7 de janeiro de 2011

Profanação

"Sim", disse eu, "é essa, de todas as palavras humanas, a que arrasta consigo a carga mais pesada. Não há outra palavra que tenha sido tão conspurcada e aviltada. Justamente por isso não posso renunciar a ela. Sobre essa palavra as gerações dos homens colocaram todo o fardo de suas energias, rolaram-na e derrubaram-na por terra; ela encontra-se no pó, esmagada pelo peso de todos eles. Com suas divisões religiosas, as gerações dos homens a dilaceraram; por ela eles mataram e por ela morreram; ela carrega em si os vestígios e o sangue de todas as gerações. Onde poderia eu encontrar palavra igual para designar o Altíssimo? Se tomasse o conceito mais pura e mais brilhante do mais íntimo tesouro dos filósofos, não encontraria nele senão uma pálida imagem, mas jamais a presença daquele de quem estou falando, daquele que as gerações dos homens exaltaram e humilharam com sua vida e morte. É a ele que me refiro, é a ele que se referem as castigadas gerações dos homens que querem conquistar os céus. É verdade que eles desenham uma careta qualquer e escrevem embaixo 'Deus'; matam-se uns aos outros dizendo 'em nome de Deus'. Mas, quando toda a sua loucura e engodo passam, quando se defrontam com ele no mais recôndito de sua solidão e deixam de dizer 'Ele, Ele', passando a suspirar 'Tu, Tu', quando gritam 'Tu', quando todos gritam o Uno, e quando então acrescentam 'Deus', não é o Deus real que eles invocam, o Único Vivo, o Deus dos filhos dos homens?! Não é ele que os escuta? Não é ele que os ouve? E não é justamente por isso que 'Deus' é a palavra de invocação, a palavra que se tornou nome, por todos os tempos santificada, em todas as línguas dos homens?  Os que a rejeitam por se rebelarem contra a injustiça e os abusos dos que tanto buscam dominar os outros em nome de 'Deus' precisam ser respeitados, mas nós não podemos desistir. É compreensível que muitos proponham que por algum tempo não se fale das 'últimas coisas', a fim de remir as palavras que se têm profanado! Mas não é assim que essas palavras devam ser redimidas. Não podemos lavar a palavra 'Deus' nem podemos consertá-la, mas podemos, manchada e rasgada como está, levantá-la do chão e erguê-la nas horas de grande preocupação".

Martin Buber, prefácio de "Eclipse de Deus".

Nenhum comentário:

Postar um comentário