Na obra “A Desumanização”, o escritor espanhol Valter Hugo Mãe tece uma
trama de carga psicológica profunda e claustrofóbica numa ilha
islandesa em torno da menina Halla, que tem como estopim a morte de
sua irmã gêmea Sigridur e o trauma dilacerante nela e na família.
A irmã representava a completude de sua identidade, e a referência
para ternura, cumplicidade, autodescoberta e mesmo a lucidez.
Objeto do descarrego da dor da mãe – que outrora era a imagem
da candura -, em fúria insana que lhe busca como bode expiatório,
Halla não podia encontrar apoio no pai; figura que outrora fora
diligente, era quem lhe alimentava a alma de lirismo, imaginação,
de possibilidades maiores de vida posto que era um erudito autodidata
que lia para ela as histórias, se entregou e foi consumido pela
letargia. Pra completar, Halla sofria o ostracismo, cercada de
rejeição em toda a sua comunidade, estigmatizada e caluniada por
pessoas que aparentemente seriam pacatas e cordiais aldeãs.
Sonhava com mundos além-mar, tinha um vento impetuoso e um fulgor
em si porém. Mas neste desterro em suas próprias raízes, se
envolveu com um rapaz problemático, muito mais velho, que na
infância era o algoz dela e de sua irmã, para a qual prometera que
nunca daria uma chance para ele. Acabou por desenvolver uma
cumplicidade com ele, receber algo que lhe faltava do buraco que fora
deixado por Sigridur, e descobriu o sexo sem amor até chegar ao amor
sem paixão, mas um amor de entrega e refúgio.
Einar, o garoto, tinha certas desordens em organizar o raciocínio,
era meio esquizoide, com grande senso de rejeição para o qual
reagia como conscientemente inoportuno, era “sem graça” e de
“boca podre”. Ela engravida, mas quer segredo dele, não quer que
saibam que ele era o pai, ele quer. Espalha-se o forte boato de que o
pai a violentara, e o pior poderia ter ocorrido se outra coisa ruim
não acontecesse: descobrem o caso entre os dois. A espiral de
maldade, incompreensão e intolerância aumenta, ainda mais, para com
Halla, até que num ataque ensandecido a mãe lhe faz perder o bebê.
“Não é sobre o corte entre as pernas que me interessa pensar,
pai. O corte entre as pernas não foi sequer capaz de me afastar a
pele, porque a pele imediatamente se soube juntar e reconstruir. O
que me magoa é mais violento do que isso. Porque à minha mãe posso
odiar sinceramente, perdendo-lhe a ternura, como se exercesse um
sentimento honesto, sem problemas maiores. O que me magoa está por
definir e tem-me aqui presa quanto me obriga a fugir. De igual modo
me propõe a morte e a vida ao mesmo tempo”.
Vai depois morar junto com o padrasto de Einar, o pastor da
comunidade, que depois se casa com a tia de Halla que chegara da
cidade, mulher dominadora.
Einar também tinha seus mistérios, lembranças reprimidas, que
no convívio com Halla foram reemergindo e revelando para ambos
maiores laços e histórias de maldade, desumanidade, perversão,
autointeresse implacável e jogos de cinismo na vida das pessoas sob
máscaras de virtude, autogratificação e vida pacata. Onipresente
em toda trama e pano de fundo está uma cratera sem fundo na
montanha, onde o vento sempre assoprava mostrando a sua fome de
tragar almas, chamada “boca de deus”.
Com o aprofundamento do stress, insanidade e apatia em sua
família, com a amargura de Halla que só tinha a ela a se apegar,
Halla se sente desapegada de tudo, até do que amava, ela se
desumanizara; não porque não podia mais amar algo ou nutrir bons
sentimentos, mas ela se desumanizara. Perdera a ideia de alma
eternamente ligada com a da sua irmã, já não sentiam que elas
poderiam ainda ser gêmeas; não mais lhe guiava entre o certo e o
errado. Topa uma fuga da ilha para tocar a vida no desconhecido com
Einar, e na véspera da fuga combinada, tranca a casa com ele, o pai
adotivo e a nova madrasta, assassinos do pai do garoto, usa os poemas
do pai para tocar fogo com os três e seguiu seu caminho.
