscita abrir mão do que lhe está diante na vida. Isto é com ela. É consigo. Cada um com seu encargo.

Jesus vivia e pregava predominantemente entre e para pessoas comuns. Num mundo em que havia círculos viciosos de violência, exploração, e disseminação disto, ele buscou fortalecer os laços de proteção espontâneos nas comunidades e entre os indivíduos. Passou por regiões onde as pessoas estavam tendo que usar para seu sustento água que passava por canais advindos de banhos públicos da elite, sujas pela elite. Pessoas que para cuidar de seus sistemas agrícolas, seus ofícios diversos, com todas as redes de segurança comunitárias esfaceladas, vulneráveis perdiam tudo em dívidas, e buscavam em quem era mais fraco extrair também para compensação. A espiral das dívidas. A noção de imposição do prestígio e autoridade social era marcada com bofetadas que os da escala mais alta impunham no rosto dos de mais baixa, dos seus devedores, servos, dos “menores”, para evidenciar tal hierarquia. Soldados passavam violentando mulheres, surrando homens, tomando seus agasalhos, obrigando-lhes transportar suas tralhas por longas distâncias...tudo era passado pra frente. Às vezes pior. Algumas pessoas introjetavam a lógica e a força da violência. Visualização soturna é a do “endemoniado Gadareno” imaginando, impotente, incorporar a tropa romana, assumindo em sua psique toda a humilhação e a pondo pra fora encarnando toda a monstruosidade insana... e Jesus confrontando seus demônios.

Jesus estava dando um basta e movendo as pessoas a uma lógica oposta a da replicação da opressão. Visava matar o círculo vicioso de fome, ao invés de prosseguir alimentando-o, em atos ou na disposição interior. E com atos e com disposição interior renovada, conclamava as pessoas a iniciarem um ciclo vicioso de acolhimento, proteção mútua, de um projeto de vida chamado Reinado de Deus. E limpava-lhes a existência para usufruir da própria oportunidade de viver. Não um viver descompromissado, mas compromissado, em que assim a pessoa, sem buscar viver apenas para si mesma, encontrar-se à a si mesma.



Continua....

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