Os sentimentos que irrompem e nos acercam ao nos depararmos com os
comentários de notícias na internet também pareiam com estes
processos de “desumanização”. Há uma pulsão de realmente
considerarmos que o empreendimento humano é um caso perdido, que a
esperança deságua nas torrentes do niilismo, que por esta raça não
vale a pena lutar, que estes picos de gelo no mar são icebergs
inexoráveis que afundarão quaisquer engenharias humanitárias a
quererem atravessar as águas caóticas, antes que se chegue à terra
firme e fértil. Ou antes que se chegue ao lar.
Numa matéria simples no site da UOL, com a chamada "
Perto dofim da escravidão, 60% dos negros trazidos ao país eramcrianças", 90% dos comentários em redes sociais são de fazer
vomitar sangue.
Coisas como "e daí, deviam ter permanecido na África então
e tudo seria melhor", "mereceram, uns venderam aos outros",
"nós brancos apenas compramos a mercadoria", "eles
têm que agradecer por serem trazidos e ganhado comida, para não
passarem fome na África", "isso é pesquisa plantada pelo
PT pra insuflar a luta de classes comunista".
Todos comentaristas "Cidadãos de Bem da família pagadores
de impostos".
Parece que há uma soma de forças conectadas para nos desiludir
totalmente, como a dizer “este é o verdadeiro rosto das criaturas
que comerão as mãos que se lhe estendem. Somos horripilantes. Somos
o seu vizinho do cumprimento simpático do elevador, as senhorinhas
gentis do Pilates, somos 'os caras legais', as meninas bonitas, somos
a potência daquele menininho do riso enternecedor e da menina
brincando de repórter”. E sim, os soldados de Gengis Khan, a turba
disciplinada no nazismo, os cientistas austeros em limpos jalecos
brancos usando de cobaias humanas, os líderes religiosos instigando
matanças, todos tinham e têm no dia à dia, este “rosto humano”.
Todo este desvencilhar do pudor, da alteridade, da autocrítica,
todos estes demônios das Caixas de Pandora abertas nas redes
sociais, todas essas “abissalidades” que se julgava superadas no
empreendimento civilizatório mostrando que não só estão muito
vivas, presentes, como querem agora recuperar qualquer centímetro
perdido e se esbaldar sem nenhum constrangimento.
É para jogarmos a toalha e queimarmos os poemas. E simplesmente
resolvermos tocar o barco até que afunde. Mas há quem esteja à
espreita nisso tudo, a invocar Plutão para ditar as coordenadas de
navegação no mar.
Onde vejo a resposta de Camus para o dilema que formulou no livro “O Mito de Sísifo”
incompleta, e Dostoiévski ilumina essa incompletude. Dostoiévski
conseguiu penetrar nas mais diabólicas cavernas do coração humano,
mergulhou na abissal “boca de deus” dos pesadelos da ilha
islandesa de Hugo Mãe, e sentiu o hálito do sopro insaciável.
Conseguiu retratar a sordidez presente como um rizoma na mente e
comportamento humano, na sociedade e nos indivíduos, sem falso
pudor. Mas ele precisava de uma inocência, de uma virtude, ainda que
restasse a ela enlouquecer para não se perder a integridade no mundo
insano, como com o Príncipe Míchkin em “O Idiota”, ou com a
chama bruxuleante do idealismo de Stiepan Trofímovitc se descobrindo
cercada de niilismos fanáticos em “Os Demônios” e tentando
distinguir o que busca e o que não busca, ou como o pobre Aliócha
com seu “Discurso Junto À Pedra”, em que até então, ele absorto nas sequenciais eloquências niilistas que expunham o absurdo
visceral do mundo para, como Satanás reclamou a Simão, lhe
“peneirar como trigo”, invoca a ressurreição para manter viva a
chama do amor nos meninos invocando uma memória querida, e seguindo
seu caminho, em um desfecho diferente do de Halla. Dostoiévski ainda
foi mais além com o sofrimento redentor de Raskolnikov amparado pela
candura de Sônia que vencera as trevas.
A questão para Dostoiévksti é que ele explorara igualmente como
Camus o sofrimento absurdo, e a tormenta interior e sentimento de
exílio na sociedade que Camus explorara, em personagens ácidos dos
subterrâneos, como o irredimível de “A Queda” do
"juiz-penitente" Jean-Baptiste; em “Notas do Subsolo”,
Dostoiévski solapa mais do que Camus com toda a auto-complacência,
pois seu personagem sem nome aí também se encontra não só em
fluxo de consciência mas em ação, na rememória de uma trama
degenerada e torpe.
A clivagem que eu vejo entre as respostas de Dostoiévski e Camus
se dá quando este diz que imagina um Sísifo feliz. Este que, condenado a empurrar a pedra que no limiar de chegar ao cume da
montanha sempre rola novamente abaixo, encarna o herói trágico e
dionisíaco de Nietzsche, transformando o “assim foi” no “eu
quis assim”, encontrando no destino sua marca impressa. Eu não
imagino um Sísifo feliz a não ser que ele fosse como as figuras de
“Admirável Mundo Novo”, condicionado para finalmente desaguarem
o destino no empurrar a pedra, ou entregando a consciência para a
fatalidade. Vejo Dostoiévksi, em uma das suas experiências mais
importantes para desenvolver seu trabalho de vivissecção moral
literária, na prisão, pautando que se colocarem um preso para a
tarefa mais pesada que fosse, mas ele visse que estava construindo
uma ponte, uma obra significativa, ele teria uma determinação em
si; mas colocando-o para algo como peneirar água, encher uma pá de
areia e jogá-la para o alto, ele se alienaria em demência,
frustração e explodiria.
Por isso precisamos de algum significado para dar sentido ao que
fazemos. Se não pensarmos um pouco que nossos trabalhos ou alguma
ação ajuda a algumas fagulhas de luz, não semeia alguma beleza ou
bondade ou indignação criadora, não instiga alguma força de vida
e algo melhor no mundo, fica difícil resistir ao fatalismo; ainda
que por vezes precisamos nos fiar numa via negativa, algo como pensar
que se o mundo se queimar ou apodrecer, não foi por pensarmos que
não tínhamos poder de fazer nada que contribuímos para isso, tal
como muitos que o pensaram contribuíram. Mas é claro que por detrás
das frustrações devemos nos perguntar se não havia também
cinismo, autocompensação emocional e descargo de consciência, com
uma vontade de dominação.
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Cena final de "Melancolia", de Lars Von Trier |
Como nos filmes de Lars Von Trier (que explorou a fundo o niilismo em "Melancolia", que desfecha com uma explosão fútil que termina com a vida na Terra, única no Universo), como no “Europa”, “Medea”,
“Dançando no Escuro”, “Dogville” e “Manderlay”… os
desprendimentos humanitaristas dos personagens, de Leopold Kessler na
Alemanha até a Grace nos povoados, são tragados pelo que a raposa
eviscerada vaticina em O Anticristo, “o caos reina”; sugados numa
espiral que os leva ao limite, desarma, e “o que não tem governo
nem nunca terá” desnuda neles todos os sentimentos de ódio e
sadismo que condenavam antes, porque há arranjos e configurações
de aparência bizarra e
ineficiente que são formas eficazes
encontradas para lidar com forças desconhecidas presentes mesmo na
trajetória que formou os sentimentos dos humanitários. “Pois é,
sra. Grace, é fácil insultar os negros [quando ela diz que eles
escolheram e mereceram a escravidão, frustrada por não se acomodarem aos seus planos civilizatórios], mas não está
esquecendo algo? Vocês nos criaram”.Em muitos filmes dele, humanitarismo, as piedades religiosas, racionalidades modernas como a
psicanálise, tentaram adestrar as forças caóticas, para submeter
os outros à servidão, e terminaram por serem reviradas do avesso e
vítimas de si próprios.
Não temos como “domesticar” e as pessoas. E nem temos que nos
impor este fardo frustrante de convencê-las. Muitos referenciais
nossos podem nos desiludir. Mas também muitos gigantes monstruosos
têm pés de barro, e muitas pessoas também apenas estão com medo
ou frustradas. Com esta resposta inconclusa de quem não quer ser o
humanitarista redentor que vai curar a excruciante ninfomania de
Cloe, apenas quero desafogar o peito rezando para que não nos
desumanizemos.
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Bansky, "O lançador de flores" |
_ Digo isso por receio de que nos tornemos maus – prosseguiu
Aliócha -, mas por que teríamos de nos tornar maus, não é
verdade? Sejamos primeiros e antes de tudo bons, depois honestos e já
depois – não nos esqueçamos nunca uns dos outros.
(...)
_Bem, agora encerremos os discursos e vamos às exéquias dele.
Não vos perturbeis porque comeremos panquecas. Porque é uma
tradição antiga, eterna, e nisso há algo de bom – riu Aliócha.
_Então, a caminho! E agora lá vamos nós de mãos dadas!
_ E sempre assim, de mãos dadas para o resto da vida! Hurra,
Karamázov! - gritou Kólia mais uma vez entusiasmado, e mais uma vez
todos os meninos secundaram sua exclamação.